Sobre as leituras e os escritos

SOBRE AS LEITURAS E OS ESCRITOS

Fevereiro/2010

Schopenhauer nos diz que se internamente somos vazios, de nada nos valerão as influências externas. De pouco nos valeria a leitura e o estudo aprofundado dos Vedas, sem que tenhamos reconhecido dentro de nós mesmos um espírito nobre similar ou herdado dos antigos hindus; o contrário resultaria em constatações puramente técnicas.

Assim, por vezes, ocorre comigo. Para que eu me apaixonasse por um autor ou uma obra em específico, sempre me foi necessário encontrar-me dentro dela – sobretudo tendo relações com o meu presente. Encantar-se, neste sentido, seria o mesmo que cair-se na paixão por uma moça com quem logo na primeira conversa, encontra-se uma série de afinidades, gostos que coincidem e aparências que agradam.

Ainda relembro os tempos de adolescência, quando buscava, em filmes, retratos de situações similares àquelas que eu vivia. Em antigas revistas, eu circulava as sinopses cujas histórias possuíam algo em comum comigo: idade, estudos, interesses, situação familiar, etc.

E neste sentido, Thoreau me ensinou muito. Fui ao seu encontro, atraído por uma frase; apesar de bastante conhecida, ela me encantou como o refrão marcante de uma bela canção cujo artista me era desconhecido: “Fui morar na floresta, pois queria viver com deliberação enfrentando somente os fatos essenciais da vida, e vendo se podia aprender suas lições; evitaria assim, ao chegar a morte, descobrir que não havia vivido... Não quis conhecer o que não fosse vida – viver é tão caro; nem ter resignação alguma além do que me fosse estritamente necessário. Queria viver largamente, sugar toda a medula da vida, viver com firmeza, de modo espartano, afugentando tudo o que fosse supérfluo; cortar um talho profundo, raspar o essencial, encurralar a vida num canto e reduzi-la a seus mínimos termos. E se se provasse vil, extrair então toda sua genuína vileza. E se fosse sublime, conhecê-la bem, ser capaz de fornecer dela uma descrição completa”. Como não haveria eu de me encantar? Isto era tudo o que eu procurava, quando a fênix cantava dentro de mim, aclamando por transformações. Queria eu selecionar companhias, lugares a freqüentar; o tempo, apesar de não escasso, agora era visto como uma preciosidade. Àqueles momentos, eu me lembrava do meu amigo Garhard, quando este, soterrado por inúmeras atividades, abria o seu coração para mim e lamentava: “Ah, amigo! Tempo é o que menos nos resta! Parece que vivemos tão pouco para nós mesmos!”. E a minha busca estava determinada: viver para mim mesmo.

Foi levado por este “viver para si mesmo” que Thoreau chegou até Walden. Com esforço, construía ele sua morada, em meio a uma floresta de mata nativa, próximo a um lago. Simples, como deveria ser. Liberto da matéria, banhava seu espírito todas as manhãs com a sabedoria do Bhagavad-Gita. E tudo o que eu lia a seu respeito, através de páginas amareladas de um livro já há décadas sem ser reeditado, apenas me confirmava o pensamento de um velho amigo meu: “Não é preciso de muito para que se possa viver bem”.

Este filósofo americano me introduziu a alguns caminhos alternativos onde puder encontrar em mim minha própria Walden; no entanto, com os meus próprios passos eu já havia chegado até sua entrada. Seguido eu pareço encontrá-lo. E assim será. Ou ao menos espero que deva ser.

Goethe e seu "Werther" fizeram profundo sentido em minha vida. Tamanha era nossa relação que haviam dias que tornávamo-nos uma coisa só. Eu enxergava minha vida em seus dias. Na época, ocorria uma grande paixão e tudo o que eu vivenciava parecia coincidir com a leitura. Eu estava tão apegado àquela obra mágica que queria evitar seu fim. Lia suas páginas com leveza e atenção. Acompanhava-me sempre um copo de vinho e um caderno fiel. Aos olhos de outrem, a impressão que poderia passar era a de que eu, naquele modo, realizava um estudo minucioso; um perito daquele espelho de uma alma romântica. Deve-se dizer que se eu era Werther, naturalmente também existia uma Carlotta. Portanto, se pouco eu tivesse me visto em "Werther", sua leitura teria sigo similar à leitura superficial de qualquer estudante que às pressas, lê, enquanto come e sacode os pés, os clássicos que lhe são obrigatórios.

Estive tão aprofundado nos sentimentos daquela obra que cheguei a perder o controle: custou-me um ano a mais na faculdade. Como poderia ela agregar discussões tão minuciosas a algo que tomava meus pensamentos? Simplesmente não me era possível estar concentrado, pois aqueles parágrafos intensos corriam à minha mente; eu ouvia em mim a voz de Werther.

O êxtase me levou a desejar que outras pessoas pudessem compreender o que eu sentia. Alguns casos, contudo, foram em vão. E eu não as culpo: elas não sentiam Werther da mesma forma que eu. Algumas achavam uma simples história fantasiosa; outras, um grande exagero romântico. Mas isto não me afetava. Pelo contrário, pois na medida em que cresciam as reprovações, eu constatava que aquele livro havia sido feito para poucas pessoas e poucos momentos.

Eu havia me encontrado nele. Aquele romantismo, aquela persistência jovial em não temer o maior dos inimigos. Tudo pelo amor. Uma chama interna que o faz destemido. Desta forma, eu passava a me identificar com o espírito de Werther. Posteriormente, com Schiller, eu transportava o sacrifício heróico a outro sentido. Não o limitava apenas a uma mulher, mas também enxergava a possibilidade de se sacrificar-se por um familiar, uma comunidade ou um ideal. Já não mais me identificava com o ato final do personagem de Goethe, mas sua lição mais preciosa me havia sido concedida de modo minucioso.

São tempos que me geram saudades. Aquela ausência de criticismo, cuja essência se aproximava muito da minha situação pessoal, me fazia absorver aquela obra sem medo. Talvez minha grande motivação para a leitura, neste sentido, seja a novidade. Ou melhor, me é um dever. Será uma grande tristeza não mais encontrar novidades nos livros; não mais conseguir saciar a sede de descoberta. Quando a vida já não tiver mais motivações, quando existir a conformidade de que se sabe o suficiente, direta ou indiretamente se chegará ao fim.

Certamente que muitos livros me presentearam com fabulosas lições de vida. E é impressionante como às vezes nós nos encontramos nos livros. Há dias em que sequer é nossa pretensão de ir a alguma estante para ter às mãos algum título que corresponda com nossa situação atual!

Nos tempos de ateísmo mais ceticista, corria-me à mente uma possibilidade que, aos meus olhos, fazia muito sentido: a de que apesar de mortais, ser-nos possível prolongar a vida através da manifestação artística. Pensava que, por exemplo, as gerações que acompanharam Beethoven choraram sua morte; mas em anos, seu espírito, nascido de tudo aquilo que deixara enquanto artista, estava mais vivo que nunca. Para o artista, no caso, a imortalidade estaria em não cair no esquecimento. Boa idéia. Contudo, pensava ser minha e, como tudo, algo parecia tocar meu ombro para me alertar que como jovem, ainda era aquela uma idéia isolada. Mas com Heidegger e também com Schopenhauer, me foi possível chegar até a conhecida expressão: Ante ortum nihil est homo, nec post funera quidquam: porque [nós, enquanto corpo ou matéria], antes da vida e depois da morte somos um nada.

Também o filósofo Marquês de Maricá pensava do mesmo modo. Ele, a quem tanto me havia encantado nos tempos de juventude, havia escrito seu epitáfio da seguinte forma:

Aqui jaz o corpo apenas

Do Marquês de Maricá:

Quem quiser saber-lhe da alma,

Nos seus livros a achará.

Daí, a relação da vida com a arte. É-nos comum encontrar capítulos ou obras sob o título de "Vida e obra" de determinado autor. Na verdade, em algumas situações, sequer deveria existir esta separação, pois a obra girou em torno da vida. Quem desejar conhecer o seio da alma – angústias, temores, sonhos, saudades e decepções – deverá ler as entrelinhas, e lá encontrará o que tanto busca.

No meu caso, sempre tive dificuldades quando, por vontade própria ou não, desenvolvia textos impessoais. "Sonho e culpa", o primeiro romance que escrevi, me foi difícil, porque apesar de inserir sempre algo que remetesse à minha pessoa, onde é possível perceber que cada personagem guarda em si uma característica minha, a impessoalidade deveria ser a regra; e hoje, por conta destes e de outros fatores, sou bastante crítico com ele.

A necessidade de impessoalidade me é também grande empecilho no que diz respeito à academia. Naturalmente, eu a vejo com bons olhos, mas parece que não cabe a mim o mérito de desenvolvê-la. São coisas mínimas que transformam todo o percurso de alguém que sem ter sido sua intenção, desenvolveu um meio de falar de si próprio através dos papéis.

Nos livros encontramos semelhanças à nossa própria maneira de pensar, impressionante como também, através dos livros, indiretamente encontramos respostas para nossas próprias perguntas.

Depois de tempos, a escrita passava por uma nova fase. Entre 2005 e 2006, tudo me era tão fácil. Noites de inspiração me faziam preencher blocos inteiros. Ainda possuo inúmeros registros destes tempos. O que me guiava era a naturalidade, a espontaneidade. Não me forçava, nem procurava lapidar o que fazia. Praticamente não revi nenhum dos meus textos. Mas hoje, como tudo me é diferente! Apesar da simplicidade que parece sempre nortear meus pensamentos e palavras, já não produzo mais com a mesma euforia. Não que idéias não deixem de circular constantemente em minha mente, mas, à hora de sentar-se e escrever, passo a ser mais exigente comigo mesmo. Encho as folhas de rabiscos, setas; substituo palavras, adiciono outras. E mesmo assim, basta que alguns dias se passem para que eu retorne meus olhos ao texto que pense que muito ainda precisa ser melhorado. É impressionante que apesar de reconhecer que a sinceridade e o esforço terem sido regras das manifestações minhas em termos de escrita, chego mesmo a sentir aflição a rever os produtos do meu passado. Isto me ocorre, a tal ponto de imaginar que em alguns meses ou anos, ao rever este próprio texto, eu direi a mim mesmo que não estou contente com o seu resultado; que suas idéias eram demasiado desinteressantes, supérfluas, ingênuas.

Olhando para esta sede de perfeccionismo, depois de um tempo eu me perguntava se isto teria, algum dia, ocorrido com outros autores. Por que nutria tanta vergonha dos meus próprios escritos passados? Por que, em alguns momentos, chegava a recusar-me de passear os olhos sobre anotações antigas, dos tempos de colégio, quando eu fazia nascer as primeiras idéias de romances e poemas? A sensação que eu tinha era a mesma de Nietzsche, encarando cada obra nova como um novo adeus. E deste modo, ao que me parece, deverei seguir. Cada escrito e cada trabalho de piano será como que um adeus, para que algo novo possa crescer. E por isso, me foi tão importante ter estado em contato com as palavras de Jorge Luis Borges. Em uma noite inquietante, quando eu tomava contato de sua obra e, ao mesmo tempo, buscava um refúgio para minhas angústias, via-o dizer que também sequer fazia questão de recordar os títulos antigos de seus primeiros trabalhos; começara ele como escritor, definitivamente, em seu quarto livro. Talvez estivesse certo. É preciso, quem sabe, ter a coragem de destruir as próprias obras para, enfim, poder dizer a si mesmo: "Sim, agora estou pronto".

O tempo, na escrita, é um mistério. Escrever parece-me requerer um tempo precioso, do qual não se pode esperar com ansiedade ou pressa. Borges iniciou seus escritos aos sete anos. Contudo, as circunstâncias da vida o fizeram apagar tudo para que, enfim, dezoito anos depois decidisse publicar sua primeira obra. Quanto tempo nos é necessário, então? Quanto é preciso esperar, para que possamos reconhecer a maturidade que se atingiu? Isto é, por certo, um grande mistério. O espírito em constante transformação parece se chocar passo a passo com a necessidade de construir e destruir; um ovo giratório de Hesse, por onde o pássaro passa a cada instante, morrendo e renascendo.

O perfeccionismo, embora necessário, torna-se prejudicial quando não chegamos ao Momento de Decisão, com base em Borges. Produz-se de modo intenso, sem que algo seja disponibilizado, porque se acredita poder melhorar; ou, em outra esfera, não se faz porque já não se concorda mais com o conteúdo daquilo que foi escrito.

Deverá chegar um tempo em que os primeiros passos reais definitivos deverão ser dados. E pelo compromisso artístico, devemos, mesmo que contra nossa própria vontade, disponibilizar nossas próprias produções. Do contrário, dificilmente chegaremos à constatação de que algo está pronto o suficiente para ser disponibilizado. A menos que continuemos os mesmos, a sede de perfeccionismo, de exigência para consigo mesmo, deverá nos acompanhar. Não se pode cair no erro de acumular papéis para si próprio. Se aprendemos com os livros ou pessoas, torna-se uma obrigação ética retribuir, de algum modo, o que nos foi ensinado. O contrário disso será uma manifestação puramente egoísta. Pensar que não se deve disponibilizar por um ou outro erro também é uma atitude errônea; é uma visão limitada e, diga-se de passagem, purista demais, como se nenhum grande homem tivesse, ao menos um dia, ter dado um passo em falso. A verdade é que muito se aprende com os erros.

Muito aprendi com as leituras; e muito hei de aprender.

O ato de escrever não se tornou apenas uma necessidade de expressar-se, de libertar um pássaro para que os próximos possam chocar seus ovos; me é, também, uma obrigação, como se estivesse a mostrar os meus primeiros passos, resultantes do aprendizado através de livros, amigos e experiências pessoais.

Como a fruta que se transforma em adubo, tudo o que vem da terra deve retornar a ela. A arte, neste sentido, não é senão fruto da natureza. Aquilo que absorvemos dos nutrientes da literatura precisa, de alguma forma, retornar ao solo, resultando no prolongamento da vida. Nada mais egoísta e antinatural que manter estes nutrientes para si próprio, mantendo-se à parte de um ciclo divino e eterno.

Newton Schner Jr
Enviado por Newton Schner Jr em 24/02/2010
Reeditado em 08/05/2010
Código do texto: T2105050