VOCÊ É UM ANJO?
Estava atrasado. As horas passaram tão rapidamente naquela manhã que quando me dei por conta o relógio já batia quatorze horas.
Entrei no escritório. Sobre a escrivaninha, uma pequena boneca parecia fitar-me. Parei à sua frente. Minhas mãos tocaram seus cabelos como se fossem de uma criança que, à espera de um carinho, adormecera.
No ímpeto daquele instante, sem nenhum motivo aparente, apanhei-a, coloquei-a em minha bolsa e saí.
No carro, a caminho da escola, alojei a bolsa sobre o banco do passageiro. De minuto a minuto meus olhos se desviavam para certificar-se que estava ali. Impaciente, abri a bolsa e apanhei a boneca, que parecia querer dizer-me algo. Acomodei-a sobre o volante de forma que pudesse vê-la enquanto dirigia. Seus longos cabelos negros esvoaçavam com o vento que invadia o automóvel. Por um momento meus pensamentos voaram sem destino, para um mundo de fantasias, onde as bonecas tinham vida; enquanto o carro invadia a pista contrária. O som de uma buzina fez-me voltar a atenção à estrada. Voltei a si e coloquei-a novamente na bolsa e fechei o zíper, tentando dizer-lhe: ‘fique quieta! Não saia daí’. Fez-se silêncio em minha alma, mas nem por isso o tempo parou.
No pátio da escola, crianças corriam por todos os lados, aproveitando os minutos do recreio. O barulho era ensurdecedor. Desci do carro e tomei o corredor principal que dava para a sala dos professores. Algo ainda me inquietava o coração. Antes que eu pudesse tocar a maçaneta da porta uma pequenina mão segurou a minha, tendo como fundo um grito estridente: ‘professor! Professor!Tem uma menina chorando. Chorando muito! Tentei falar com ela, mas ela não para de chorar. Acho que ela brigou com alguém. Vem vê...vem vê’.
Tomado pela surpresa deixei-me levar. A menina aparentava oito anos. Estava sentada num banco rústico, feito do tronco de uma árvore, num canto isolado do pátio. Seus cabelos negros caíam por sobre a face, ocultando o choro, enquanto o soluço e as lágrimas se faziam eminentes. Abaixei-me. Minha presença parecia insignificante. O soluço aumentava, amparando o desespero daquele choro sentido. A criança chorava com a alma, alheia ao resto do mundo.
Minha mão roçou-lhe os cabelos e parou em seu queixo. Suavemente, levantei-lhe a cabeça, tentando ver seus olhos. A criança desesperou-se. Ajoelhei-me e abracei-a em silêncio, apertando-a contra meu peito. Ficamos assim por um instante, até que uma frase, intercalada de soluços, rompeu os dentes cerrados: ‘eu...não sou o que...aquele menino disse! Eu não sou! Não sou’!
Apertei-a ainda mais contra meu peito, como se confirmasse suas palavras: ‘tenho certeza que não é’! Aos poucos, a criança foi se acalmando. Antes, porém, de um último soluço, outra frase apunhalou-me os ouvidos: ‘eu não sou como minha mãe! Eu não vou fazer o que ela faz...’!
Estremeci, enquanto o desespero saltou novamente sobre a menina. Meus olhos transbordaram o que meu coração sentia. Nem mesmo era necessário compreender suas palavras. Bastava-me compreender seu sofrimento. Sofri com ela. Abracei-a! Era como se sua dor fosse minha dor. Era como se sua mãe fosse minha mãe. Era como se aquela coroa de espinhos que estraçalhava seu pequenino coração pudesse coroar o também o meu. Suportei em silêncio aquela dor, enquanto, aos poucos, aquela criança se abandonava no meu colo...por um imenso segundo...interrompido pela sirene da escola.
Levantei-me e com os polegares enxuguei-lhe as lágrimas, que ainda escorriam, em silêncio. Ajoelhei-me novamente, abri minha bolsa e apanhando a boneca sorri-lhe: ‘eu trouxe pra você’! Entre as lágrimas, a garotinha deixou escapar um sorriso. Apanhou a boneca, abraçou-a e apertando-a contra seu colo inclinou a cabeça. Seus cabelos longos caíram sobre sua face, e, ocultando parcialmente a boneca, revelou uma incrível semelhança: pareciam gêmeas! Levantou a cabeça lentamente e, enquanto segurava a boneca com uma das mãos, a outra procurava meu pescoço. Abraçou-me com confiança, enquanto seus lábios pronunciaram as palavras mais doces que já ouvi: ‘você é um anjo’?
...e a sirene tocou novamente, chamando-a para a sala de aula.