Meu encontro com José Monir Nasser
MEU ENCONTRO COM JOSÉ MONIR NASSER
Março/2010
A primeira vez que fui levado ao Sr. Nasser ocorreu em 04 de março de 2010.
Dias antes – dois, para ser exato – eu me deparava com um cartaz que anunciava uma discussão sobre "Crime e castigo", de Dostoievski. Era realmente uma grande sorte para mim. Esperei ansiosamente até o dia.
Preparei com carinho alguns textos meus, além de cinco trabalhos de piano. Pensava que o entregaria ao organizador, pois passeei os olhos tão rápido sobre o cartaz que sequer cheguei a notar o nome de quem apresentaria o workshop. Mas o destino faria com que, para minha felicidade, eu, de modo instantâneo, tivesse de mudar o destinatário daquele meu envelope amarelo.
Já próximo da entrada, suado eu percebia que havia esquecido meu exemplar de "Crime e castigo". Com fúria, adentrei ao carro e sozinho, fui interpretando aquele trânsito caótico da pior forma possível. Tudo, àquele instante, parecia me ser digno de ataque. Sequer a música de Wagner parecia domar aquele meu instinto. Pois a verdade era que eu tinha menos de vinte minutos para apanhar o livro em casa e retornar. Não desejava chegar atrasado, nem me sentar em um lugar diferente que não fosse aquele, por mim elegido como meu – ao menos nas minhas presenças.
Eu imaginava que seria obrigatório a todos os participantes ter o seu próprio “Crime e castigo” em mãos. À minha mente, corriam cenas daquelas discussões aprofundadas. Uns falariam com base na leitura feita na tradução em francês; outros, no alemão; e ao final dois ou três, como que discutindo em russo, teriam suas atenções chamadas. Eu, no fundo, havia sido conduzido a tal lugar de modo tímido. Não me sentia digno ou à altura, uma vez que havia lido, até então, apenas três obras de Dostoievsky.
Certa vez um professor de Literatura contava-nos um de seus tantos casos. Eu realmente amava suas aulas. Dizia ele que havia estado em uma espécie de evento fechado, onde se discutia sobre uma obra em específico de Machado de Assis. Ele, ao meio de todos aqueles homens sábios, se sentia o máximo por ter lido por duas vezes o mesmo livro. Em dado momento da discussão, ele, com dúvida, levantava a mão: “Me desculpe, mas não estou conseguindo entender o trecho que vocês estão falando a respeito”. Alguém então lhe perguntou: “Quantas vezes você leu este livro?”, “Ler? Duas!”, “Duas? Então quando você chegar à quinta vez, irá entender sobre o que o trecho diz”. E eu, no fundo, imaginava que o mesmo poderia ocorrer comigo.
E relembrava as ocasiões em que a leitura de “Crime e castigo” havia me acompanhado, em viagens longas de ônibus. Sempre o mantinha ao lado de certas anotações. Buscava inspiração na sua escrita caótica, e um consolo na sua inquietude.
Ao estar em contato com sua obra, um aspecto em especial me chamava a atenção: sua capacidade de abstração. Ela, aos meus olhos, era sempre fenomenal. Tudo tão bem construído e, ao mesmo tempo, parecia provir com tanta espontaneidade. Certa vez me havia sido dito que Kafka por vezes escreveu algumas de suas obras em questão de um ou dois dias; com Dostoievsky eu não imaginava senão o mesmo.
Bem o sei muitas vezes sequer seus escritos foram elaborados com naturalidade, mas sob pressão. Mas ah, que mente era aquela sua, que o fazia criar tanto em tão pouco tempo!
Era difícil imaginar como uma história tão complexa como “Crime e castigo” havia sido criada em questão de dias e, no entanto, parece retratar cada segundo vivido ali. Os detalhes, as situações, as reações humanas: tudo. Se a capacidade de criar pode aproximar o homem da divindade, eu tomaria emprestada a expressão de Nietzsche – e porque não sua própria voz – para dizer a Dostoievsky: “Tu és um deus!”.
Difícil é acreditar que foi ele apenas um escritor, de vida estável e harmoniosa, que, como hobby, imaginou tantas histórias. Os amores, os ciúmes; vontades, problemas com os mais variados vícios – tudo em sua obra parece exalar sinceridade, tendo sido experimentado. E a máxima de Goethe, citada na obra do meu amigo Toedter, seria encaixada neste sentido com perfeição se se fala sobre Dostoievsky e sua arte:
“Ninguém pode fazer julgamento da História senão quem a experimentou em si mesmo”.
A leve onda de indignação com os imprevistos ocorridos, contudo, não parecia encobrir a expectativa que eu guardava para aquele evento.
Já às portas, carregando uma mala debaixo do braço, adentrei ao Centro de Cultura. Percebia que havia várias pessoas do lado de fora. A euforia e a ansiedade me roubavam o raciocínio. Foi-me necessário apertar os olhos para que olhasse uma banca ao lado, que cobrava a entrada.
Poucos foram os dias em que torci tanto para que um evento começasse em atraso, como naquele. Eu me senti como que dono de uma sorte irreproduzível, quando me foi noticiado que nada havia começado.
Adentrei e sentei-me, como presumo, na mesma cadeira de dois dias atrás, onde eu havia estado. Parece-me não ter sido intencional. Acho que fui conduzido até lá, como em todas as vezes que tenho freqüentado aquele local. As discussões acadêmicas, as apresentações de piano e teatro; tudo era visto sempre do canto esquerdo da terceira fileira – sem que exista nisso qualquer conotação cabalística.
De início, me chamou a atenção aquele que se posicionava à frente. Algo me encantava nele. Eu notava seus traços. Ele realmente me fazia lembrar um autor famoso, de quem eu gostava muito. "Miguel Serrano, talvez?", eu pensava. O cabelo curto, de fios levemente ondulados; a tonalidade da pele; o nariz fino e comprido; os olhos claros. Assim, antes que o evento começasse, eu sorria e exercitava a imaginação. Na verdade, pouco esforço me era necessário. Assim, num instante de miragem consciente, tinha diante de mim o grande nome da literatura chilena. Poucos ali tinham consciência disso. Eu me divertia com toda aquela possibilidade. Via-me como que estando em outro país, assistindo-o em uma palestra internacional. À minha volta, soavam os mais diversos idiomas. E até que tudo começasse, segui naquela gostosa brincadeira.
Já de início, ele falava a respeito da importância daquele evento. Semear a cultura era o seu grande objetivo. Tomava como base a fala de Cícero a respeito disso.
Sem pressa, ele, de modo mágico, expunha um relato pessoal para exemplificar as fases da leitura. Dizia ter sido filho de um médico. Sem conter, eu sorria, pois também era filho de um. Ele prosseguia, dizendo que pela localidade do consultório, passava as tardes lendo na Biblioteca Pública de Curitiba. Livros indevidos, em sua maioria. Dizia sempre notar um senhor que, pelo modo que lia, lhe parecia um louco; dizia estar sempre à espera do dia em que ele tirasse uma arma de sua cintura e atirasse em todos os presentes. E fez todo este raciocínio para nos dizer que, na leitura, existem três fases: precisamos saber quando, o que e como ler. A complementar, citava a Borges: “Só se devem ler livros escritos há mais de cem anos”. Eu, pela leve surdez, havia entendido algo como: “Para que se possa ler um livro, é preciso ter conhecido outros cem”. Confusão à parte, não tive como me contentar, sorrindo por mais uma vez. Aos outros de outrem, deveria pairar uma dúvida: "De que ele sorri? Que há de engraçado nisto que acabou de ser dito?". Mas eu, ah, no fundo somente eu sabia que naquela mesma tarde, depois de uma espera aflita, o correio me havia entregado o exemplar de "Elogio da sombra", do mesmo autor.
Eu pensava, por mais uma vez: "Qual a probabilidade disso tudo? Será apenas coincidência que em tão pouco tempo, tenha eu encontrado tantas afinidades com ele?". Por vezes, caio de encanto pela vida e obra de alguém com quem eu consiga ter, em pouco tempo, uma série de afinidades, similaridades. Quanto menor for a probabilidade, maior é o encanto ao primeiro momento.
Ele expunha então uma visão crítica sobre a leitura. Afirmava que nem tudo deveria ser lido. Admitia que muitos dos "best sellers", sem que citasse nomes, tinham histórias bem escritas. Mas, em questão de aprendizado à vida, eram nulos. Por isso, recomendava a seleção de uma leitura. Me chamou a atenção quando ele dizia o mesmo que eu já havia lido em Thoreau: a idéia de que viver é caro - não necessariamente do ponto de vista econômico - e que sendo assim, teríamos de aproveitá-la da melhor maneira possível. "Cinco horas usadas para ler determinados livros automaticamente serão cinco horas perdidas", dizia Nasser. "Isso não quer dizer que todos sejam ruins... Mas, será como o relógio quebrado que ao menos uma vez por dia marca o horário certo... Nada além disso".
Retomava a fala sobre o projeto cultural adotado por minha cidade, entre outras quatro do Paraná. Expunha a situação de todas. Ao falar de Curitiba, afirmou estar ela no quinto ano. E que o próximo livro a ser discutido seria... "O jogo das contas de vidro", de Hermann Hesse. "Hesse!", eu pensava com alegria. Era uma pena, apenas, que eu não poderia estar presente. Mas, sabendo que ele deveria voltar no mês seguinte àquele teatro, eu pensava: "Falando em Hesse, quem sabe ele ainda não tenha tido a oportunidade de ler 'O círculo hermético', de Miguel Serrano... Será uma ótima oportunidade para presenteá-lo!". E relembrava ao próprio Serrano que ainda sem conhecer Hesse, comprava suas obras e as distribuía entre amigos mais próximos que, ao longo dos anos, encontrou pelo mundo na sua função de Diplomata.
Algo me confortou, quando ele, a título de curiosidade ainda sobre as leituras, afirmou ter lido mais de trezentos títulos de histórias policiais. À exceção de um apenas, sequer relembrava um trecho dos outros. Era sobretudo um conforto para mim, pois relembrava os tantos livros dos quais eu sequer lembrava dos detalhes mais gerais e, através do que era dito àquele momento, eu constatava que nem sempre isto se explica por um lapso de memória; talvez o coração não tenha tirado qualquer aprendizado, como um alimento sem nutrientes.
Uma tosse incômoda me fazia emitir desagradáveis ondas sonoras àquele ambiente que prendia minha atenção.
Antes que se iniciasse a discussão propriamente dita sobre o livro, ele procurou dar um panorama geral sobre a Rússia. Para ele, pairava sobre ela uma indecisão que a dividia entre o ocidentalismo e o orientalismo. Catarina, alemã, deu curso à Rússia européia. E neste clima, surgem os grandes nomes da literatura russa, todos do Séc. 19. "Após o obscurantismo comunista e a repressão à arte depois do Séc. 19, a Rússia não mais produziu grandes", ele observava. E em mim, mais uma afinidade se agrupava. Todas elas, agora, estavam como que entre irmãs.
"Finalmente", eu pensava, "há diante de mim alguém que tem a coragem de expor a incompatibilidade do comunismo com a arte". Eu lembrava de Trotsky, quando dizia que as mais belas obras que havia visto eram hospitais e presídios; ou mais recentemente, do marxismo renovado, a discussão de que a arte, assim como a cultura e a tradição, não passaria de um invento, um mero instrumento de legitimação da burguesia, nunca provindo do seio do povo. O que há de se pensar de um regime que se perpetuou por décadas, tendo transformado igrejas antiqüíssimas em estábulos como na Rússia, ou pirâmides em plantações, como na China? É realmente uma pena que um dos meus compositores prediletos ostente, nas suas apresentações, o velho pesadelo da foice e do martelo. Talvez, quem sabe, não tenha percebido ele que o comunismo pode ter sido tudo, menos artístico.
Falava agora a respeito da vida de Dostoievsky. Dizia ser ele filho de um médico alcoólatra, que era dono de escravos. E que dado ao seu caráter rígido, teria sido assassinado, tendo passado por um processo de castração. Freud, cujo livro predileto, "Os irmãos Karamazov", era tido como o maior livro da humanidade, relacionava este fato ocorrido com o pai como o estopim da perturbação de Dostoievsky e o início da sua epilepsia. Nasser o criticou. Dizia, de modo irônico, de nada haveria de ser mais apropriado para Freud que relacionar a castração do pai à inquietude das suas obras.
Diz-se que este célebre nome da literatura russa chegou a correr o risco de perder os direitos autorais de todas as suas obras, caso não entregasse concluídos seus novos escritos em um prazo estipulado.
Dostoievski começou a escrever depois de suas experiências junto de um grupo de jovens revolucionários. Presos rapidamente, foram levados à execução. Vendados, esperavam pela morte, até que alguém gritava: "É brincadeira!". Em pouco, na medida em que se desenvolvia como escritor, tornava-se alcoólatra, viciado em jogos e fazedor de dívidas. Muitos dos seus livros foram feitos às pressas. "Todos os trabalhos de Dostoievski parecem estar incompletos... Mas isto de modo algum tira os seus créditos... Mais valem obras incompletas, com as quais temos algo a aprender, que livros perfeitos e vazios", ele observava.
A cultura de Nasser era realmente fantástica. Deu-nos praticamente uma aula introdutória do idioma russo, quando explicava, passo a passo, os nomes dos personagens de "Crime e castigo". "Este é um dos lados bons deste evento... Percebam que ao final, todos deverão sair falando russo... Isto em apenas quatro horas!", dizia a sorrir.
Seu último parêntesis introdutório, antes de ser dado início a leitura do resumo da obra da noite, falou sobre as artes plásticas e a música. Dizia ser pintor, apesar de atuar profissionalmente nas áreas de Literatura e Economia, vivendo, segundo suas palavras, "uma identidade dupla". "Hoje, o rumo que as artes plásticas está tomando é absurdo. Chega-se ao ponto de alguém colocar tinta sob as patas de um gato, fazê-lo andar sobre a tela e ganhar prêmios e mais prêmios. Eu, como pintor, conheço realmente o significado da arte. E por isso, sei que existem muitos que pretendem enganar, nas artes plásticas". Ele complementava, para o meu contentamento: "Hoje, as pessoas freqüentam as exposições e olham para todos os lados possíveis, sem ao menos notar as obras que estão expostas. Para que se visite uma exposição, é preciso escolher cinco quadros e tapar os olhos para o resto; e então, olhar com atenção, por dez minutos, cada um deles. E deixar para voltar numa próxima oportunidade. Há tanto o que se observar!".
Contente por mais uma afinidade, eu pensava no caso de uma moça que há certo tempo fora presa por fazer pichações no MASP, em São Paulo. Diante dos repórteres, depois de solta, ela dizia: "Eu sei que o que eu faço é arte". O êxito em distorcer a nobreza que deve provir da arte, a dissolução completa da delicadeza e da sensibilidade, na sede de transformar a todos como criadores, foi atingido ao longo dos tempos. A modernização da arte, em suas mais diversas formas, foi apenas capaz de criar sujeitos como esta moça, que passam a ver tudo como arte. Um escarro, um rabisco, um animal morto. O mais vago sinal de protesto hoje se transforma em arte preciosa; em alguns casos, vale milhões.
Ainda relembro estar andando de ônibus em Curitiba, semanas antes, e ter percebido o efeito desagradável aos olhos - e porque não ao coração - ao notar a infinidade de pichações que parecem acompanhar a cidade como uma sombra maldita. Seus mentores geralmente justificam seus atos como protestos, quando, na verdade, o que fazem é uma verdadeira agressão a patrimônios públicos e privados. Triste é o governo que sem êxito em controlar as ações destes marginais, ainda as elevam ao status de "manifestação artística sub-urbana".
O fato de não se ter à disposição as melhores condições econômicas em hipótese alguma deveria justificar a criação destas manifestações grotescas da atualidade. A arte não escolhe seio social para provir. Até mesmo na grande maioria dos casos, os menos privilegiados foram os artistas que mais contribuíram à riqueza cultural da humanidade. Por este motivo, meu amigo Wendel certa vez me disse que Schubert sempre seria superior a Mendelssohn.
A música também era muito bem compreendida por Nasser. "Uma obra como 'O anel dos nibelungos', de Richard Wagner. 16 horas. Quem, nos dias de hoje, tem paciência para ouvi-la do começo ao final?". E fazendo um paralelo com as artes plásticas, dizia: "Também a música é para poucos... Quando conversei com um amigo, Maestro no Rio de Janeiro, ele me dizia que praticamente não havia procura de alunos para piano e violino, justamente porque não se é possível enganar com estes dois instrumentos. Aqui, por exemplo, alguém que não toca violino não poderá subir a ao palco e nos enganar... Infelizmente o mesmo não tem ocorrido com as artes plásticas".
A música, que antes elevava, hoje parece desejar nos conduzir ao abismo. Freqüências sonoras incômodas constantemente vêm ao nosso encontro, onde quer que estejamos. Batidas repetitivas. Letras explícitas, infames. Clipes repulsivos. E um verdadeiro exército de jovens que conduzem um espírito inigualável, que somente pode surgir em certa época, aos frangalhos. As multidões jovens se contagiam pelas mesmas doenças sonoras e assim, de mãos dadas, culturam a própria destruição.
E eu me sentia bem, apesar de pensar na triste situação dos dias atuais; percebia no palestrante uma visão parecida à minha. Isto me confortava. Eu sabia que não estava sendo o mais errado do mundo, pelo fato de estar convicto de princípios, não me vendo como um fantasma em minha própria época.
Ainda falava sobre sua relação com os livros. "É preciso dialogar com eles... Criar-se o costume de escrever ao lado das páginas. Fazer perguntas, desafiá-lo a mostrar provas. Somente assim você terá uma relação de proximidade com os livros... Contudo, as anotações precisam ser feitas a lápis - nunca a caneta ou marcador de textos. E, preferencialmente, lápis importado. Custa 1 real a mais. Por isso, o melhor é ler livros com os quais se se tenha à disposição para anotar... Também é importante, no caso de trabalhos que envolvem o nome de vários personagens, deixar ao lado uma folha e anotar seus nomes e características principais: isto deverá nos auxiliar na compreensão da história".
"Certa vez", ele dizia, "eu ouvi a melhor de todas as respostas a respeito da iniciação na leitura... Quem lê é geralmente quem é filho de pais leitores. É claro, existem exceções. Mas digo-o porquê antigamente, os livros eram muito caros. Se hoje ainda o são, imagine-se àqueles tempos! Eles eram alugados, do mesmo modo que foram as fitas de vídeo. Quem os possuía era geralmente muito rico. As leituras ocorriam em família. Não havia novelas senão através das leituras".
"Hoje há tanto o que se ler... É preciso se ter consciência da escolha. Saber chegar a uma estante repleta de títulos e escolher um único título, deixando de lado outras centenas. Não é preciso desejar todos os livros do mundo. Ao escolher um único título, podemos nos contentar a pensar que também é possível viver sem ter todos aqueles outros".
E então, seguiram-se as leituras de um resumo que ele havia preparado especialmente para aquela ocasião. A cada parágrafo lido por uma pessoa voluntária, ele tecia comentários bastante esclarecedores. Sempre se tinha a impressão de que lhe era possível falar por horas sobre cada linha ali posta.
Tudo passou tão rápido, até que chegamos a uma pausa. De súbito, fui ao seu encontro. Esperei que uma mulher falasse consigo. Ela, quem sabe, não me reconhecesse; eu bem relembrava quem era ela. Fora professora de matemática minha, nos tempos de colégio. Mas eu não tinha recordações boas suas. Não que eu quisesse ignorá-la, mas meus interesses eram outros àquele momento. Eu não desejava relembrar as circunstâncias que me levaram a ter tido um problema consigo em sala de aula. Talvez por isso, agi como se não a conhecesse. Esperei ansiosamente então, até que me foi possível cumprimentar o Sr. Nasser. Eu levava comigo um envelope amarelo, onde, carinhosamente, eu havia preparado algo para entregar a alguém que eu não imaginava ser ele.
Estendendo-lhe a mão, eu lhe disse: "Estou realmente encantado, mesmo. Encontrei uma série de afinidades entre tudo o que o senhor disse, em relação aos meus interesses pessoais. O senhor por acaso possui algum livro escrito?", "Na verdade apenas algumas introduções na área de Filosofia", "Teria algo para me recomendar?", "Sim, claro. Depois eu lhe passo os títulos". Ainda a segurar aquele pacote, eu lhe perguntei: "Seria melhor se eu lhe deixasse este pacote agora ou no final do evento? Trouxe-lhe alguns trabalhos meus de piano", "Piano? Piano erudito?", "Sim. Mas é um trabalho bastante simples, com temas relacionados com literatura". E assim, fomos subindo até a área aonde os presentes se serviam de café, sucos e alguns doces. Não quis lhe interromper, esperando pela oportunidade de conversar ao término. Mas, já me sentia um privilegiado. Também havia me chamado o modo simples e carinhoso com que havia recebido meus elogios. E eu esperava que através dos meus olhos e do meu aperto de mão, quando o cumprimentei, eu tivesse passado ao menos parte da realização que presenciava naquela noite. Pouquíssimas foram as vezes em que em um tempo tão curto, eu havia criado tanto interesse para conhecer mais a fundo o trabalho de alguém como o seu.
Algumas pessoas agora se posicionavam ao seu lado. Eu, sem ter ido acompanhado àquele lugar acompanhado, permaneci parado. Aliás, poucas foram as vezes em que convidei a alguém para prestigiar comigo eventos como este, porque sempre temi a distração que a conversa junto de um amigo poderia me trazer. Parece-me que em determinadas circunstâncias, desejo mergulhar a fundo, sozinho, nos concertos, nas peças de teatro ou, como foi este caso, um workshop relacionado com literatura.
E estático, eu observava a tudo de modo atento. As conversas em pequenos círculos; as vibrações; as pessoas que eram introduzidas umas às outras. Tudo me era profundamente agradável. Apesar da expressão um tanto quanto séria em minha face, eu estava verdadeiramente feliz. Valia-me cada segundo daquela noite.
Na bolsa, eu carregava ainda algumas cópias de alguns trabalhos de piano. Olhava para cada rosto e ficava a imaginar, brincando comigo mesmo: "Para quem devo entregar um pedaço da minha alma?". A timidez parecia me segurar. Duas belas moças estavam à minha frente e conversavam de modo a corresponder com suas respectivas belezas. Bebiam com discrição – talvez chá, talvez café. Mas eu não iria ousar perturbá-las. Tremeria de vergonha se ousasse estar diante de alguma delas, oferecendo algo meu. Também temia que fosse mesmo mal compreendido; que o simples fato de entregar um trabalho resultasse na interpretação de que eu estava à busca de segundas intenções. Entre todas aquelas vozes, eu, em silêncio, pensava ter sido aquela noite uma recompensa sem igual aos problemas cotidianos.
Eu notava os rostos de moças tão jovens. Sorria para mim mesmo, pensando: "De sorte eu seria, se tivesse criado gosto pela leitura logo cedo e não ter conhecido Dostoievski tão tarde". Mas a velha idéia do "antes tarde que nunca" me servia de ânimo, como um sopro leve.
Antes que retornássemos, simpatizei com um senhor e ofereci-lhe meu trabalho. Ele o aceitou de bom gosto. Pareceu estranhar no começo. Achou que, quem sabe, eu estivesse a vendê-los. Ou se perguntou: "Por que é que este rapaz quer me dar estes cd's?". E então, se estendeu um pequeno diálogo até que nos fosse solicitado para retornar às cadeiras.
O evento seguiu. As leituras e discussões continuaram.
Deste modo, as palmas conduziram aquele evento ao seu término. E enquanto a maioria dos seus presentes deixava seus assentos, eu me mantinha preso ao meu próprio. Com força, eu desejei lutar contra o tempo que avançava. Desejava que aquela noite tivesse a mais longa duração possível.
À espera, para poder entregar-lhe aquele pacote, aproximei-me de duas senhoras e apresentei meu trabalho. "Por gentileza, eu gostaria de saber se eu poderia deixar com vocês um trabalho que desenvolvo, de piano, baseado em obras de literatura", "Você toca piano então?", "Sim, um pouco". A outra senhora talvez não tivesse percebido que eu oferecia a ela também. Despedia-se, quando eu a entreguei: "Para a senhora também", "Ah, muito obrigado! Mas que noite, não? Eu, uma pintura; ela, uma poetisa; e agora um pianista!". Disse-lhes que era um trabalho bastante simples. Uma delas me perguntou: "Como você se chama?", "Newton". Algo me guiava a complementar: "... Schner Jr.", "Você... Você tem algum parentesco com o Dr. Schner?", "Sim, sou filho", "Filho!". E ali ficamos, como se nos conhecêssemos. A primeira senhora se despediu, dizendo que futuramente poderia me escrever. Eu estava realmente interessado em conhecê-la melhor, sobretudo porque - que me perdoe pelos meus ouvidos - eu a ouvi dizer a outra pessoa que logo faria uma exposição de seus quadros.
Quando não mais havia pessoas junto de Nasser, ele, de modo amigável, veio ao meu encontro. Lembrava do que eu havia lhe prometido. E abrindo aquele pacote amarelo, enquanto lhe expunha minhas impressões sobre seus comentários, mostrei alguns dos meus trabalhos de piano. Com carinho, ele os apanhou; um a um, notou suas capas. "São bastante simples. Alguns têm como pano de fundo obras de literatura alemã". E apontando para o "Die Räuber", eu lhe disse: "Este, baseado em 'Os bandoleiros', de Schiller, é quase que uma versão coletiva da atitude de Raskolnikov, que pretende promover a justiça aderindo a modos violentos e que, por fim, acaba se entregando às autoridades, levado pela culpa", "Olha, que interessante", "Pois então... Eu gostaria de saber se o senhor possui algum livro escrito, que me seja introdutório, pois eu não conheço sua obra", "Possuo, mas na verdade são mais na área de Economia. De qualquer forma, eu trarei em uma próxima oportunidade". Coloquei novamente os cd's no envelope e lhe entreguei. Contente, ele aceitou a tudo de coração - ele até então não havia percebido que lhe era um presente.
Não nos foi possível conversar mais. Logo, ele deveria sair à procura de um restaurante. Fomos a conversar até a entrada. Cumprimentei-o por mais uma vez, até que o vi, em alguns segundos, partir em um carro branco. Às pressas, deixei alguns dos meus trabalhos com o Sr. Alfredo, a quem originalmente aquele envelope estava destinado. Aproveitando ainda a oportunidade, pedi-lhes licença e deixei três dos últimos trabalhos restantes com três moças que, de modo bastante comportado, esperavam, provavelmente, alguém que deveria buscá-las. Todas me receberam com bastante simpatia.
Em linhas gerais, a interpretação de Nasser era a de que Raskolnikov tomou para si a idéia de ser Deus, justificando seus próprios atos. O que, por fim, faria de “Crime e castigo” uma espécie de obra-espelho do que deveria ocorrer na Rússia e na China, em alguns anos, quando o mundo foi conduzido a uma guerra bestial, com aproximadamente 60 milhões de mortos.
A equação designada para Dostoievsky seria expressada por Nasser da seguinte forma: sofrimento + pecado.
Ainda abriu um parêntesis, para afirmar que apesar das críticas feiras por Raskolnikov a Lusin, não havia em “Crime e castigo” uma conotação de cunho marxista. Disse ser um grande problema na atualidade nossa, o constante desejo, principalmente por parte da academia, de ir sempre à procura desse viés – à busca das lutas de classe, problemas de gênero ou menções a homossexualismo – nos grandes clássicos.
Apesar de ter pretendido promover a justiça, vingando a si próprio e a muitos estudantes, ao matar a banqueira Aliena Ivanovna, Raskolnikov acabou por não poupar inocentes. Ele acreditou, ao cometer certos atos, estar a destruir um princípio, não uma pessoa. Aliena, neste sentido, deveria representar a agiotagem a ser combatida. Cai, portanto, no auto-convencimento de beneficiar aos demais. E somente com a aproximação de uma prostituta – que para Nasser é, por fim, uma santa – é que decide entregar-se às autoridades.
Mas ah, como os dias são! Pela manhã e à noite anterior, eu havia estado bastante preocupado. Questões financeiras me conduziam à inquietação. Feliz ou infelizmente, às vezes não nos é possível, ao modo de Raskolnikov, simplesmente alegar que "vivemos de pensar". Questões complicadíssimas. E que, no entanto, em vão tentavam arrancar de mim o contentamento que eu havia conseguido naquele dia. Pouco antes de chegar ao evento, havia tido uma conversa tão boa que me foi um sacrifício esconder o sorriso por inúmeras vezes, pensando: "Ah, isto é tudo o que precisava ouvir... Enfim, alguém que, como eu, pensa deste modo... É tão bom perceber que não sou eu um espectro pela forma como penso".
E assim, caminhei até o carro que eu havia deixado há algumas quadras dali. Feliz, parecia não andar, mas saltitar ou mesmo flutuar. Que alegria de criança! Queria mesmo gritar, mas me contentava a resmungar baixo a mim mesmo: "Que noite! Que noite, meu amigo!". E assim, meus papéis se transformaram nas únicas testemunhas daquela noite que, apesar de não ser de Natal, me era profundamente feliz.