Hoje Freud me visitou
Quando convidamos alguém a visitar a nossa casa o fazemos pela satisfação e pelo prazer que iremos sentir em tal companhia. É certo, também, que nem sempre conhecemos bem nossos convidados e podemos nos decepcionar. Mas, é preciso arriscar-se ao gozo do que ficar na ausência. Por isso, hoje convidei Sigmund Freud para tomar um chá.
Confesso que não me sentia muito a vontade. Tinha certa resistência e preconceito, pois muitas versões ouvi a seu respeito. Era mesmo a minha ignorância que me afastava de tão ilustre homem. Como hoje eu estava um tanto excitada, resolvi chama-lo assim mesmo, pois se há alguém que desvendou certas nuances do sexo e da libido (energia vital) foi ele.
Embora eu ainda rejeite muitos de seus pensamentos, foi interessante encontrar o homem desnudo do mestre, do teórico. Ele disse que se sentiu incompreendido durante toda a vida, e que realmente viveu dificuldades financeiras ao longo do tempo. Mas seu pensamento nunca foi escasso, seu trabalho foi sua fortuna.
No alto dos seus 70 anos, o pai da psicanálise explicou que “a morte nos parece menos intolerável do que os fardos que carregamos. Tudo o que vive perece. Porque deveria o homem constituir uma exceção?”. Disse ainda que não se considerava um pessimista, pois esse tempo lhe ensinou a aceitar a vida com serena humildade. E, completou “ainda prefiro a existência à extinção”.
Apesar de ser considerado genial, não via a fama como algo conquistado em vida, mas após a morte. Em seguida, destacou “não aspiro à glória póstuma. Minha modéstia não é virtude”. Antes que servisse a terceira xícara de chá revelou que “nossos complexos são a fonte de nossa fraqueza; mas, com freqüência, são também a fonte de nossa força”.
Eu já tinha ouvido algo sobre fraqueza é força. Pedi que me falasse mais, pois quando certas palavras agitam meus pensamentos minha ânsia de chegar ao fim do enigma aumenta. Delicadamente ouvi “a sua busca é a busca do seu coração”. Com essa frase quase perdi o fôlego ao tentar procurar por meu peito e decifrar as batidas da minha procura. O que estaria buscando? Quais os meus complexos? Qual minha força-fraqueza? Era um carretel de perguntas se desenrolando. Comi um pedaço de bolo para perceber que aroma me levava por esse mundo.
Diante de minha pausa, educadamente ele falou “nossa vida é necessariamente uma série de compromissos, uma luta interminável entre o ego e seu ambiente. Por exemplo, os animais não sofrem de uma personalidade dividida, da desintegração do ego, que resulta da tentativa do homem de adaptar-se a padrões de civilização demasiado elevados para o seu mecanismo intelectual e psíquico. O selvagem, como o animal, é cruel, mas não tem a maldade do homem civilizado. A maldade é a vingança do homem contra a sociedade, pelas restrições que ela impõe. As mais desagradáveis características do homem são geradas por esse ajustamento precário a uma civilização complicada. É o resultado do conflito entre nossos instintos e nossa cultura. Muito mais desagradáveis são as emoções simples e diretas de um cão, ao balançar a cauda, ou ao latir expressando seu desprazer. As emoções do cão lembram-nos os heróis da Antiguidade. Talvez seja essa a razão por que inconscientemente damos aos nossos cães nomes de heróis como Aquiles e Heitor”.
Nossa, eu fiquei extasiada. Há muito já vinha lucubrando sobre os males da racionalidade, da complexidade do pensamento e da inteligência. Era isso, havia algo de instinto e civilidade em guerra, em choque, em contradição. Fiquei agradecida ao constatar que eu não caminhava sozinha por esse terreno obscuro. Indaguei-me porque não tinha um cão. (risos).
O sol estava se pondo e o encontro chegando ao fim. Citando Nietzsche ele me acalentou dizendo que o filósofo foi um dos primeiros psicanalistas. “É surpreendente até que ponto a sua intuição prenuncia as novas descobertas. Ninguém se apercebeu mais profundamente dos motivos duais da conduta humana, e da insistência do princípio do prazer em predominar indefinidamente. O Zaratustra diz: A dor grita: Vai! Mas o prazer quer eternidade Pura, profundamente eternidade.”
Minha libido aflorava ainda mais ao compasso de cada palavra colocada no seu devido lugar. Olhei para ele profundamente como a um espelho procurando o reflexo ele sorriu e disse “não, eu não sou um pessimista, enquanto tiver meus filhos, minha mulher e minhas flores! Não sou infeliz – ao menos não mais infeliz que os outros”.
Ele se foi e eu fiquei aqui com o eco das últimas frases... não, eu não sou um pessimista... não sou infeliz... não mais infeliz que os outros... Tomei o último gole do chá, bati um papo com o meu ego e assumi minha busca incessante pelo prazer.