O PREÇO DA VIDA
Hoje,alguém estendeu-me a mão.
Pude perceber, transfigurada em sua face,
a solidão em que o mundo vive.
Ouvi o tilintar das moedas sucumbindo-lhe as mãos,
sem, no entanto, estancar-lhe o sangue das feridas.
É Jesus, crucificado e abandonado que grita:
Tenho fome,
Tenho sede,
Tenho frio!
Infelizmente, na grande maioria das vezes, passamos pelos nossos irmãos sem percebê-los. Olhamos, mas não os vemos. Damos-lhes roupas, cestas básicas, brinquedos, mas não os enxergamos na sua real miséria. Não me refiro somente à miséria material, mas também, e principalmente, à miséria espiritual e intelectual, capazes de transformar um ser humano num ser sem alma (1).
Pobre daquele que estende a mão somente para atirar moedas ao próximo, sem ao menos tocar-lhe a face. É como pagar uma dádiva (a vida) com falsas moedas. Muitas vezes nos preocupamos tanto em saber o que o outro faria com nossas míseras moedas, que nos esquecemos de suas principais necessidades: calor humano e dignidade.
Lembro-me que certa vez, quando me dirigia a uma escola de periferia para iniciar um projeto voluntário, eu me encontrava tomado pela ansiedade e pelo medo. Ansioso devido às situações que poderia ali encontrar, e com medo de não ter a mínima capacidade de fazer alguma coisa, ou ao menos ser provedor de qualquer ajuda.
Enquanto fazia o trajeto até o local, procurei desfazer-me desses sentimentos concentrando-me naquilo que julgava ser o mais importante: a vontade de Deus para mim naquele momento. Em oração pedi-Lhe que se fizesse em mim o instrumento necessário para a realização daquele projeto, e que, encontrasse ali as pessoas necessárias para auxiliar-me, de acordo com o ‘Seu projeto’.
Quando lá cheguei, fui recepcionado por um garoto que correu para abrir-me o portão. Agradeci-lhe e passando a mão em seus cabelos perguntei-lhe o nome. Ele me respondeu e logo indagou sobre o que eu estava fazendo ali e se era vendedor de livros. Respondi-lhe amorosamente, enquanto meus braços tocavam seus ombros e de sua face via-se brotar um sorriso.
Enquanto caminhávamos para o interior da escola, um segundo menino apareceu e, vendo a cena, perguntou se nos conhecíamos. Respondi-lhe que ‘ainda não!’, mas que já éramos bons amigos. Imediatamente o garoto ‘entregou a ficha’ do colega: ‘este é o fulano. É o chefe da gang. Tudo que acontece por aqui é ele quem manda’. O outro retrucou: ‘não me entrega assim, ôo dedo duro!’ Sustentei a conversa em tom de brincadeira e procurei manter-me próximo daqueles dois, pois via ali o retrato das dificuldades que encontraria naquele lugar.
Semanas mais tarde reencontrei-os na sala de aula onde iniciamos o projeto e pude perceber que ‘a vontade de Deus’ se fazia mesmo sobre eles. Não nos afastamos mais. Laços cada vez mais fortes garantiam nossa unidade, que crescia na medida em que me aprofundava nas suas reais necessidades.
Cerca de dois meses depois, já com um pequeno grupo de pessoas, visitamos a família de um deles, onde nos deparamos com uma realidade ainda mais penosa, compartilhada com cinco irmãos que tinham entre um e onze anos. Sentimos na pele seu cotidiano, e, ‘ouvindo o silêncio do seu coração’ entendemos o que fazer e por onde deveríamos começar.
Ouvimos também, gratificados, o testemunho de sua mãe que nos relatou: “(...) ele está mesmo diferente. No fim da semana passada ele ajudou o avô e ganhou dez reais. Chegando em casa me deu o dinheiro e disse que era para ajudar nas despesas da casa. Passados alguns minutos ele me perguntou se aquilo era um ato de amor para com os irmãos (...) agora compreendo o que ele queria dizer”.
Imediatamente veio-me à mente uma reflexão de Chiara Lubich(2) onde ela nos fala, complementando um dito popular, que ‘não devemos dar o peixe, nem tão pouco ensinar a pescar, mas pescar com o outro’.
Compreendo, portanto, que é mergulhando na verdade do outro, vivenciando sua realidade, compartilhando seus momentos de fraqueza e de glória que o conhecemos em sua ‘unicidade’ e nos habilitamos para amá-lo concretamente.
Um amor com intensidade e profundidade, capaz de ‘abalar as estruturas’ do outro, que, sentindo-se amado, também ama e, retribuindo o amor recebido, gera a reciprocidade. Uma corrente de amor que vai e vem, e que, envolvendo o meio que o cerca, transforma-o. Um amor que não cabe em si, e transborda; e que, invadindo a comunidade, gera mais amor, constituindo a unidade, a fraternidade universal.
Parece utopia, mas não é! Somos capazes de prover a necessidade íntima do outro. Basta amá-lo em sua necessidade, doando-lhe o amor que esperamos nós recebermos.
Parece um grão de areia em meio a um oceano, mas não é! E mesmo que fosse já vi muitos grãos de areia que se transformaram em verdadeiras pérolas.
(1) Incapacitado para o amor.
(2) Fundadora do Movimento dos Focolares - Obra de Maria. (1920 – 2008).