Eremitas existem. Sou um deles.
Eremitas existem. Sou um deles.
Quando pensei escrever e assumir “literáriamente” que sou um eremita não era por promoção pessoal, pois promover-se é algo que se contrapõe a vida de um eremita. Mas penso que ao divulgar minha vida, nossas vidas de eremitas, poderemos oferecer ao mundo uma oportunidade de pensar essa forma de religiosidade tão “nova quanto antiga”.
Eu sou um eremita. Mas não vivo nas cavernas, rochas ou desertos.
Vivo uma vida quase urbana, visto que recorro à cidade para minhas necessidades, mas vivo em uma floresta, não que tenha sido “invadida”, mas este local foi comprado, como compramos nossos imóveis normalmente.
A vida do eremita é a mais antiga forma de vida religiosa que se conhece, ou ao menos, que antecede aos conventos de hoje. Ela começou por volta do século III da era cristã, mas seguramente aconteceu antes, em outras culturas e religiões.
Vou dizer sobre mim mesmo, como um parâmetro. Sugiro que se pesquise, outras formas de vida eremítica caso se deseje, mas falarei de minha experiência particular, pressupondo que por essa “experimentação” eu explique também o que acontece com meus pares, pois atualmente, uma recentíssima pesquisa que acessei na internet diz que os eremitas já ultrapassam o número de mil pessoas, a maioria mulheres, em toda a Europa e Estados Unidos.
Em geral, os eremitas da atualidade tem idade média de 40 ou 50 anos. Não é uma vocação para pessoas jovens, mas para experimentados, amadurecidos “pela vida”.
A maioria de nós tem uma fonte de renda segura, ainda que seja muito pouca, raros são os que vivem de “esmolas”. Em virtude, pois, da idade mediana, em geral este estilo de vida se presta aos “aposentados” ou aos “pensionistas” ou ainda aqueles que tem uma fonte de renda segura, proveniente de doações, aluguéis, etc. Raro ver um eremita de hoje vivendo de esmolas, porque elas não trazem a segurança necessária financeiramente. Alguns vivem em trabalhos feitos “meio período” ou algumas vezes por semana – o suficiente para que possam sustentar a si mesmos.
Vivo também do meu trabalho. Pago impostos. Contribuo para ter uma aposentadoria um dia. Pago financiamento de minha casa.
O segundo ponto interessante para aqueles que escolhem a vida do eremitismo é que não querem as estruturas eclesiásticas conhecidas como mosteiros, conventos, congregações religiosas etc. Os motivos são os mais diversos e devemos respeitar a “história” de cada um e a razão de não quererem para si este modelo de vida, que é muito bom para outros, a maioria dos religiosos. Isto é, porque a vida eremítica é uma vida dentro da outra. Um religioso dentro de outro. Em geral, primeiro se faz monge de um desses mosteiros e depois escolhe-se viver como eremita, mas é comum também que uma pessoa se decida ser eremita “de salto” pulando de um estila de vida laico (leigo), isto é, de fiel, a eremita, sem ter sido monge.
Em geral também os eremitas ou “as” eremitas (homens ou mulheres) não são padres, presbíteros, sendo então simples fiéis. Mas, existem aqueles que são (foram) padres! Muitos padres largam suas paróquias para viver este estilo de vida, porque percebem que Deus lhes chama a isso – que é isso que lhes satisfaz. Eu sou padre anglicano.
Também é comum que os atuais eremitas tenham sido casados, estejam atualmente viúvos, tenham filhos, mas que escolham para si este caminho de solidão. Nas igrejas anglicanas, também os divorciados são aceitos e conheço um caso, onde o casal, ela ex-freira de clausura e ele, sejam casados e monges eremitas. Ou seja, administram seu tempo para uma vida total ou semi-eremítica.
Como vemos, há uma gama muito grande de possibilidades para aqueles que querem ser eremitas hoje (e sobretudo no século 21).
Vou dar uns exemplos de pessoas, sem citar nomes, apenas para mostrar como vivem a sua vida de eremitas:
A pessoa que chamaremos de A é musicista. Professora de um determinado instrumento. Foi graduada em diversas áreas do conhecimento e vive hoje dando aulas de música alguns dias por semana em seu eremitério. Com o que recebe das aulas, pode comprar seus alimentos, pagar suas contas e viver nos outros dias em solidão.
A pessoa B é aposentada. Vive em um apartamento em uma grande metrópole. Sai apenas uma vez por semana para fazer compras de supermercado, pagar contas (quando não usa seu computador portátil para isso) e volta para casa, onde vive em solidão pelos outros seis dias da semana.
A pessoa C é enfermeiro. Vive em um eremitério construído por ele mesmo numa região pobre da África e em alguns dias da semana atende aos pobres, em outros vive a vida de oração.
A pessoa D é Bibliotecária de formação, leciona em uma Universidade alguns dias ou horas do dia e depois recolhe-se em seu eremitério em uma área rural.
Nenhuma dessas pessoas vive portanto em cavernas. Mas são eremitas de fato.
Para ser eremitas, alguns escolhem estar vinculados a uma igreja cristã (católicos, luteranos e anglicanos são os mais comuns). Nestas igrejas, depois de um tempo de provação – pedem ao seu bispo que receba seus votos religiosos de pobreza, castidade e obediência para viverem como monges eremitas (ou monjas) mesmo vivendo nas condições que apontei acima. Em geral são bem aceitas e esses votos podem acontecer de modo público ou privado. Na Igreja Católica há um cânon o de número 603 que define este estado de vida. Nas Igrejas protestantes como os anglicanos e luteranos há também regras definidas e cada eremita ou futuro eremita deve discernir com seus padres, pastores e bispos sobre esta vocação singular.
Um ponto de considero importante e de “convergência” dentro da vida de eremita é a simplicidade com que se dá sua vida de oração. Não é necessário, como disse, que ele seja padre ou freira, também não é necessário que ele ou ela tenha um sacrário em casa (com hóstias consagradas), nem mesmo que ele assista a missa ou ao culto com freqüência e regularidade. Mas é indispensável que ele tenha uma bíblia, o acesso aos salmos, a livros de oração, como o LOC e o Breviário dos religiosos e que reze, tenha este tempo especial para a oração e a meditação.
Ora, vimos que com “apenas” a necessidade da “Bíblia”, não está aí definido necessariamente uma determinada “denominação” religiosa, se ele é católico romano ou protestante, por exemplo, mas que ele é um cristão. E nem tampouco se ele é cristão de linha ortodoxa oriental ou da Igreja latina (ocidental). O que quero salientar é que os eremitas estão mais ou menos livres de “amarras” denominacionais do mesmo modo que os chamados “padres do deserto” estavam. O “ser eremita” transcende o ser de uma determinada igreja em particular, mas implica em que seja cristão por excelência.
Evidentemente que temos que dizer que ser eremita não é algo fora da “comunhão da igreja”, mas dentro dela, e por isso – é muito valoroso e recomendável – que ele esteja unido ao Bispo e por ele à Igreja inteira.
Sou anglicano, mas sendo monge eremita, posso perfeitamente compreender a natureza da vocação de outro eremita, mesmo que ele seja católico romano ou católico ortodoxo, isto porque “bebemos na mesma fonte do evangelho de Cristo”. Daí que se pressupõe um grande grau de ecumenismo prático, não teórico.
Outros monges como o americano Thomas Merton vão levar essa concepção além do cristianismo em si mesmo, interagindo com os monges budistas por exemplo.
Então o que podemos tirar em comum da vida do eremita hoje?
São pessoas cristãs, homens ou mulheres, que vivem isoladas por opção, tanto em centros urbanos como rurais, que tem uma fonte de renda segura para seu sustento – embora vivam muito pobres na maioria dos casos. Que fazem votos de pobreza, castidade e obediência nas mãos de seu Bispo, que estão ligadas por isso à uma determinada igreja cristã e a sua doutrina. Que podem ser de diversos estados civis, (casados, solteiros, viúvos) desde que optem pela castidade.
Por fim, gostaria de salientar o aspecto muito pessoal da fé do eremita e transcedental dela. Ele é um ser solitário, que vive sua fé de modo pessoal, individual. Não comunitário. Ele não freqüenta – em tese – paróquias ou catedrais, nem tampouco capelas. Ele vive só. Sua ligação com a igreja visível e os outros membros dela é espiritual em virtude da oração dele, da vida de oração que liga aos demais cristãos. Também chamada de “comunhão dos santos”. Daí ele não tem necessidade de estar presente fisicamente aqui e acolá, mas espiritualmente se liga a todo Corpo de Cristo.
Do mesmo modo, por extensão, ele não se liga somente a uma igreja pessoal – embora canonicamente esteja ligado – mas sendo unido a uma diocese, a um bispo, se liga ao mesmo tempo a toda igreja universal, pois onde reza o monge (o eremita) reza toda a igreja com ele. Quando ele reza o saltério, o breviário, o LOC ele reza a oração litúrgica de toda a Igreja. Daí ele nunca está realmente só.
Por fim, este modo de vida, atinge e beneficia a muitas pessoas, tanto as idosas que não podem sair de suas casas para ir à igreja, quanto às doentes, que oferecem de seu leito o seu sofrimento em benefício de tantos e sua oração em sufrágio de si mesmo e dos outros – como sobretudo – para aqueles (como disse) que não se sentem mais incluídos (ou antes excluídos) dos mosteiros e conventos, quer por sua idade avançada, quer por instrução ou diplomas acadêmicos não adquiridos. Muitos conventos fecham-lhes as portas pelos motivos mais diversos, frustrando uma verdadeira vocação religiosa.
Evidentemente é importante precisar que a vocação de eremita não é uma “fuga” do mundo, uma “compensação”, uma “frustração” para aqueles e aquelas que não se realizaram nas Igrejas – mas pode ser, segundo o Amor de Deus – uma nova oportunidade de vida consagrada para aqueles que Deus escolheu para si desde o ventre de nossas mães. Uma feliz oportunidade de consagrar-se a Deus.
Em última análise é o Espírito Santo que suscita as vocações na Igreja e convida a todos e todas independente de seu estado de vida a louvar ao Senhor Jesus. É o Espírito Santo que convida, que chama a nós, tal qual chamou os primeiros monges do Deserto há 16 séculos passados, fazendo dessa vocação algo NOVO e VELHO, e por isso mesmo fundamental na Igreja.
Emmanuel Maria.