Argumentos de Marcuse
CONTRA A MODERNA SOCIEDADE OCIDENTAL
(ensaio de Robert O’Neill, publicado em uma revista argentina no início dos anos 70)
I – FORÇAS E ENERGIAS IGNORADAS
Desde os primórdios o homem sempre lutou por seus direitos. Não há guerra que não tenha encontrado suas justificativas ou legitimidade na idéia de um direito a conquistar ou a defender. Em uma sociedade, as reivindicações sociais quase sempre buscam aumentos de salário ou o bem-estar de seus indivíduos. A carga horária diminui em proveito do tempo livre. As condições de habitação são melhoradas, a educação, os transportes. São distribuídos televisores, rádios, eletrodomésticos, automóveis, etc., a uma quantidade cada vez maior de pessoas. As facilidades de pagamento, as possibilidades de crédito tornam acessível aquilo que, há uma década atrás, parecia pertencer ao domínio do supérfluo e do impossível. Todos se beneficiam com as férias remuneradas e podem fazer planos de deixar suas residências habituais e mudar de ares.
Diante de tais perspectivas de bem-estar, frente a tais promessas de melhorias incessantes das condições de vida, compreende-se que a única finalidade da luta, atualmente, seria combater as “invasões bárbaras” que poderiam destruir as esperanças que o futuro oferece. Contudo, parece que todas essas vantagens, todas essas facilidades que a sociedade tecnológica busca estão longe de satisfazer os espíritos.
Revelam-se forças e energias ignoradas que revolucionam todo o sistema da civilização industrial. Suas repercussões se fazem sentir pouco a pouco em toda parte: a violência que se desencadeia na América, na Europa e inclusive nas sociedades socialistas do Leste. A princípio não se compreendem bem os elos e a significação dessa agitação. Ninguém poderia prever as manifestações revolucionárias que movimentaram a França em maio. Questionou-se uma sociedade inteira: falou-se de minorias, da ação de um comunismo totalitário. Mas percebe-se rapidamente que o fim dessas declarações seria ou tranqüilizar ou causar insegurança na opinião pública. O verdadeiro fundamento de todas as reivindicações e de todas as violências cometidas tampouco poderia ser explicado pelo desejo de uma simples melhora nos estilos de vida. Trata-se da vida ou da morte de uma civilização. Pode-se tranqüilizar os espíritos jogando com as vantagens do sistema, propondo reformas e proporcionando conforto algumas vezes. O esquema todo se dissimulará por uns seis meses, talvez um pouco mais.
Mas ainda pesará sobre a sociedade uma ameaça inelutável – pois a própria sociedade engendra sua contradição, germe de todo protesto.
O que acontece então? O que faz com que isso “diga respeito a todos nós” – algo que sabemos, sem querer realmente admitir?
II – AS PERSPECTIVAS DE LIBERDADE SE DISTANCIAM
Se a coação é a condição necessária ao progresso, percebe-se que o progresso da sociedade tecnológica funciona de forma que aos indivíduos seria permitido escapar em grande parte às restrições do meio. Contudo, enquanto criavam a abundância, as formas de coação foram se intensificando, além da estrita necessidade vital, criando também o risco de sufocar o desenvolvimento dos indivíduos. A abundância não traz a paz nem a liberdade; parece criar um estado de repressão e guerra iminente. O grau de aperfeiçoamento do sistema é de tal envergadura que seria possível combater a miséria e os escândalos sociais, viabilizar a felicidade, a paz e a solidariedade. Mas não há nada disso.
Quanto mais a máquina e a automatização conseguem despojar o homem da urgência de uma tarefa pesada, tanto mais se distanciam dele as perspectivas de uma real liberdade. O progresso tecnológico não liberta o homem; escraviza-o, graças à potência de armas mais poderosas e temíveis; amplificam ao invés de reduzir a necessidade de repressões arbitrárias, tanto políticas e econômicas quanto intelectuais. E os tumultos, e as rebeliões, as manifestações explodem esporadicamente para expressar a impaciência contra essa violência institucionalizada, legitimada, mas profundamente inútil.
O nível de vida que os setores industrializados mais avançados alcançaram não é um modelo válido, se levarmos em conta a pacificação. Após considerarmos o que esse nível de vida fez com o homem e a natureza, deveríamos nos perguntar se os sacrifícios, se as vítimas consentidas em sua defesa valeram realmente a pena.
Em tais condições, libertar-se da sociedade da abundância não significaria retornar a uma robusta pobreza, à pureza moral e à simplicidade. Pelo contrário: se acabassem tais controles, dos quais apenas alguns se beneficiam, a riqueza social a ser distribuída aumentaria – e talvez também se dissipassem as repressões que, a pretexto de administrar os bens da comunidade, preservam os privilégios de uma ínfima minoria.
III – A SOCIEDADE TECNOLÓGICA É UMA SOCIEDADE GUERREIRA
A máquina e a mecanização são encaradas primeiramente como um meio de pressão econômica e, portanto, como repressão política. Com efeito, os progressos tecnológicos permitem dominar o trabalhador através de um controle cada vez mais severo, pelo grau de tecnicidade que exige. A especialização das áreas de atuação e a supressão de inúmeras frentes de trabalho acarretam uma insegurança nos cargos, à qual o empregado deve se submeter pacificamente. A finalidade primitiva do aumento da mão de obra tinha por fim aumentar o rendimento; a automatização determina uma insegurança nos cargos: a extorsão dos direitos. As demissões são o meio mais seguro de pressão no mercado de trabalho.
Por outro lado, a máquina parece seguir contra a corrente dos interesses individuais. A sociedade tecnológica, conquanto pretenda buscar o bem-estar e o melhoramento das condições de vida, é antes de tudo uma sociedade guerreira. A automação e a tecnicidade encontram seu total emprego na produção de armas defensivas e ofensivas. A economia das sociedades industriais é baseada em grande parte nos pressupostos militares. É fundamental lembrar que os empreendimentos técnicos dirigem-se para uma arma absoluta, e que as conversões para uma “força de choque” são exorbitantes e completamente desproporcionais diante das necessidades reais de uma salvaguarda hipotética das liberdades individuais ou nacionais. Deve-se também frisar que tais meios de pressão gigantescos não atingem infalivelmente seus objetivos de escravização. Nem sempre causam temor. Os EUA, a maior potência industrial e econômica do mundo, encara uma guerra dispondo dos mais aperfeiçoados recursos: contudo não consegue se impor a uma minoria de desesperados.
A resistência de guerrilha, no Vietnã, é a contração interna que arrebenta. Que os homens mais miseráveis do planeta, mal armados, tecnologicamente os mais atrasados, encarem a máquina de aniquilação mais tecnicamente evoluída é um sinal – sinal que talvez seja a prova de que os homens sempre terão razão contra as máquinas, e que o escândalo se insurge contra as formas de repressão, sejam elas quais forem.
IV – SER SENSATO PARA OBTER AFETO
Se for verdade que a sociedade industrial precisa criar guerras para seu próprio desenvolvimento, guerras opressivas e vãs, não é menos verdade que a história do homem é inapelavelmente a história de sua própria repressão.
Toda forma de educação pode ser encarada como uma arma disfarçada, capaz de doutrinar, de condicionar a infância. Pode-se ensinar a liberdade, mas pode-se também ensinar a escravidão. As necessidades da criança são orientadas por sua satisfação e pelo prazer que disso advém. Desde os primeiros dias de sua vida deve confrontar todo tipo de exigências e coações. Algumas a conduzirão a um falso sentido. Por exemplo: suas necessidades sexuais são negadas; é desacreditada, reprimida, a realidade de toda uma parcela de seus instintos fundamentais. A educação repressiva tem por objetivo a transformação de uma necessidade natural. O erotismo proibido se transformará em outros valores, socialmente admitidos. Como são negadas a realidade e a oportunidade do prazer à criança, ela deve demonstrar sua submissão através da obediência: logo, sua energia reprimida se transforma em trabalho e rendimento. Desde muito jovem, sua experiência afirma que é preciso ganhar a vida, recebendo seu merecido salário. É indispensável ser sensato se seu objetivo for adquirir o afeto desejado. Tudo ocorre como se o pai autoritário temesse perder sua mulher ou ver-se trocado diante de uma outra situação, de uma necessidade de amor que surge com o filho recém-chegado – como se as regras, as leis que são por ele ditadas tivessem por fito conservar sua condição privilegiada. O mesmo acontece com a sociedade. As necessidades reais são desviadas e transformadas em falsas necessidades. A moral das necessidades já não é em função da precariedade da vida nem de uma restrição tornada necessária pela penúria ou pelos princípios religiosos da humildade, como ocorria anteriormente.
Na sociedade moderna, as falsas necessidades que surgem das repressões que a criança é obrigada a suportar são estudadas e postas em pratica de forma cientifica, para sustentar, manter a sociedade de consumo.
Toda economia da civilização industrial está ligada ao crescimento das necessidades. Em uma sociedade da abundância, já não se trata de produzir bens ou serviços, trata-se de torna-los indispensáveis. Trata-se de criar necessidades novas, cada vez mais prementes, insaciáveis e imperiosas. O consumo deve acompanhar a produção. Então é também ensinada a necessidade do controle e da instabilidade, para que os bens possam circular.
Enquanto milhões de pessoas morrem de fome, os abusos mais odiosos tornam-se comuns para que esse estado de abundância e riqueza permaneça intacto. As classes menos favorecidas, que poderiam protestar contra essa situação, são, para que se sintam correspondidas, beneficiadas com certas melhorias que pouco a pouco as conduzem a um estado de astenia e de escravidão ao sistema. A sociedade tecnológica se fundamenta nesse fátuo bem-estar, o qual leva o indivíduo a pensar (feito nossa hipotética criança), como forma de consolo, que apenas tem o que merece. Como e por que lutar contra o que parece ser a imagem da felicidade e da satisfação?
V – UMA PIEDOSA DOUTRINAÇÃO APODERA-SE DE TODOS
Diante do advento da sociedade tecnológica percebeu-se rapidamente que a força de um país reside em suas necessidades. Para que a autoridade fosse reforçada era necessário que cada indivíduo consumisse acima de suas necessidades, quem sabe até acima de seus próprios motivos para consumir. Golpear o indivíduo pela frente, obriga-lo a entrar no jogo do supérfluo e do superconsumo seria impossível. Assim a persuasão entrou na clandestinidade e a pressão se fez insidiosa e falaz, às custas inclusive daqueles que se acreditavam livres e gozavam com tranqüilidade daquilo que supunham ser a paz. Por intermédio da imprensa, do rádio, da televisão, da propagação de rumores, da obstrução, etc., as forças de pressão tiveram acesso aos limites mais profundos do indivíduo. E um lento condicionamento, uma piedosa doutrinação apoderou-se de todos. Era preciso convencer a maioria a encarar a realidade (como a propunham os grupos de pressão) pela ótica de seus próprios desejos. E o êxito foi quase total. A publicidade suscitou um modo de vida coletivo. A opinião pública exerce um controle permanente sobre a vida privada mais íntima dos indivíduos. Como primeira conseqüência pode ser assinalada uma nova necessidade: a atração pela conformidade do grupo e para a uniformidade das condutas e dos desejos; a extinção da excentricidade, de toda e qualquer imaginação. Se alguém adquire algum artigo de consumo do momento, a satisfação que experimenta se deve ao prazer de não resistir à manipulação.
Essa manipulação, esse condicionamento, que se traduzem por uma atração imperativa, uma exigência alucinada, encontram-se baseados na utilização racional da repressão sexual na sociedade. Se há desejos que não podem ser nomeados nem satisfeitos, a satisfação desses desejos irá encontrar compensações socialmente admitidas. A publicidade erotiza na vida cotidiana relações que não são eróticas, como por exemplo “o homem e seu automóvel”. Ou então o erotismo se estende a uma realidade que anteriormente era “reservada”: o domínio dos negócios e a política deixam cada vez mais suas portas abertas para relações de cunho pseudo-sexual para alcançar o prestígio e o êxito de uma sedução irresistível. A sexualidade reprimida é cada vez mais utilizada como valor de mercadoria e como instrumento de coesão social.
Mas isso jamais é considerado como violação ou manipulação; é bastante agradável, em suma, deixar-se envolver pela comodidade e pela satisfação.
VI – SURGE CLARAMENTE O PODER DE REPRESSÃO
Também acontece no plano da produção o mesmo que ocorre na sociedade tecnológica ao nível do consumo. Os métodos de persuasão clandestina que provocam um pseudo-estado de bem-estar, um estado de euforia anestésica, encontram suas réplicas em métodos de dissuasão que criam um estado de guerra. As forças de choque, o poder de repressão policial e militar nos quais se insere cada vez mais o poder econômico das sociedades tecnológicas, surgem claramente, tornando-se públicos. A razão disso é evidente. Para que a sociedade pudesse sobreviver, ou seja, para que se evitasse toda e qualquer possibilidade revolucionária contra uma ordem estabelecida que poderia parecer inaceitável ao povo, houve a necessidade de criar um estado de espírito, uma opinião pública fundamentada sobre os alicerces de uma vontade consciente. O estado de bem-estar não é um estado onde reina a liberdade porque o mesmo é baseado na clandestinidade, na manipulação e na doutrinação publicitária. O estado de guerra, a paz armada, a dissuasão agora ocorrem dissimuladamente, como uma última tentativa para alcançar uma fátua liberdade. Apoiada pela propaganda, a opinião pública dissemina temor a níveis inconscientes nos indivíduos.
Assim como através da publicidade podemos ter a certeza de que aquela marca de geladeira é superior àquela outra, também podemos aceitar de boa-fé, graças a uma propaganda política inteligente, aquilo contra o qual sempre se lutou, aquilo que se reprova profundamente. Dissemos anteriormente “temor a níveis inconscientes”; trata-se, portanto, relativamente a tais níveis, de puro condicionamento. Os slogans empregados atualmente – “Luta Contra o Comunismo Totalitário”, ou “Pela Defesa do País em Perigo” – único fundamento de todas as propagandas políticas das sociedades tecnológicas ocidentais – atuam apenas como símbolos. São poucos os que ainda se perguntam se existe o risco da sociedade ser destruída por “invasões bárbaras”, ou se não seria melhor, em última instância, ajudar na destruição de semelhante sociedade. A propaganda política cria e doutrina a opinião pública. A maioria é coagida a preferir a imobilidade, a passividade e a servidão, de maneira que as pressões, os slogans, as máximas e as palavras de ordem fazem parte, literalmente, da sua intimidade. A política toma então o aspecto de um compromisso muito mais sentimental do que objetivo. Pretende-se uma idéia porque se tornou parte do nosso cotidiano. Sentimos simpatia por alguém porque esse alguém fez alguma coisa em determinado momento (e isso foi divulgado). Respeitamos o governo, que se compromete a levar melhorias e bem-estar a cada um de nós. Caso tal não ocorra, sabemos que ele fez todo o possível, pois cada ação funciona num contexto de “legítima defesa”. O papel da dissuasão é também impedir qualquer tentativa de eliminar a necessidade de dissuasão.
VII – O COMUNISMO E O CAPITALISMO JÁ NÃO SÃO INIMIGOS
Que a persuasão seja clandestina, que a dissuasão se faça em pleno dia, que uma e outra sejam os alicerces da ordem atual, entende-se. Mas parece que o verdadeiro inimigo é o espectro da liberdade. O inimigo já não é o capitalismo ou o comunismo. Os dois sistemas combatem uma forma de vida que acabaria com as bases da dominação. O que o indivíduo experimenta hoje em dia é o sentimento de ser dominado, superado pelos acontecimentos.
A sociedade tecnológica se revela como a forma mais evoluída de dominação e repressão. Mas o temor da persuasão e da dominação é tal que a idéia que o indivíduo pode fazer de ambas é a de uma administração legítima e liberal. O condicionamento e a doutrinação por um lado, a insegurança e a escravidão pelo outro, são tão convincentes e tão bem integrados à opinião pública que aqueles que negam a ordem estabelecida já não são aniquilados enquanto revolucionários: são simplesmente absorvidos pelo sistema.
A dominação – a fórmula da abundância e da liberdade – invade todas as esferas da existência, tanto privada quanto pública, integrando todas as oposições.
As formas de protesto e oposição – sejam religiosas, filosóficas (zen budismo, existencialismo) ou como simples ataque ao modo de vida estabelecido (hippies, beatniks, etc.) – já não estão em contradição com a sociedade. Já não funcionam como denúncia; pelo contrário, fazem parte de um “regime salutar”.
Afirmar que a sociedade tecnológica é totalitária significa que já não é permitida a negação – ou antes, que a mesma é reduzida a praticamente nada.
Pode-se facilmente compreender as dificuldades e as contradições que se levantariam contra o que esperamos seja o futuro de nosso bem-estar, de nossas necessidades mais urgentes. A guerra, a tortura e a fome estão à margem do mundo civilizado. Só os países “subdesenvolvidos” são por elas atingidos. E sempre a pretexto da defesa da liberdade.
Os partidos comunistas ocidentais aceitam a coalizão com a política capitalista. Descartam a tomada do poder através da revolução, rendendo-se às regras do jogo parlamentar.
A discussão (baseada na iminência do estado de alerta) é tão admitida, e a persuasão (que sustenta o desejo de um estado de bem-estar proveniente de uma demanda e de um consumo intensivos) se integra tão bem que as oposições mais exaltadas chegam a desautorizar e a denunciar os movimentos reivindicativos extremamente virulentos, os quais ameaçam mudar alguma coisa na ordem social já estabelecida. A sociedade tecnológica é tão autoritária, os interesses em jogo são tão grandes e tão bem cuidados, que a oposição já não funciona, sendo impossível como oposição. Nega-se a si mesma pelas diretivas que aceita. As responsabilidades que empresta da política de consumo e produção refletem-se apenas nas satisfações que podem ser extraídas do atual regime.
VIII – UMA NOVA LINGUAGEM POLÍTICA FOI INSTITUÍDA
A oposição pode apenas dar testemunho de sua debilidade, de suas contradições e de sua impotência em respeitar seus próprios objetivos. À própria imagem de uma oposição política que se torna cada vez menos possível, assinalamos a aparição de uma linguagem que não admite nem a contradição, nem a negação. É uma linguagem fechada que não demonstra, que não explica – informa pouco e mal, mas comunica a decisão, a ordem sem contestação. É uma linguagem totalitária sem ser, no entanto, terrorista. Essa linguagem é nova porque as pessoas não acreditam nela (forçosamente) ou porque não lhe prestam atenção: contudo, atuam em conseqüência. Trata-se, indiscutivelmente, da linguagem publicitária, política, aquela da televisão, das estações de rádio e que não depende de réplica; aquela que, mais do que qualquer outra linguagem, pretende-se “democrática”.
A democracia, longe de ser um poder popular real, converteu-se no mais eficaz sistema de dominação da sociedade tecnológica. Efetivamente, nesse tipo de sociedade a democracia funciona como o único sistema no qual a repressão é não apenas aceita como livremente consentida, cuja administração é legitimada pela deliberação de uma minoria atuante e ratificada pela decisão de uma maioria passiva. Nesse ponto podemos nos perguntar se as eleições são realmente a expressão efetiva do processo democrático, e inclusive se a eleição possui alguma significação, ou se a mesma não participaria dessa mesma linguagem fechada, autoritária e repressiva.
Por exemplo: se as eleições são submetidas a uma propaganda tão ostensiva que a manipulação dos eleitores fica evidente, se os eleitores estão em sua maioria condicionados por temores e pela insegurança moral e material – seria uma eleição democrática?
Se os partidários de um candidato gastam milhões na propaganda eleitoral, a “universalidade do sufrágio” expressaria o real nível de consentimento – ou o nível de manipulação do eleitorado?
De fato, são os eleitores que devem impor suas diretivas aos representantes (em uma verdadeira democracia), pois se forem os representantes que impuserem suas diretivas aos eleitores, estes se contentarão em escolher entre reeleger ou não seus representantes. Um corpo eleitoral autônomo, livre porque liberado de toda e qualquer doutrinação, de toda e qualquer manipulação, teria certamente um nível mais elaborado de opinião e ideologia – algo do que ainda estamos muito distanciados.
O que na realidade ocorre é que o eleitor não possui qualquer possibilidade de escolha de um programa político. Vive obsedado pela celebridade política que, nem bem se vê no poder, pode mostrar seu verdadeiro rosto. E permitir o acesso de alguém ao poder ainda não é algo suficiente para estabelecer uma democracia. Pode-se admitir que consentir num regime fascista constitua um processo democrático?
É impossível conceber uma possibilidade de eleição enquanto as pressões da sociedade tecnológica oscilem da persuasão para a dissuasão, enquanto a moral política conserve como único valor o bem e o mal, a ordem e a desordem. Uma nova linguagem política foi instituída, a qual guarda em si toda dinamite necessária para fazer o sistema voar pelos ares: o medo de ter de reconhecer suas próprias contradições, sua própria impotência. A linguagem do poder dominante é aceita como a linguagem da verdade. Reduz e controla toda reflexão, abstração, contradição. Em si mesma, é dissuasão e persuasão; ou seja, aceitação incondicional de um estado de fato. Não procura a verdade, impõe-na e alcança êxito, pois a publicidade e a política funcionam em bloco. A sociedade atual dirige-se para uma administração e uma dominação total nos planos econômico, político e intelectual. Essa é a verdadeira face do totalitarismo democrático.
IX – JÁ HOUVE LEGITIMIDADE NA DOMINAÇÃO
A sociedade atual balança entre dois futuros contraditórios:
– ou será capaz de impedir uma transformação qualitativa de suas debilidades (isto graças a uma rigidez cada vez mais pronunciada das repressões econômicas, políticas e sociais);
– ou surgirão do próprio seio da sociedade forças e tendências capazes de superar a administração totalitária, e assim dissolver a ordem social.
Não existem equívocos: uma catástrofe atômica ou uma inversão ocidental da ordem estabelecida não representariam condições suficientes, se o homem não se sentir transtornado com seu próprio comportamento ao tomar consciência do que tem feito e daquilo que impede seu desenvolvimento. A política da sociedade atual está centralizada na necessidade de criar cada vez em maior escala uma grande quantidade de necessidades falsas para o indivíduo, pseudonecessidades que ocultem dele parte da força da qual faz parte, força esta que também dissolve sua participação num arremedo de sociabilidade.
Se as pessoas podem suportar que sejam constantemente criados aparatos nucleares, que haja explosões radioativas, alimentos que causam doenças, etc., não podem suportar (talvez justamente por isso) serem despojadas do descanso ou da educação, graças à qual foram condicionadas e que as leva a produzir armas para sua defesa – ou sua própria destruição.
Criar necessidades que coincidam com a repressão há muito tempo se converteu num aspecto de trabalho socialmente necessário no sentido de que, se não existissem, a força de produção como é não poderia manter-se.
Já houve legitimidade na dominação. Podia-se explicar as dominações e repressões de todos os tipos pelo estado de precariedade e penúria em que se encontrava a sociedade. O mundo era pobre demais para viver sem restrições, sem renúncias. O advento da sociedade industrial, tecnológica, prova pela amplitude de suas realizações que já não é mais assim. As classes sociais menos favorecidas têm cada vez mais acesso a um modo de vida decente. Cada vez mais estão menos convencidas da oportunidade que possuem de questionar o pouco bem-estar adquirido às custas de seus grandes esforços. Inclusive, entre a classe operária encontra-se o apetite mais lógico – depois de tantas privações e de um trabalho penoso para satisfazer seus desejos – de consumir bens como geladeiras, televisores, lavadoras de roupa, automóveis, etc. Assim, a anestesia que impregna a esperança dessa espécie de comodidade funciona como a maior ferramenta do atual sistema. E é claro que tais aspirações não podem ser reprovadas, uma vez que as mesmas representam sua ascensão na ordem social e a restauração de sua humana dignidade, baseada no mérito de seus esforços. Depreende-se então desse estado de fato da sociedade de consumo que as forças de protesto não poderiam advir daqueles que aceitam, e até mesmo desejam, o estado de fato em questão. Objetivamente, a desestruturação da administração totalitária da sociedade atual pode advir apenas daqueles que não jogam pelas regras da sociedade. Aqueles que não têm nada a perder diante das forças tecnológicas – apenas estes representarão, talvez, a potência capaz de passar por cima da administração totalitária.
X – NEGROS, AMARELOS OU BRANCOS, COM AS MÃOS NUAS
Os párias, as minorias étnicas, os perseguidos, os inadaptados, os explorados, aos quais a sociedade despreza por inúmeras razões e, sobretudo, porque não pretende reconhece-los, já não se deixam persuadir. Ou melhor: a persuasão não pode alcança-los em sua intimidade clandestina. Situam-se à margem do processo democrático; sua vida expressa a necessidade mais imediata e mais verdadeira de pôr fim às condições e instituições intoleráveis. Sua oposição é, portanto, revolucionária, ainda que sua consciência não seja. Sua oposição golpeia o sistema de fora, e assim o sistema não pode absorver seus golpes; sua força irracional viola as regras do jogo e, atuando assim, demonstra que o mesmo não passa de um jogo de cartas marcadas. Quando eles se reúnem, quando caminham pelas ruas, desarmados, desprotegidos, para reclamar os direitos civis mais elementares, sabem que se expõem aos cães, às pedras, às bombas, ao cárcere, ao campo de concentração e inclusive à morte. Seu poder está por trás de toda manifestação em favor das vítimas da lei e da ordem.
Todos aqueles cujas condições econômicas e políticas, os quais aqueles que lutam por prestigio têm escarnecido, explorado e perseguido, se levantam progressivamente contra a escravidão e o servilismo. Negros, amarelos ou brancos, com as mãos nuas ou ridiculamente armadas, desafiam as maiores potências bélicas, ditas civilizadas. E sua violência, a qual desacreditam ou denunciam, não é, no entanto, mais que o bumerangue de uma violência muito mais cruel, insuportável e insustentável, aquela chamada legítima e necessária, que pretende ser uma luta pelo bem comum, pela liberdade.
Esses condenados da Terra denunciam as mentiras que se escondem por trás da ordem estabelecida de nossas sociedades – onde, sozinha, uma pequena minoria de privilegiados pode viver realmente livre, aproveitando-se da escravidão de populações inteiras.
XI – PARA A JUVENTUDE A LIBERDADE É UMA URGÊNCIA
Os jovens, por sua confiança no futuro, são os que cada vez menos se deixam dissuadir. Sem dúvida sofrem mais que os adultos a repressão institucionalizada. Ainda não possuem meios para se manterem, nem para se defenderem contra a ansiedade oriunda do estado de fato criado pela sociedade tecnológica. Para eles a liberdade é algo urgente diante das escolhas que os dirigem para sua inserção na ordem social. Percebem cada vez mais cedo a escravização mecânica. As coisas circunvagam, não urgem, giram monótonas ao redor do instrumento humano – todo ele, corpo, espírito e alma. Mais do que ninguém, o jovem adere à sociedade de consumo. Chega a um nível tão alto de aceitação das falsas necessidades, que das próprias contradições econômicas às quais se submete tende a surgir um cansaço precoce e uma crise de consciência. Com efeito, por definição, o jovem possui um fraco poder aquisitivo, permanecendo em completa dependência econômica diante da sociedade. O estado de bem-estar que lhe é proposto surge-lhe então mais como uma recompensa para o futuro do que como uma satisfação real no presente. E isso é algo que a juventude vive com maior aspereza, pelo que reivindica possibilidades de escolha no presente. Cada vez menos aceita que suas potencialidades sejam entorpecidas pelo rendimento que dela se espera. Por outro lado, a luta contra a repressão para ela é a condição maior de seu próprio desenvolvimento instintivo e intelectual, de sua real adaptação à sociedade. E como a liberdade instintiva supõe a liberdade intelectual – tanto quanto a luta contra a liberdade de pensamento e imaginação converteu-se num poderoso instrumento do totalitarismo – muitos jovens temem seguir na dependência completa e cega ao pensamento daqueles que julgam ser livres.
XII – A SOCIEDADE SÓ PEDE QUE APRENDAM SUAS LIÇÕES
Seja á sombra de patrões, ídolos ou professores, a relação de amo e escravo é reforçada dia após dia. Contrariamente ao que ocorria nas expressões culturais da sociedade passada, os personagens legendários dos heróis nacionais, das celebridades em geral, dos expoentes da contracultura e demais manifestações de ordem subversiva não serve sequer para negar a ordem estabelecida – servem para apoiá-la, para reafirma-la. A criatividade, a livre expressão, a imaginação, aparecem como flores supérfluas. A sociedade só pede aos jovens que aprendam suas lições, em seus bons momentos. Pouco importa que entendam ou não. Depois terão todas as possibilidades de ser convencidos da necessidade do bem-estar e da perpetuidade da ordem estabelecida para lutar contra a insegurança e a instabilidade do sistema. Hoje em dia as qualidades humanas requeridas para obter uma existência pacífica parecem anti-sociais e antipatrióticas, como, por exemplo, ter o espírito perturbado pelas atuais realizações da ciência ou comprometer-se com ações de protesto e ataque contra o sistema, mesmo quando desprovidas de efeito ou ridicularizadas.
Contudo, a esperança permanece e vai se intensificando com a democratização do ensino. Porque entre os jovens sempre haverá a intrepidez e a avidez do conhecimento, o anseio de sair em busca da felicidade e de compartilhar tudo quanto adquiriu.
XIII – QUE PODEMOS FAZER DIANTE DE TANTAS CONTRADIÇÕES?
Procura-se acreditar numa opinião pública segundo a qual o mal-estar da sociedade seria proveniente de:
– um comunismo bárbaro e totalitário que ameaça a integridade dos territórios nacionais;
– uma reivindicação, uma elevação no nível de vida e, inclusive, uma inversão da situação, da transformação das classes exploradas em classes exploradoras.
Se nos inclinamos sobre os acontecimentos atuais, que sacodem todas as sociedades altamente industrializadas, podemos pôr em evidência que ambas as opiniões acima são equivocadas. Não se trata evidentemente nem do estado de guerra, nem do estado de bem-estar. Por outro lado, nas reivindicações ambos os estados são maciçamente esmagados. Contudo, os slogans falazes que engendram a opinião pública são mais facilmente admitidos quando aqueles que os defendem possuem o poder de repressão e as forças de pressão econômica e social a seu favor. Um controle rigoroso da opinião pública obstina-se em fazer as massas acreditarem que o estado de fato atual é o único estado possível – e o único legítimo, por ser o único existente. Não é muita falta de imaginação e de razão existencial se deixar levar por semelhantes falácias?
A doutrinação está tão aperfeiçoada em nossos dias que a verdade parece ser engendrada pelas instituições ou pelos homens que solicitam nossa confiança através da persuasão ou da dissuasão armada; o temor e seu condicionamento são algo tão generalizado que a liberdade não é saboreada senão quando se opõe a uma potência, uma autoridade repressiva que a maioria se contenta em considerar como protetora.
Que podemos fazer diante de tantas contradições? Sentirmo-nos violentamente constrangidos e procurar compreender as atitudes daqueles que negam e atacam uma ordem que não passa de um caos maquiado; despertar e organizar a solidariedade em vista da necessidade biológica de nos mantermos unidos contra a brutalidade e a exploração – eis a nossa tarefa. A começar pela educação da consciência, do conhecimento, do olhar e do sentimento que captam o que está ocorrendo: um crime contra a humanidade. A justificação do trabalho intelectual pode ser resumida nessa tarefa – mesmo porque, atualmente, o trabalho intelectual carece, mais do que nunca, de justificação.
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