Do tornar-se aquilo que nunca se foi
DO TORNAR-SE AQUILO QUE NUNCA SE FOI
Janeiro/2010.
Newton Schner Jr.
É estranho como, às vezes, tornamo-nos aquilo que nunca fomos.
Sempre leio histórias de artistas que, desde cedo, demonstravam-se donos de uma disposição para algo. Wagner. Bach. Beethoven. São tantos. Ainda pequenos, davam seus primeiros passos à música.
Na infância, eu visitava meu pai aos fins de semana. Sendo seu filho, crescia a expectativa para que eu seguisse sua profissão, tornando-me um médico. Durante uma época, comecei a colecionar caixas de remédio. Adorava brincar com elas. Na época, meu pai morava com sua esposa, Anna, e, assim sendo, eu brincava sozinho. Sentado ao chão, criava prédios, muros e tudo o que me era possível imaginar com caixas. Chegava a decorar todos aqueles nomes de marcas e laboratórios. Repetia-os comigo mesmo. Nas horas de ousadia, chegava a pedir a familiares para que me perguntassem, por exemplo, qual era o correspondente genérico desse ou daquele remédio.
Foi-me feita uma promessa: "Quando você encher seu guarda-roupa com as caixas de remédio, eu lhe darei uma farmácia de presente". Assim disse meu pai. Esta idéia chegou mesmo a entusiasmar meus familiares maternos. Também eu, é claro, fiquei motivado. Ao longo dos anos, acreditava que poderia conseguir tal feito. Pensava que quando chegasse à adolescência, já teria realizado tal tarefa. Mas a vida tomou outros rumos.
Ainda antes de prestar vestibular, eu não sabia o que fazer. Sempre fui tão indeciso neste sentido! Certa tarde, acompanhei o meu pai. Ele procurava uma vidente. Queria ver o que o destino o reservava, através das interpretações daquela senhora robusta, simpática, cristã, alemã e sempre vestida de vermelho. Aproveitando a seção, ela me consultou. Apesar de incrédulo em relação ao que ela deveria prever em relação ao meu futuro, respeitei-a e conversei consigo com naturalidade. Perguntou-me ela que área eu pretendia estudar. "História". "História? Desculpe-me, mas você não irá conseguir... Deve tentar química!". Mas ela havia errado. E feio.
Hoje, posso dizer que sou mais reconhecido como um músico. Não foi um processo espontâneo. Nem sequer me identifico como tal, se isto requer dominar técnicas e teorias, ou então reproduzir composições de grandes e pequenos mestres. O que sei? Compor e sentir. Criar com prazer. Não saber à esquina sem que se esteja carregando um trabalho, por pensar que, talvez, exista, por alguma luz do destino, a oportunidade de encontrar a alguém aquilo que se faz com tanta sinceridade - entregar um pedaço de mim, que a pessoa levará consigo.
Diferentemente de outros compositores, comecei tarde. Não apenas isso. Tarde e por si só. Mesmo tendo um pai músico, segui com meus próprios recursos. E aos poucos, bem aos poucos, eu me descobri com o piano. Não há um só dia que eu não deixe de tocá-lo, quando me encontro em casa. Não há uma só ocasião em que eu não peça a alguém que me visita: "Posso tocar para você uma nova composição minha?".
E como fruto desta indecisão. E da necessidade de encontrar algo onde eu pudesse expressar aquela longínqua inquietude jovial minha, cresci enquanto compositor.
Dias atrás, em uma carta, eu dizia a uma pessoa especial, quando procurava motivá-la a seguir o caminho da música: "A arte é como aquela fruta boa, da qual tiramos proveito de tudo – do suco à semente. Mesmo que nela exista uma parte amarga, nós a tiramos e com ela, fazemos um chá que apesar de gosto ruim, faz bem à saúde". Assim ocorreu comigo.
Talvez um dos maiores presentes que ganhei em toda essa história, foi a de ter formado, através da música, grandes amizades. Não de músicos para músicos, que falam a linguagem técnica e rebuscada, dos tantos movimentos por segundo. Mas, de humanos.
Quantas pessoas conheci em circunstância da música! Praticamente todos com quem tenho proximidade, conhecem o que crio. Já presenciei pessoas chorando ao me ouvir tocar; pessoas que se declararam a outras; até mesmo minhas melodias serviram de elegia a dois funerais. A algumas, trouxe paz e mesmo alegria; a outras, tristeza; e à grande maioria, uma melancolia suave, uma nostalgia de tempos ou histórias, pessoais ou universais. Que melhor recompensa que esta? Teria eu, um dia, pensado ou imaginado as proporções que uma simples indecisão e uma inquietude poderiam tomar?
Uma amiga dizia ouvir uma composição minha, em especial, e lembrar de seu avô que, por coincidência, chamava-se Franz - referência à música "Der Selbstmord von Franz" (O suicídio de Franz). Outro, também em relação a uma música especial (Farewell Letter - carta de despedida), lembrava da morte de um familiar. Outro se encantava com um trabalho que eu havia criado, que, por coincidência, fora feito sob inspiração de seu livro predileto. Que recompensas! E, no entanto, foram coisas que nunca esperei. Nunca me havia imaginado como compositor ou ainda alguém que pudesse tocar o coração de conhecidos e desconhecidos.
No começo de tudo, criei minhas músicas para mim mesmo. Tinha vergonha e mesmo medo de mostrá-las a alguém. Mas quando o fazia, mui raramente recebia um bom comentário. Isto porque, de fato, eram elas terríveis. Mas, sinceras. Sinceras como os primeiros rabiscos de quem aprende a desenhar. De alguém que sequer os faz com a intenção de se tornar um gênio da arte, um profissional ou algo do tipo. E que, aos poucos, sem que se perceba, seus traços ganham vida. E pela voz dos demais, ela entende que há nela algo de especial, que pode ser explorado e desenvolvido.