Orfeu da Conceição

Orfeu da Conceição

A partir da leitura do texto da peça de Vinicius de Moraes - Orfeu da Conceição (1956) e do filme de Cacá Diegues, Orfeu, obras que mantêm entre si uma distância de aproximadamente 40 anos, faço uma reflexão, a respeito da apreciação da cultura negra nas representações artísticas citadas. Utilizo o ensaio - A lira e os infernos da exclusão-Orfeu no Brasil - leitura de Pereira, V. Nesse texto o autor procurou caracterizar um jogo de elementos, que evidenciam um modo de interpretação da cultura brasileira, onde reconhece uma dicotomia: a cultura afro-brasileira e a cultura portuguesa européia, a primeira primitiva e atrasada comparada à segunda. "A peça se constrói como um diálogo entre a ordem e a desordem; esta dicotomia se dá, não somente no plano dos personagens, mas até mesmo, numa espécie de estrutura sonora que acompanha o desenvolvimento do enredo. O som de violão será apresentado sempre como um contraste aos barulhos desordenados, ou aos instrumentos de percussão, associados no texto à ameaça da violência ou do caos. (...) No quadro de apresentação de Orfeu, o herói surge brilhante no meio da escuridão da noite, referência à sua natureza apolínea (...) A caracterização do brilho de Orfeu, sua conotação com a harmonia e a ordem, apoia-se em referências sonoras”."A dicotomia observada na peça de Vinicius de Moraes, entre os sons desagregadores, agressivos e primitivos da música mais próxima da origem africana, e a harmonia e suavidade da música européia, apresenta afinidades com perspectivas bastante influentes na sua geração. Reproduz, até certo ponto, os termos com que o pensamento oficial, durante o Estado Novo, distinguia as raízes culturais brasileiras”.Creio que Pereira, V. traz referências ao contexto de formação de Vinicius de Moraes, e dos receptores contemporâneos à peça, numa reflexão vinculada à análise de discurso; neste pode ser observada a relação entre língua e ideologia. O discurso não é uma transmissão de informações mas um "efeito de sentido entre interlocutores". (1) Não são as palavras, as construções poéticas, o estilo e o tom de Vinicius de Moraes que significam; há um espaço social que significa; o sentido do texto é composto por características da situação do produtor do texto e seu lugar social. A contrapartida do receptor é igualmente sobredeterminada na leitura que se faz.

Alguém diz de um lugar para outro alguém que ocupa também um lugar na sociedade. O estudo da significação vai considerar as questões de poder e das relações sociais, a análise de discurso procurando mostrar o funcionamento dos textos, observando sua articulação com as formações ideológicas. Cada formação ideológica "constitui um conjunto complexo de atitudes e representações que não são individuais nem universais, mas reportam mais ou menos às condições de classe em conflito umas com as outras." (2) Vinicius de Moraes era diplomata, pertencente à elite intelectual, e seu texto é apresentado como uma homenagem ao negro brasileiro de quem se diz devedor, "pelo seu apaixonante estilo de viver, que lhe permitiu sem esforço, num simples relampejar do pensamento, sentir no divino músico da Trácia a natureza dos divinos músicos do morro carioca". (3) A noção psicológica de um sujeito coincidente consigo mesmo, não é vigente na análise de discurso, não existe um sujeito uno que produz um discurso. "O conceito de discurso despossui o sujeito falante de seu papel central, para integrá-lo no funcionamento dos enunciados dos textos, cujas condições de possibilidade são sistematicamente articuladas sobre formações ideológicas”.(4) Para além de um objeto estético para fruição, a peça revela o contexto sócio-histórico no qual está imbricada, carreando elementos de uma política cultural do Estado Novo. “Os traços da cultura popular deveriam ser reelaborados, ou tornados civilizados através de sua mistura com os aportes da tradição européia, para que adquirissem a dimensão universal. Assim como Orfeu deveria com sua música organizar o espaço simbólico da favela, o intelectual deveria responsabilizar-se por essa tarefa civilizatória (...)" afirma Pereira, no destacamento do interdiscurso referente ao contexto social e histórico. Isso permite a identificação de uma rede de dizeres, de plurisignificações derivadas de compromissos históricos e ideológicos. O texto de Vinicius de Moraes reflete, malgrado seu, posições valorativas da comunidade social na qual está inserido, ao deparar-se com a cultura afro-brasileira, sua música, seus rituais, seus hábitos enfim. Esse lugar de enunciação explicita os conflitos e preconceitos, talvez, muito mais sociais do que de raça.

Essa leitura é bastante pertinente e reveladora; temos ainda, a possibilidade de observar na peça, o negro Orfeu com seu violão "europeu" de sons dulcíssimos não apenas conotado à harmonia e a ordem. Na fala de Clio querendo persuadir seu filho a não se casar com Eurídice: "(...) você tem usado de todas as mulheres. Eu sei que a culpa disso não é só sua; o feitiço entra nelas com sua música".

Um homem que enfeitiça mulheres, nada mais desarmônico e desagregador!

Além disto, o herói apolíneo, após o encontro com a Dama Negra, a morte, ao final do primeiro ato, "põe-se a tocar furiosamente seu violão, em ritmos e batidas. Os sons, à medida que, se avolumam, vão criando uma impressão formidável de magia negra, de macumba, de bruxedo". A Dama negra, ao ritmo que se desenvolve cada vez mais rapidamente, põe-se a dançar passos de macumba, a princípio lenta, depois vertiginosamente, na progressão da música.”“ O movimento segue assim, num crescendo infinito até que, exausto, Orfeu pára, com o macabro e demoníaco som do violão." Nesse momento, o texto escapa do contraste entre o samba percussivo contra o "som cristalino do violão que plange". Esses elementos do texto são curiosos porque apontam para uma superação da dicotomia cultura negra e cultura portuguesa. No terceiro ato, sobretudo durante o enlouquecimento de Orfeu, sua descida ao inferno até a sua morte, desaparece totalmente seu caráter ordenador. A partir desses elementos minoritários, mas presentes, podemos pensar que o herói é apolíneo e dionisíaco. Talvez nosso hábito de pensamento dicotômico nos conduza a uma leitura polarizada. Magno em seu seminário - A Música, dedica um capítulo ao tema: Há pólo de lira no desejo de Baco, a respeito do binômio Lei/Desejo. Apolo e Dionísio ambos filhos de Zeus, o primeiro chefe das profecias e inspirador dos músicos e poetas quando é chamado Apolo Musageta, a divindade tutelar de todas as artes, o símbolo do sol e da luz civilizadora. Apolo Musageta tem uma lira. Dionísio educado pelas ninfas é acometido de loucura , por onde passa distribui loucura ou pune as pessoas com loucura e vem a ser o Deus do vinho. Assim como Apolo é rodeado pelas musas, ele é rodeado de mulheres no mesmo número, chamadas Bacantes. Ele também é o Deus protetor das artes tal como Apolo. "Podemos considerar que há distinção mas não há oposição clara entre os dois. A lira como qualquer instrumento musical é sempre regrada, ou melhor ela é a regra, é cânone, é escala, é modo e limitação. A lira é da ordem da lei". (5) No caso dos instrumentos percussivos, de sons "ásperos,"como classifica o poeta Vinicius de Moraes, o que estabelecem não é desordem. Dionísio é o desejo de Apolo, no qual ele é a face do desejo de Zeus. São as duas faces do que fundamenta o sujeito Lei/Desejo, não há como separar. "A psicanálise não mora na dicotomia, ela considera esta” philiação “de Dionísio e Apolo como manifestações inseparáveis, embora distinguíveis, indestacáveis de Zeus. No desejo de Dionísio há pólo de lira. Sem polarizar-se na lei, na ordem que a lira é, a mão não tocaria seu desejo.

O movimento do desejo que é dionisíaco, não se diz sem a lira de Apolo ou sem polarizar-se numa lira que é regrada. Sem Apolo não há Baco.”(6) Voltando ao nosso tema da apreciação da cultura afro-brasileira no texto, começo a questionar uma aderência de Vinicius de Moraes a um projeto de domesticação ou civilização dos valores dessa cultura. Não posso deixar de relembrar aqui o Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade, (7) o comportamento cultural brasileiro de"deglutição" das autoridades, de uma vocação colonialista do ponto de vista cultural, mas com um aspecto de devoração, que não é aceitação do colonialismo; incorpora-se algo do outro, mas não é uma aceitação da catequese. Orfeu negro enfeitiça com seu violão, produzindo tantos sons cristalinos como sons furiosos em ritmos e batidas de macumba.

Oswald de Andrade situou a antropofagia no índio, nos processos rituais de comer a carne do outro, introjetando elementos simbólicos do outro. Isso funciona como um mito da antropofagia. Para Gilberto Freire a antropofagia de Oswald vem também do português e da sua maleabilidade. O português tem a nostalgia do longe, do outro e tenta integrá-lo; afirma, que talvez ele tenha sido o melhor colonizador: dividido entre a Europa e África numa certa equivocidade geográfica e cultural. Em Casa Grande e Senzala, comparando-o com outros colonizadores: “... o português por todas aquelas felizes predisposições de raça, de mesologia e de cultura a que nos referimos, não só conseguiu vencer as condições de clima e de solo desfavoráveis ao estabelecimento de europeus nos trópicos, como suprir a extrema penúria de gente branca para a tarefa colonizadora unindo-se com” mulher de cor “. Pelo intercurso com mulher índia ou negra multiplicou-se o colonizador em vigorosa população mestiça, ainda mais adaptável do que ele puro, ao clima tropical; a falta de gente, que o afligia mais do que a qualquer outro colonizador, forçando-o à imediata miscigenação - contra o que não o indispunham, aliás, escrúpulos de raça, apenas preconceitos religiosos, - foi para o português vantagem na sua obra de conquista e colonização dos trópicos. (...) "Os portugueses pela hibridização realizariam no Brasil, obra verdadeira de colonização, vencendo a adversidade do clima". (8) Se o índio apresentava uma antropofagia ritual, foi bastante resistente na antropofagia simbólica. O português assimilou o índio: está aí visível na nossa língua e na nossa comida, mas o índio se recusava a isso por participar de estruturas mais fechadas.

O negro era mais aproximado da transação do português; mesmo escravo, ele se apoderou do outro, rearranjando as posições. Precisamos fazer, ainda hoje, reservas de índios, enquanto para definir brasileiros de ascendência negra a dificuldade é imensa, talvez tarefa impossível, porque teremos de incluir quase toda a população. Na relação do português e do negro talvez possamos ver a essência da antropofagia, de uma transação com a diferença, com a alteridade. Talvez possamos pensar que o povo brasileiro apresenta uma cultura da brincadeira, cultura de um povo irreverente e não subserviente. Esse grau de irreverência só podendo acontecer numa sociedade altamente heterogênea de nascença. Obviamente, a idéia romântica de uma integração racial sem violência, sem exclusão, é um mito que a intelectualidade construiu e uma política cultural, com objetivos de controle social, ratificou; mas, existem certas características peculiares ao brasileiro por sua identidade mestiça. "A antropofagia define o brasileiro, que parodiando os mitos ocidentais, tudo o que a cultura mitifica, sendo hostil ao pronto, ao acabado, ao que se apresenta como eterno o transforma em diferença. O carnaval, prática iconoclasta que descontextualiza os símbolos vencendo os tabus de várias culturas, para nos fazer dizer que somos brancos e negros sem o sermos inteiramente”.(9). A versão cinematográfica da peça apresenta uma preocupação de expor as mazelas de uma população carente dos morros cariocas, onde os conflitos relativos aos negros são englobados pelo problema sócio-econômico: a exclusão social, o abuso policial e o tráfico de drogas. A tragédia passional desse desdobramento da peça está no centro das trágicas vidas dos favelados, onde crianças mais facilmente servem ao tráfico que às musas; onde as mulheres só podem contar com a revista Playboy para ascender socialmente. A repercussão social dos conflitos econômicos está presente a todo o momento, mas, de tal forma mesclado com outros aspectos humanos das personagens, que possuem uma grande disposição para a alegria, como o interesse pela festa do Carnaval, para o erotismo e para o amor, vai levar o espectador a ser seduzido pelas imagens. A primeira cena do filme é de sexo em noite enluarada cortada pela silhueta de um avião. Orfeu toca seu violão para chamar o sol: a espetacular aurora carioca à beira mar. A exuberância da cidade vista do alto: a baía, os morros, o avião no céu, a favela vista de cima parece formada por casinhas de brinquedo; a beleza da cidade e a beleza dos protagonistas. Um cantor de sucesso e uma linda mulata brejeira, reforçam o apelo do cineasta. O filme de Cacá Diegues não é um manifesto político imprescindível à sua causa, como um obra do cinema novo, nem um documentário etnográfico, e não apresenta uma estética da violência, tão cara aos filmes brasileiros deste novo século. Isso não implica que a violência não esteja presente o tempo todo no morro da Carioca, onde moradores brasileiros, cariocas e migrantes de outros estados, de todos os tipos físicos: meninas brancas, chefe de tráfico branco, homens, crianças e mulheres mulatos, morenos, louros e orientais compõem um painel de multiplicidade de interesses, de práticas religiosas e objetivos para garantir sua sobrevivência numa realidade hostil. Acredito que após quarenta anos, nesse Orfeu dos anos 90 não foi preciso fazer homenagens à raça negra. Homenagens que paradoxalmente reforçam o preconceito. Na versão de Diegues, estamos todos policromáticos no mesmo barco, no desamparo frente a um capitalismo selvagem, que gera uma sociedade cada vez mais excludente. Parece-me, que longe de manter-se apolíneo nessa versão, Orfeu aparece equiparado ao "Mal", no caso seu "irmão" Lucinho, chefe do tráfico e tão respeitado quanto Orfeu. Ao traí-lo, beijando-o sensualmente e simulando um abraço, Orfeu mata a quem, pouco antes, revogara-lhe a morte encomendada, poupando-lhe a vida: Lucinho que havia ficado mesmerizado com a imagem na televisão de Orfeu conduzindo o desfile da escola de samba; Abel mata Caim. A tv é o suporte privilegiado da cultura contemporânea, cultura aprisionada nas imagens e opera fabricando valores; aumentando o brilho de Orfeu, impediu sua morte. Orfeu apresenta-se ambíguo: ao mesmo tempo em que se quer exemplo às crianças, mostrando pela sua música e seu trabalho, que nascer no morro não implica em virar bandido, não hesita em planejar sair do morro para casar com sua paixão Eurídice. Esse melancólico Orfeu do fim do século XX se apresenta demasiadamente humano. Não há lugar para heróis atualmente! Somos todos consumidores, compradores de atitudes, conceitos, consumimos para existir, para termos identidade. Como diz no filme o menino Maiko, menino da raça de cabelos verdes, que adorava tênis de marca : "Estou dentro do sentido de tudo". Talvez porque não tivesse sentido nenhum.

Por isso parece-me um tanto anacrônico, falar em discurso sobre o negro, referente ao Orfeu de Cacá Diegues; não que não exista racismo na nossa sociedade, mas, não nesse produto específico da indústria cultural. Não creio que o diretor se posicione como intelectual "mensageiro da luz, da sabedoria e da ordem recebidas da tradição cultural européia", como afirma Pereira, V. em seu ensaio. (10) Parece-me, que ele descortina um painel social em que exibe diversas "comunidades" culturais, religiosas, uma multiplicidade de hábitos e costumes, de diferentes instâncias de poder, toda uma alteridade interna dentro da cidade do Rio de Janeiro, sem focalizar muito as dificuldades da convivência entre os diferentes: o branco, o mulato, o negro, o oriental, o nordestino, a indiazinha, o bandido, o drogado, o careta, o crente, o macumbeiro, o policial, o travesti, a mulher nua de capa de revista, a mulher virgem, os sambistas, o artista, o músico etc. etc., enfim, o infinito das diferenças entre humanos é tudo que há; cada um que tente dar conta de toda essa fragmentação.

Referências bibliográficas:

(1)- Orlandi, E. - A linguagem e seu funcionamento - As Formas do Discurso, Pontes editores, 2001;

(2)-Orlandi, E - Ibidem- pág.27 - citação de Haroche;

(3)- Moraes, Vinicius- Orfeu da Conceição (tragédia carioca) - A propósito de Orfeu, livraria São José, 1960;

(4)- Maingueneau, D. - Initiation aux Méthodes de l'Analyse du Discours, Hachette, Paris, 1976;

(5) - MD Magno- A Música- seminário de 1982, Adultera Editora, 1983;

(6) Ibidem -pág. 194;

(7) - Andrade, O.- Manifesto Antropofágico- Obras Completas de Oswald de Andrade, vol.6, Civilização Brasileira;

(8) - Freire, Gilberto - Casa Grande e Senzala , Livraria José Olympio Editora, 1951;

(9) - Millan, B - Psi do Sil - Maneiro, Revista Revirão 3, A outra editora, 1985;

(10)- Pereira, V., A lira e os infernos da exclusão - Orfeu no Brasil - ensaio de trabalho.