A PALAVRA ALFORRIADA

Silvério, confrade recém-chegado ao meu coração antigo! Acuso o recebimento de teu poema, via e-mail. Atendo, de imediato, ao teu pedido de análise crítica, de apreciação de fundo e forma.

Registro a forma original:

“As sombras meditam na areia

São torres caídas entre pegadas, folhagens, fezes

E entre a ardente alvura da tarde

Meu corpo enterra-se como queimadura aberta

Lá onde o céu é anjo alforriado

Uma coluna de água horizontal desliza

Sobre a cidade vermelha de cabeças uniformes

Seria uma ilha esse círculo de dedos?

Quebra-se o oceano em centenas de curvas

Até que as gotas possam descansar abraçadas

Cada peça no seu devido lugar

São elas os espelhos do arrebol”

Agradeço a tua atenção e zelo, e percebo, por tua espontaneidade, que realmente gostas de Poesia e aprecias a análise sobre o texto, o qual, aliás, nunca é somente nosso, porque poesia é confluência.

Vinculo-me à corrente crítica de que tudo o que se escreve hoje, depois de milênios de palavra escrita, é INTERTEXTO. Ou seja, subjacente ao texto, estão outras palavras antes ditas, escritas e absorvidas pelo autor...

Portanto, a tal de criatividade é mera contingência de reflexão, de ruminação sobre o que foi absorvido, mercê do talento poético inexplicavelmente presente na cuca do autor. Do nada nasce o nada. Se não tiveres leitura acumulada, a não ser que tu sejas um "gênio", produzirás somente a limitação de teu talento pessoal, único, e que transparece no chamado instante de “INSPIRAÇÃO”, o qual, em verdade, é apenas o primeiro momento do processo de criação. Se bem ser este primordial para a peça poética que, posteriormente burilada, lapidada, fruto emergente do trabalho de "TRANSPIRAÇÃO", irá rolar no mundo,

Em cada milênio de humanidade, em cada idioma, ergue-se do nada o traço da genialidade única, e que nos deixa boquiabertos. Porém, constata-se um gênio a cada mil anos, segundo as estatísticas predominantes... É só observar o elenco dos iluminados, a cada época, a cada século, a cada corrente de poeticidade assentada na filosofia, como objeto estético.

Porque a alta Poesia (mesmo que composta de palavras simples, usuais) é sempre eivada de conhecimento filosófico, pleno da história do Homem e de suas enxaquecas do viver no mundo. Um convite a olhar para o passado e um elo com o futuro. No poema de largueza universal, Poesia e Filosofia se tangenciam.

Sem a ocorrência de METÁFORAS e de várias outras figuras de linguagem e de alguns laivos filosóficos, o poema é chocho, murcho, estanque, porque vazio de vida, de excogitação do espírito do Homem.

Sem a presença do filosófico, o poema (que é a materialidade da Poesia) nunca atingirá a TRANSCENDÊNCIA, que é a mais importante característica da Poética. É esta que nos leva ao encantamento, ao "alumbramento", como queria o grande Manuel Bandeira.

Para nós, os não agraciados com estas benesses de não sei que fonte (energia original, de Deus ou de nós mesmos), resta um único desafio: ler, estudar, procurar entender, compreender, e vir a refletir sobre a matéria da vida...

Fico com os latinos que diziam: "ORATOR NASCITUR, SCRIBA FIT". Traduzindo: “O orador (o poeta) nasce, o escritor se faz”. Reconhece-se, com a afirmativa, o chamado "dom" que está contido no fazedor de versos, aquele que recria o mundo, sempre que a realidade, em seu andar, lhe apresenta o difícil momento ou o fato hostil.

O poeta refaz o universo pessoal e propõe ao mistério do outro (o leitor) um novo elemento estético harmônico e favorável. Abre-se num leque de propostas...

E aparecem, na tua criação, alguns elementos apreciáveis e de boa denúncia do talento em ti contido. Parece-me boa a tua poesia.

O poema está bem urdido, bem construído, não se trata de babaquices ou abobrinhas de quem se lança à Poesia por modismo ou na tentativa de chamar a atenção, buscar o foco da mídia; ou de tentar, apenas, se expressar, como é a regra entre os iniciantes de pouco tempo de uso, neste mundão de Deus, como é o teu caso: vinte e um anos.

Vamos ao texto:

“O ANJO ALFORRIADO

Silvério de Bittencourt da Costa

Sombras meditam na areia.

São torres caídas entre pegadas, folhagens, fezes

e entre a ardente alvura da tarde,

o corpo enterra-se, queimadura aberta,

lá onde o céu é anjo alforriado.

Uma coluna de água na horizontal desliza

sobre a cidade vermelha de cabeças uniformes.

Seria uma ilha esse círculo de dedos?

Quebra-se o oceano em centenas de curvas

até que as gotas possam descansar,

abraçadas.

Cada peça em seu devido lugar.

São elas os espelhos do arrebol.”.

Como bem podes ver, fiz algumas emendas supressivas, para melhorar o ritmo do poema. Pontuou-se os versos, gramaticalmente, numa indicação de ritmo para o leitor ou para o eventual intérprete, o qual sempre necessita do toque da interpretação autêntica (do autor), mesmo que o declamador ou recitador venha a lhe dar, futuramente, novo cadencimento rítmico, fruto de sua criatividade e estudo.

Diminuiu-se a possessividade do autor sobre o texto, com a retirada dos possessivos. O "meu" é sempre um desastre, em Poesia: extravasa o alter ego do autor, que é quem, psicologicamente, cria o texto. Também exclui o ego do leitor, fecha-lhe a janela, quase impede que o leitor se aposse do texto. Aliás, a bem da verdade, o ego pessoal do autor nunca produz Poesia, porque esta é dos domínios (originária) do alter ego, o chamado EU POÉTICO. Deve-se, portanto, em Poesia, evitar que o alter ego fale em primeira pessoa...

Criou-se espaços (respiros) de pensamento, janelas para o leitor refletir sobre a proposta que o verso ou a estrofe contém. Estes estão traduzidos no espaçamento gráfico entre as estrofes.

Eliminou-se o "como", que é um comparativo, optando-se pela metáfora, já que, sem esta, a poesia não existirá. Sempre é bom lembrar que a metáfora é "um comparativo abreviado". Se temos a possibilidade do uso da "metáfora", por que usarmos o "comparativo", em Poesia?

Tentou-se a "transcendência", sem a qual, como já se disse acima, o poema vai mermando e perde, também, a possibilidade do aumento da "sugestionalidade", que é uma outra característica fundamental da palavra poética.

O título ora colocado, foi colhido no intestino do poema, e me parece bem sugestional, liberto de palavra, de preconceitos, denunciativo do que vai ocorrer no poema.

Espero que entendas o meu gesto de afeto e de louvor. Que sempre libertes a palavra. “Poesia é pra comer!”, como quer Natália Correia, o pensamento açoriano (e universal) popularizado no Brasil pela grande Maria Bethânia.

Que o meu abraço chegue nas asas do amor pela Poesia. Sempre somos pequenos no grão da palavra, porém o amor humano mora nela. Somos nós que a aprisionamos.

Contudo, há também os que a libertam...

– Do livro DICAS SOBRE POESIA, 2009/10.

http://www.recantodasletras.com.br/ensaios/2082032