Uma possivel leitura de O quieto Animal da Esquina de João Gilberto Noll

O QUIETO ANIMAL DA ESQUINA

JOÃO GILBERTO NOLL

por: Josiane Aline Geroldi

VELOCIDADE DE UMA IMAGEM ONIRICA.

A leitura de O Quieto Animal da Esquina de João Gilberto Noll transporta o leitor para um ambiente 'desorientado', parece que, como o narrador (“pensei que minha vida estava custando a se ajeitar”p.449), o leitor precisa buscar uma trajetória no texto, pois o tempo e o espaço não se situam na mesma ordem em que estamos habituados a encontrar, as imagens se sobrepõem umas as outras, mudam de hora a outra sem guiar o leitor por essas mudanças. Este procedimento pede a intervenção do leitor na hora de unir as partes e criar mentalmente uma trajetória para aquela personagem, haja visto que durante o texto encontramos vários focos narrativos numa mesma imagem.

Passado, presente e futuro se confundem, e a impressão que tive em alguns momentos é que se alterarmos a ordem dos fatos e parágrafos, essa ordem não interferirá na compreensão da narrativa. A única certeza é o seu desejo pela escrita. Acredito que o fio condutor da narrativa seja este desejo, cada novo bloco de acontecimentos só ocorre porque por alguma razão o narrador se desloca no espaço para uma nova tentativa de criação, como podemos observar: “às vezes até parava em filas de candidatos a algum emprego, puxava então qualquer pedaço de papel do bolso, uma caneta, se alguém me olhasse eu simulava um ar meio severo, como se estivesse anotando não uns versos que vinham a cabeça, mas o lembrete de uma obrigação urgente.”(p.445) E em cada espaço da narrativa podemos acompanhar uma nova tentativa : “ [...] eu podia aproveitar aquele silêncio para escrever um poema, pegar um pedaço de papel do bolso, uma caneta, imagens de coisas que ondulavam andavam me perseguindo, talvez um caule fino, muito fino sob a aragem (p.448)” O que causa certo estranhamento é que esta vontade não vai além do desejo, por que em raros momentos o instinto criativo chega a se concretizar, parece que a escrita leva o escritor a se meter em “encrencas” e toda a vez que ele tenta materializar um novo verso, algo de estranho e inusitado acontece e interrompe a sua empreitada. Frases com o seguinte sentido: “ vendo talvez senão me saia um verso”(p.451) ou “ sonhei que fazia um poema” (p.453)são comuns e constantes em toda a narrativa, por isso o desejo, mas nunca a concretização deste.

Talvez seja por isso que temos a sensação de trânsito em quase toda a narrativa, (desejo de movimento e deslocamento), o narrador convida o leitor para acompanhá-lo na busca pelo lugar certo onde a sua vontade de escrever possa se concretizar e isso parece ter um começo quando depois de ter sido preso por estupro, um homem aparece e diz que vai ajudá-lo :“ Senti um toque no meu ombro, olhei para trás , era um homem de chapéu , um sobretudo preto[...] e me falou que ia agora com ele, que ia sair dali, ia para uma clinica em São Leopoldo, e ele me passou um pacote, disse que ali havia livros de poesia e umas folhas para eu escrever”(p.453)

Mesmo sem conhecer o sujeito o narrador aceita o convite e acredita que a sua vida iria mudar. “Me agarraria com unhas e dentes àquela oportunidade única que eu não sabia de onde tinha vindo nem até onde iria, sim, eu não a deixaria escapar, mesmo que tivesse de fazer exatamente o que eles esperassem de mim, aquilo era meu (p.459).” A voz de O quieto animal da esquina nutre em si o desejo pela escrita, e pensa que para concretizar esse desejo ele precisa se instalar numa realidade que não seja a que ele está habitualmente inserido e essa oportunidade alimenta ainda mais a crença de que precisa sair da realidade vazia que o rodeia, para ser poeta.

O que acontece em seguida, pode ser visto na velocidade de uma imagem onírica, os fatos acontecem sem termos certeza da trajetória do narrador. Vamos por partes: o narrador é levado para a clínica Almanova em São Leopoldo, lá é instalado num quarto e acorda com o desejo de escrever um poema sobre cavalos, que de fato estavam em baixo de sua janela. Ele monta nos cavalos e avista “a uns cem metros, no alto de uma colina mansa, uma casa de madeira, amarela, soltando fumaça pela chaminé”. Temos aí o inicio de um novo bloco narrativo, que é difícil de dizer se é fato ou se é sonho, o enigma está instaurado, a leitura conduz o leitor a contradição, porque os fatos que surgem neste novo bloco seriam de fundamental importância na vida do narrador, uma vez que ele reencontra Mariana, moça a qual ele havia estuprado, e tem com ela um filho, porém esse fato logo é esquecido e apagado de sua memória quando ressurge na história a figura daquele homem que o havia retirado da delegacia: “ o homem se aproximou, me sacudiu de leve, disse que chegara o dia da minha alta na clínica, que hoje eu iria para a minha nova casa. Dei uns passos para trás, recuando, eu não queria voltar.O homem veio e me pegou no rosto, me fez olhar um quarto de paredes acinzentadas que custei um pouco a reconhecer.”(p.445) Mas adiante ele diz: “ eu me sentia esquecido, bobo, estonteado.” O que acredito que reforce a idéia de que o bloco narrativo que se passa ao lado de Mariana na casa amarela no alto da colina seja realmente fruto da imaginação do narrador. isso pode ser observado a partir deste enunciado “ eu de cabelos compridos, com uma barba crescida - nunca a deixara antes crescer. Algum tempo tinha se passado, agora eu vi, e não pouco tempo: aqueles cabelos longos e a barba bem espessa eram alguns sinais dele”..(p.455). Podemos perceber um ser em fragmentos, que não tem certeza de si, e que procura através da escrita dar sentido para sua existência, na sua nova casa o narrador acredita que finalmente encontrará o lugar da poesia e o espaço que precisa para se dedicar a escrita: “ abri a gaveta, tinha folhas em branco, sentei[...] comecei a escrever uma carta para a minha mãe[...] apenas para informá-la que ia bem e de que tão cedo ela não saberia de mim, pois o tempo que tivesse agora seria tão-só para escrever os meus poemas, que escrever cartas para mim era roubar o tempo da poesia...”(p.458) parece então que é chegada a hora da escrita na vida do narrador: “ sentado à mesa do meu quarto procurava diariamente preencher as folhas da gaveta, ia escrevendo os meus versos olhando pela janela os eucaliptos, e enquanto escrevia, a imagem dos eucaliptos saia de si e ocupava todo o terreno dos meus olhos como algo que eu não pudesse mais distinguir”( p.459)

Ao mesmo tempo que temos a impressão que o narrador encontrou o seu lugar, instaura-se o mistério, pois a sobreposição de imagens continua, e a linearidade não tem lugar nesta narrativa, parece-me que temos dois planos narrativos, um que retrata o cotidiano na casa de Kurt, e outro que trata exclusivamente do oficio da escrita: “ O poema que eu fazia agora falava de uma despedida, e nessa despedida explodia um ódio que dilacerava tudo - cortina rasgada, farelos na parede, sangue na lapela. Faltava alguma coisa ao final desse poema que havia três dias eu suava em vão para encontrar (p.463). Cada foco narrativo destinado a escrita é estritamente delimitado a esse exercício. Em poucos momentos conseguimos fazer relação dos poemas com o cotidiano do narrador por exemplo: “ Fiquei ali deitado de bruços entre a relva alta, feito escondido na trincheira de uma guerra, divagando que eu começava a entrar num mundo desconhecido[...] a seguir podemos ler o seguinte trecho: “ Dias depois escrevi de um jato um poema que chamei “ cenas de guerra”, o estampido longicuo, o tremor em volta, a hemorragia escorrendo pelas narinas do guri que acorda.(p.464). São poucos os momentos em que podemos ter acesso ao que o narrador produz enquanto escrita.

O próprio título do romance dá nome a um de seus poemas, o que nos prova mais uma vez que o norteia a narrativa é o oficio da escrita do narrador “[...] peguei o guardanapo de papel com o poema que eu guardava no bolso desde o embarque no galeão, ainda não me ocorrera um nome para ele, me perguntei se “ o quieto animal da esquina” não seria o titulo que aquele poema estava pedindo[...]”(p.486) . “O quieto animal da esquina” nos remete a um ser submisso, a espreita, no meio do caminho, “na esquina”: um lugar que liga caminhos diferentes, que faz curvas, vulgarmente conhecido como um lugar de prostituição. Como o próprio narrador diz: “ não seria este o título que aquele poema estava pedindo?”, Logo, não seria este título que a sua própria história estava a merecer?. A situação em que o narrador se encontra é justamente a de um animal na esquina, entre caminhos, sem saber pra qual dos lados seguir, quieto, por estar submisso a sua situação e esperando que a sua realidade mude de maneira milagrosa. E assim ele acaba escrevendo um romance.

O quieto animal da esquina de João Gilberto Noll, instiga pela confusão de imagens e incertezas, conduzindo o leitor por um labirinto de possibilidades e contradições, numa narrativa que não aparece como unidade, mas como caminhos para uma mesma narrativa, deixando o leitor numa situação de alerta constante tal qual seu narrador, quieto, entre caminhos da escrita.

Josiane Geroldi
Enviado por Josiane Geroldi em 23/02/2010
Código do texto: T2102318
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