O último tango do valor

(extraído do livro "Simulacros e Simulação", de Jean Baudrillard)

“Quando nada está em seu lugar, impera a desordem;

Quando no lugar desejado nada mais resta, impera a ordem.”

Bertold Brecht

Há um pânico por parte dos administradores das universidades à idéia de que os diplomas serão concedidos sem um esforço “verdadeiro” dos alunos, sem uma “real” equivalência de conhecimentos. Tal pânico não é aquele da subversão política, mas o que vê o valor ser dissociado de seus conteúdos e tornar-se uma função solitária, de acordo com suas verdadeiras formas. Os valores das universidades (diplomas, etc.) proliferarão e continuarão a circular, um pouco como o capital flutuante ou como os Eurodólares, espiralando sem critérios referenciais, completamente desvalorizados ao fim, mas isso não tem qualquer importância: sua circulação por si só é suficiente para criar um horizonte social de valores, e a presença espectral do fantasma do valor apenas crescerá, ainda quando seus pontos de referência (seu valor, valor de troca, a acadêmica “força de trabalho” pela qual as universidades se gabam) sejam perdidos. O pavor do valor sem equivalência.

Tal situação apenas parece ser recente. E parece assim àqueles que imaginam que o processo real de trabalho tem seu lugar nas universidades, e que investem sua experiência de vida, suas neuroses, sua raison d’être nisso. A troca de sinais (de conhecimento, de cultura) nas universidades, entre “professores” e “ensinados” foi por algum tempo nada mais que uma dupla colisão de amargura e indiferença (a indiferença dos sinais que trazem em si a desafeição pelas relações humanas e sociais), um duplo simulacro de psicodrama (onde há uma forte demanda pelo falso orgulho, pela presença, pela troca edipiana, por esse incesto pedagógico ao qual se opõe, substituindo a si mesma na troca impossível do trabalho pelo conhecimento). Nesse sentido as universidades continuam sendo locais de desesperada iniciação às formas vazias de valores, e aqueles que viveram nelas nos últimos anos estão familiarizados com o estranho trabalho, na verdade um não-trabalho desesperado, um esforço pelo desconhecimento. Pois as correntes gerações continuam sonhando em ler, aprender, competir, mas seus corações não estão nisso – como um todo, a ascética mentalidade cultural perdeu corpo e interesses juntos. É por isso que os ataques não mais têm um significado.

Mais do que nunca, os ataques contemporâneos tomam naturalmente as mesmas qualidades do trabalho: a mesma suspensão, o mesmo peso, a mesma ausência de objetivos, a mesma alergia às decisões, a mesma reviravolta de poderes, a mesma energia morna, a mesma circunvolução indefinida, tanto nos ataques quanto nos esforços de agora, a mesma situação tanto nas contra-instituições quanto nas instituições: o contágio avança, o círculo se fecha – após o que se faz necessário emergir em alguma parte. Ou então, contrariamente: tomar tal impasse como situação básica, transformar a indecisão e a abstinência de objetivos em uma situação ofensiva, uma estratégia. Para tentar acabar com essa situação de morte, com essa anorexia mental das universidades, os estudantes nada fazem além de reinjetar energia em uma instituição há muito em coma: é a sobrevivência forçada, a medicina do desespero que é hoje em dia praticada tanto institucional quanto individualmente, e em toda parte podem-se ver os sinais dessa mesma incapacidade em confrontar a morte. “Alguém precisa acabar com o que já está arruinado”, disse Nietzsche.

É por isso que estamos encurralados, nós mesmos nos encurralamos, após 1968, ao decidir conceder diplomas a todos. Subversão? Não de todo. Uma vez mais, promovemos o avanço da forma, da pura forma do valor: diplomas sem trabalho. O sistema não precisa de mais diplomas, ele não os quer, mas não prescinde deles – valores operacionais vazios – e fomos nós que inauguramos isso, com a ilusão de estar fazendo o contrário.

A certeza dos estudantes em conseguir seus diplomas compele-os a não atuar, e algo semelhante acontece com seus professores. Isso é mais ocultado e mais insidioso que a tradicional angústia de falhar ou receber diplomas sem valor. A ausência de riscos na obtenção do diploma – o que faz desaparecer todas as agruras do conhecimento e da seleção de seu conteúdo – é algo intolerável. E isso ainda é agravado por um outro fato – um álibi, um simulacro de troca pelo esforço contra um simulacro de diploma, ou como forma de agressão (o professor convocado a ministrar o curso, ou tratado como distribuidor automático) ou como puro rancor, e assim ao menos alguma coisa tomará o lugar daquilo que se estabeleceu como uma relação ‘real’. Mas nada disso funciona. Apesar das altercações domésticas entre professores e estudantes, que atualmente fazem parte importante de suas trocas, nada há além de uma recorrência delas, e uma espécie de nostalgia pela violência ou por uma cumplicidade que os fariam inimigos ou os uniria em torno de um interesse comum pelo conhecimento ou pela simples ideologia política.

A “dura lei dos valores”, a “lei gravada na rocha” – quando tudo isso foi abandonado, que tristeza, que pavoroso! É por isso que nossos dias têm sido satisfatórios à aplicação de métodos fascistas e autoritários, pois os mesmos ressuscitam algo da violência necessária à vida – sejam eles sofridos ou infligidos. A violência do ritual, a violência do trabalho, a violência do conhecimento, a violência do sangue, a violência do poder e da política é boa! É clara, luminosa, nas relações de força, nas contradições, na exploração, na repressão! É o que falta atualmente, é a falta disso se faz sentir por si mesma. O re-investimento dos professores no poder através do ‘livre ensino’, o auto-manejamento do grupo e outros modernos nonsenses – permanece tudo um jogo, por exemplo, nas universidades (mas toda esfera política é articulada da mesma maneira). Ninguém é enganado. Apenas para escapar de uma profunda desilusão, para fugir da catástrofe oriunda da carência de regras, estatutos, responsabilidades, e da incrível demagogia que se instalou no meio, foi necessário recriar o professor à imagem de um manequim do poder e do conhecimento, ou investi-lo com uma mínima aparência de legitimidade derivada da Ultra-Esquerda – ou então a situação se tornaria intolerável para todos. É baseado nesse compromisso – na figuração artificial do professor, na equívoca cumplicidade por parte dos estudantes – e baseado nesse falso cenário de pedagogia que as coisas prosseguem, talvez indefinidamente. Pois há um objetivo para o valor e para o esforço, mas não há qualquer fim para os simulacros de valor ou de esforço. O universo da simulação é trans-real e trans-finito: nenhum teste da realidade virá para pôr um fim nisso – exceto talvez o total colapso e deslizamento do terreno, o que prossegue sendo nossa mais tola esperança.

Tradução:

Damnus Vobiscum
Enviado por Damnus Vobiscum em 14/01/2010
Reeditado em 22/05/2012
Código do texto: T2028993
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