A incompletude do eu: experiências de solidão no sujeito contemporâneo a partir do livro “Lunário” de Al Berto.

Auto-descoberta, vontade de conhecer a si próprio diante de uma multidão de pensamentos alheios que não corroboram uma verdade íntima. Talvez essa perspectiva pudesse ser distintiva, ou seja, algo que caracteriza o sujeito na relação que se estabelece entre ele e os outros em uma contingência diversificada. Talvez essa perspectiva, também, não destoe da posição aparente que o sujeito mantém diante do banal de uma modernidade que o exclui ao mesmo tempo em que o afirma, quer dizer, de um lado descarta o seu eu, a sua personalidade, de outro como processo constante afirma a sua marginalidade, para ser mais claro, a sua intervenção no mundo pelo viés do anonimato, por sua natureza, à margem das coisas.

A partir disso perguntamos: o sujeito como está colocado pode ser encarado como reflexo da problematização tendo como ponto de partida a noção de finitude da vida colocada por Al Berto no livro “Lunário”? Ou para não ir tão longe e não dar passos tão longos, num primeiro momento, podemos dizer que o sujeito como está colocado no livro do destacado escritor português representa com profunda propriedade um processo de incompletude do eu que por isso sai numa busca infindável pelo outro?

É evidente que podemos responder tanto ao primeiro quanto ao segundo questionamentos pela afirmativa. O interesse de Al Berto parece estar centrado em um paradoxo inevitável que funde a individualidade do ser com a contingência na qual ele está inserido. Para isso o escritor não abre mão da singularidade que recai constantemente sobre os personagens que constitui a obra.

Posto isso compreendemos que Beno (protagonista da narrativa) não está conformado com o lugar que lhe é conferido e sai estonteante numa busca desenfreada por outros lugares, outros portos.

"A gaivota saíra do enquadramento da janela e Beno, estendendo as pernas, voltou à posição inicial, encolhendo-se na cadeira. Suspirou, acendeu um cigarro ao mesmo tempo que retomava a teia do pensamento: “nesse tempo, não tinha casa nem lugar certo para morar. Durante anos morei em casa de amigos ou em quartos de pensão, por onde ia largando um rastro de tralha inútil...mas nunca me rodeei verdadeiramente de objetos, nunca possuí coisas, e com o rodar dos anos acabei por desfazer-me dos poucos que guardei e em mim evocavam encontros felizes, fortuitas cumplicidades, ou simples travessias das noites da cidade”. (pg. 11-12)

Beno, de certa forma, parece estar conformado com a vida errante que o levava para lugares incertos sempre reavivando nele um desapego, sobretudo, a coisas materiais que sempre ficavam pelo caminho. Esse desapego se enquadra num percurso obscuro não contradizendo o desejo de possuir o outro num eterno devir ainda que o outro pareça imagem criadora, linha tênue separando de um lado a imagem viva, de outro o esquecimento dela. Beno vive isso à medida que vai se deparando com os outros personagens da narrativa.

Colocando isso, até agora, entramos no segundo questionamento sem esquecermos o ponto de partida, o mar que ainda não foi desbravado. E assim, compreendemos essa incompletude de Beno, a incompletude de si próprio, como mola propulsora de sua vida errante, pois está sempre em busca de algo que lhe não possui. Evidentemente, esse desapego, esse não possuir não a si próprio, mas o outro ou ainda menos ser possuído por esse que talvez esteja na multidão e que não o é permitido ver e nem ser visto, revela a solidão como preocupação constante de Al Berto. Esta solidão, inevitavelmente, perpassa toda a obra.

"Havia meses, talvez anos, que ninguém lhe telefonava ou escrevia. Ninguém dava notícias e ele também não as tinha para dar. Nada lhe acontecia que merecesse perder tempo a contar. Os dias iam passando, iguais e monótonos, e dificilmente se distinguiam uns dos outros. Algumas semanas atrás, o telefone ainda tocara com freqüência, mas sempre por engano. Outras vezes, batiam à porta e perguntavam se não era ali que morava o senhor Oliveira. Não, não era ali, o senhor Oliveira morrera ano e meio antes de Beno alugar aquele apartamento. Durante um tempo que ele não conseguia medir, devolvera ao carteiro a correspondência que chegava com regularidade para o antigo inquilino. Depois, a partir de certa altura, não chegaram mais cartas e Beno começou a sentir-se abandonado". (...) (pg.13)

O abandono a que Beno está prostrado corrobora o fato de que a solidão experimentada por ele aparece como resultado de certo isolamento não escolhido em contrapartida ao recolhimento espontâneo. Por isso experimenta o tédio, a melancolia, o cansaço que, ao seu turno, acaba por impulsioná-lo a buscar novas sensações. Assim, Beno se depara com uma fase em sua vida marcada pela falta de sentido existencial. Isso acaba também por gerar nele uma necessidade de fugir da monotonia.

De acordo com Fernando Pontes (1999) “na multidão das cidades, a proximidade terá um efeito paradoxalmente distanciador das pessoas”. Segundo esse autor, a solidão experimentada pelas pessoas ainda que inseridas em uma sociedade marcada pela contingência é o resultado do aprisionamento à sua própria individualidade aludida por esse valor existencial que é cada vez menor. O contraste entre o íntimo (privado) e o mundo (público) a partir da modernidade encerra o sujeito na “pequenez de sua vida radicalmente individual”.

Dessa forma, Beno experimente esse aprisionamento, o aprisionamento em sua própria individualidade. Diante da multidão se apresenta como personalidade livre, mas não perceptível a ponto de causar impacto, pois está inserido em uma esfera absolutamente íntima (privada).

Para Denílson Lopes (2002):

"O individualismo, como um desdobramento histórico do mito do homem, é uma ideologia moderna, ou seja, um conjunto de representações comuns, específicas da civilização moderna, em formação a partir do Renascimento. O individualismo destaca o indivíduo do homem contrapondo-se a uma perspectiva holística. Não é que o indivíduo como sujeito empírico seja uma característica nova da modernidade, mas sim como ser moral, autônomo e essencialmente não social". (pg. 90)

Segundo esse autor, o individualismo como representação específica da civilização moderna pode ser encarado como “desdobramento histórico do homem” que, por sua vez, está inserido nessa sociedade. Assim, é possível percebermos o indivíduo dotado de singularidades distinguidoras que nos permitem afirmar que estas caracterizações se deslocam, quer dizer, não marcam uma estagnação, mas sobretudo movimentos contínuos e constitutivos da modernidade, por sua natureza, reflexo não destoante do Renascimento. Esse individualismo, como está posto, possibilitou de certa forma a sustentabilidade da exploração de todo o mundo conhecido.

Entretanto – ainda para Lopes – a falta de sociabilidade notada facilmente nesse individualismo acabou por prender o sujeito em uma crise altamente intimista e tão profundamente valorada por artistas do século XIX como é o caso dos ultra-românticos e dos decadentistas simbolistas principiados por Baudelaire. Segundo Lopes, o resultado de tudo isso foi a “perda de uma identidade individual claramente definida”. (pg. 90)

Experimentar novos corpos também não era o bastante para assegurar tranqüilidade a Beno, pois logo lhe vem o medo da perda e do esquecimento. Assim, Nému aprece para ele de uma forma bastante misteriosa. A partir disso o medo da perda e do esquecimento torna-se ainda maior.

O corpo como marca de um homoerotismo não parece destoar da relação que já foi mencionada entre o íntimo (privado) e o mundo (público), nem tão menos da objetividade e da subjetividade.

Assim, podemos raciocinar com Guacira L. Louro (2004) que afirma que as posições sociais dos sujeitos são profundamente marcadas por seus corpos. Com o passar do tempo as classificações, as ordens e as hierarquias são definidas pelas aparências corporificas do sujeito. Para isso são valorados de acordo com os padrões da cultura, por sua vez, reflexo do pensamento dominante de um dado período.

Também nessa mesma perspectiva Kátia Maheirie (2002) afirma que:

"Sendo corpo e consciência, ao mesmo tempo, o sujeito é objetividade (pois é corpo) e subjetividade (pois é consciência), não podendo ser reduzido a nenhuma dessas duas dimensões. O Eu, a identidade, a subjetividade ou a especificidade do sujeito, aparece como produto das relações do corpo e da consciência com o mundo, conseqüência da relação dialética entre objetividade e subjetividade no contexto social". (Kátia Maheirie, 2002)

Sendo assim, o sujeito emerge de uma contingência como resultado da relação entre corpo e consciência ao mesmo tempo que se relaciona com o outro e com o mundo. O homoerotismo, nesse sentido, envolve Beno em um contato constante com o outro do mesmo sexo expondo, dessa forma, sua individualidade e a falta, a incompletude que observamos nela. Portanto, é o desejo de relacionar-se, de se completar com o outro o ponto decisivo para a compreensão da obra.

A partir disso, compreendemos com mais clareza que esse contato estabelecido entre sua individualidade e a de outras pessoas gera em Beno um profundo medo de perdê-las. Por isso se enclausura no pensamento que lhe mostra a todo momento que a vida sendo passageira para todos os seres humanos, logo também será para as pessoas que estão ao seu lado. Desaparecerão da mesma forma que surgiram.

O sujeito contemporâneo na agitação de uma cidade ou na quietude de uma casa vazia encara a vida como algo que se mostra a ele e, ele nesse movimento infinito e inevitável enxerga as imagens que passam e se envolvendo com elas percebe a passagem, isto é, o seu surgimento e desaparecimento na cadeia de um tempo impalpável e incontrolável.

Isto vale para a constituição do sujeito não necessariamente singular inserido em uma dimensão temporal que implica, por sua vez, relação com o passado, o presente e o futuro. Por meio destas questões podemos dizer que o sujeito, numa incompletude de si próprio, experimenta a relação com o outro se apresentando, inevitavelmente, como identidade construída por oposições, conflitos e negociações, sendo constantemente inventada em um processo aberto, nunca acabado.

Assim, a incompletude do sujeito está marcada por estas experiências, esse devir. Al Berto esteve interessado em todo esse processo. Portanto, o sujeito contemporâneo é marcado não pelo preenchimento, mas pela falta, a incompletude que o faz marchar em direção ao outro.

Referências

BERTO, Al. Lunário. Assírio & Alvim. Ed. 518. Lisboa, 1999.

LOPES, Denílson. O homem que amava rapazes e outros ensaios. Rio de Janeiro: Acroplano, 2002.

LOURO, Guacira. L. Um corpo estranho: ensaios sobre a sexualidade e a teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

MAHEIRIE, Kátia. Constituição do sujeito, subjetividade e identidade.

Interação, Jun. 2002, vol. 7, no. 13, p. 31 - 44. ISSN 1413 – 2907.

Leon Cardoso
Enviado por Leon Cardoso em 23/02/2010
Reeditado em 18/09/2020
Código do texto: T2102990
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