Uma leitura sobre a ''Poética do espaço'' de Bachelard

Alguns lugares me pertencem.Se subo escadas e cada passo meu é uma nova história impressa ,minusculamente, no concreto,tal caminho não é senão interamente meu.Quando pequeno morava perto da Ladeira da Memória no Vale do Anhangabaú(que doce me era sofrer prara pronunciar esse nome), para mim todo aquele cinza de fatalidade tinha uma expressão sinistra, os conflitos de casa, o garoto que pulou do décimo terceiro andar do prédio de frente.Medroso que era,fiquei um bom tempo sem me aproximar da janela panorâmica de casa, depois que fiquei sabendo da história do edifício Joelma, então...Abrenúncio, que as noites eram mais longas que na primavera polar!

Mas havia algo naquele lugar que me roubava os desejos de criança normal e mos devolvia na forma de uma contemplação antiga, posto que inocente.Era a fonte com um chafariz, que no meu imaginário era a Fonte da Memória singrando as águas do ribeirão implícito que até hoje é o Anhangabaú.Todo domingo,ou quando era possível, íamos eu minha mãe e irmã deslizar nossos velocípedes ladeira da memória abaixo.Lembro-me como se fosse hoje, e lá se vão vinte anos dos acontecidos.Lembro-me que cansados e suadinhos de brincar a infância, conseguia furar o bloqueio inoxidável de mamãe e da moça mulatinha que era nossa cuidadora, a Niza; para me jogar nas águas salobras e lodosas da Fonte da Memória.Aquele lugar não era de mais ninguém, andarilhos olhavam,invejavam , aplaudiam.Aquele lugar pertencia-me, pertence-me.Aquele lugar confirmou o seu nome.Lembrando, descobri que não só tenho lugares meus como certos lugares me possuem.Me possuem pois traduzem o significados dos meus sentimentos, das poesias que nunca disse porque não o saberia dizê-las, poesias que assim se cumprem pois vigem na alma do silêncio e a ele nos aponta como um lugar.

Bachelard na sua Poética do Espaço diz que os poetas ou metonimicamente(sendo impossível a exatidão tópica dos termos) as poesias nos ajudam a descobrir em nós uma alegria tão expansiva ao contemplar as coisas que às vezes vivemos ,diante de um objeto próximo, o engradecimento do espaço íntimo.A Fonte da Memória eram essas coisas.

Rilke, ao contemplar uma árvore atribui à ela sua existência de imensidão e diz:

''O espaço, fora de nós, ganha e traduz as coisas:

Se quiseres conseguir existência de uma árvore,

Reveste-a de espaço interno, esse espaço

Que tem seu ser em ti.Cerca-a com violência

Ela não tem limite, e não se torna relamente uma árvore

Senão quando se ordena no seio de tua renúncia.

A minha árvore é a Ladeira da Memória. Nela habita os meus poemas inesquecidos, as minhas primeiras impressões do universo humano, da máquina do mundo e seus maquinistas. Quantas vezes não voltei para lá após um dia inteiro em que em meio a confusão do ''entre as gentes'' me perdia de mim mesmo, e como um despertar no meio da madrugada a vida me cobrava os sentidos dos desejos, dos sonhos que fui e que sendo seria. É lá que mora a memória do que sou. Do que sem desvios as contingências me tornarão desde que eu não renuncie o meu destino, essa esfinge edipiana que toda manhã me prescruta ''decifra-me ou te devoro''.

Mais tarde quando me preparava para o vestibular num famoso cursinho da avenida Paulista, tive o prazer de ter como professor de literatura Fernando Teixeira de Andrade, mestre da arte de recitar poemas longuíssimos de cor, ao que eu o acompanhava sob olhares intrigados das meninas e sob olhares despeitados dos garotos mesmo dos meus amigos. Mal sabiam eles que pouco daquilo era exibicionismo(e não é assim que jovem sempre se apresenta?). Mal sabiam eles nem eu tampouco que cumpria três destinos; meu, de um lugar e do meu eu-lugar. Alí soube que os que se banham na ladeira da memória não só decorarão coisas e nomes e rostos com extrema facilidade, como soube que os que um dia pularam nas águas do córrego das almas nunca esqueceriam da sua.Soube que antes que um lugar me pertença eu fui por ele feito cativo. E sigo Ortega y Gasset :''com o passado não se luta corpo a corpo'' e Nöel Arnaud : '' eu sou o espaço em que estou'' e acrescento, também o espaço, o lugar em que estive.Termino esse pensamento que esbravejou para existir, com o poema Anhangabaú de Mário de Andrade:

Anhangabahú

Fino, límpido rio, que assististe,

em epocas passadas, nas primeiras

horas do dia, á despedida triste

das heroicas monções e das bandeiras:

meu Anhangabahú das lavadeiras,

nem o teu leito ressequido existe!

Que é de ti, afinal? Onde te esgueiras?

Para que vargens novas te partiste?

Sepultaram te os filhos dos teus filhos:

e ergueram sobre tua sepultura

novos padrões de glorias e de brilhos.

Mas dum exilio não te amarga a idea:

levas, feliz, a tua vida obscura

no proprio coração da Paulicéa.

No coração do desvairado que sou!

janeiro de 2009, Ribeirão Preto, no exílio!

Danilo Sérgio Borges
Enviado por Danilo Sérgio Borges em 05/04/2010
Reeditado em 09/04/2010
Código do texto: T2178812