Crítica sobre a poética do livro “O fel e o mel” de Evan do Carmo

De uma forma geral, a poética de Evan do Carmo retrata duas dimensões da existência humana: o pensamento transfigurado da racionalidade, e em outro pólo, a comedida sensibilidade ou para ser mais claro, a parte equilibrada da sentimentalidade humana. De um lado, há também, certos ideais nietzschianos com um misto de descrição fragmentada da compreensão das coisas e das relações humanas, e ainda, resgates constantes, fleches que se moldam para formar um todo.

Para que não fique confuso é necessário trilharmos caminhos outros e resumidamente emprestarmos à análise fragmentos que a completem. Assim, diz o poeta em “Uma análise franca de meu ego poético”

(...)

É como se eu estivesse inconscientemente vivendo

Este momento, este sentido de abandono,

Ou é como se profetizasse sobre um futuro sombrio. (p. 81)

Nesses versos, há uma visível exposição de idiossincrasias, quer dizer, de temperamentos que retratam, inevitavelmente, a posição do poeta diante das intempéries da vida. Isso se dá, sobretudo, porque o poeta parece ser arremessado em uma realidade não palpável, isto é, não apreendida por sua percepção sensorial. Dessa forma, cabe ao inconsciente a função de moldar uma determinada realidade para que sua percepção consciente não seja de um todo afetada.

Essa, evidentemente, é uma das principais características que perpassa a obra “O fel e o mel”. A percepção sensorial do poeta está afetada pelo lado obscuro de sua posição diante do mundo. Esse lado obscuro cabe a sua racionalização, a sua visão ensimesmada demonstrando, por sua vez, uma espécie de contradição inevitável e original.

Com isso pensamos, portanto, que é indubitável a idéia de irracionalismo visceral como característica constitutiva da obra. Não parece ser interesse do escritor retratar a vida em todas as suas dimensões, mas tão-somente em uma de suas partes mais complexas que é a da vontade de potência como dizia o velho Nietzsche.

Assim, pensamos como Italo Mariconi:

O mundo é um ato de criação poética. Nós todos o herdamos, compartilhamos, interferimos nesse ato. Só percebemos a existência daquilo que nomeamos. Interferimos mesmo que não queiramos. Interferimos em qualquer perspectiva. Seja como religiosos ou místicos, devotos de um ou de muitos deuses. Seja como céticos, devotos da ciência, conformados ao fato de estarmos limitados ao apenas humano, demasiadamente humano. (Mariconi, 2002. p.09)

Segundo Mariconi, sendo o mundo um ato de criação poética, o fato de se estar escrevendo poemas já caracteriza, por sua vez, intervenção no mundo. Isso, inconscientemente, é parte da vontade independente de credo ou qualquer outra posição que diz respeito à limitação do ser humano. Para tanto, a vontade de potência não basta e isso Evan do Carmo parece deixar claro em sua poética como no poema “Apenado”.

Um apenado vive a espera da pena cumprir,

Como se o tempo não fosse capaz das noites medir.

(...)

Ser livre não basta para quem quer viver,

A vida só é vida para quem quer sofrer. (p. 20)

De qualquer forma, o ato de criação poética já é, por sua natureza, movimento. E esse movimento não retrata apenas a vontade de interferir no mundo, mas também, a posição que é conferida ao ser não pela sua própria escolha, mas pela força de algo que lhe é imposto.

Sendo assim, parece seguro dizermos que a poética de Evan do Carmo oscila como pêndulo sendo ora racional, ora irracional, ora vontade, ora imposição, ora intervenção no mundo, ora expectativa diante do que se mostra ao ser cognoscente que muitas vezes se apresenta como telespectador de uma vida cansada.

É evidente que o livro “O fel e o mel” pode ser encarado como a interface de uma realidade em que a existência humana é colocada em conflito pelo viés do drama suscitado por temáticas pertinentes que perpassam a obra. Isso, por um lado, envolve certo movimento, uma vez que a articulação de imagens presume caracterizações deslocadas de pontos fixos, quer dizer, os poemas apresentam a realidade humana como fleches. Por outro lado, podemos observar, não obstante, uma temporalização pertinente em que passado e futuro se transfiguram no presente.

De uma forma bastante precisa, Evan apresenta questionamentos articulados com concepções filosóficas necessárias para a compreensão do lugar que o sujeito está inserido. Dessa forma, nos faz refletir sobre o que Foucault chama de “descentralização” do sujeito. Quer dizer, em nossa contemporaneidade vemos a constituição do sujeito como processo que envolve, inevitavelmente, o lugar que ele ocupa. Pensamento e ações são definidos por algo exterior a ele. Nesse ponto, o que importa não é a sua subjetividade ou o que ele subjetivamente aparenta ser, mas o que e como se tornou o que é no presente. Nesses termos o sujeito se apresenta com agente, subjetividade livre que não se firma como autor original de seu discurso. Evan também se mostra interessado nesse processo como podemos ver no poema “O vento”:

Vontade eu queria ter,

A mesma que tem o vento;

Invadir todos os nichos,

Esbarrar em movimento...

Desconhecer mar aberto

Vencer as curvas do tempo. (p. 60)

E também no poema “Busco a impopularidade”:

Sou filósofo, não de fórmulas mágicas,

Ou teológicas, para explicar os deuses ou os homens,

Sou um eterno mutante. (p. 53)

A vida desse sujeito da poesia, semelhante à do sujeito “pós-moderno”, não segue uma lógica científica de causa e efeito como dizia Culler (1999), mas uma lógica da história que procura entender como uma coisa leva a outra. Posto isso, compreendemos que o sujeito poético vive um drama abafado por sua própria voz. O ser, como metamorfose inevitável nessa concepção, parece estar privado de vontade própria e deixa o tempo levar-lhe para regiões incertas.

Caracterizando esse processo em que o sujeito se manifesta para interferir no mundo através da criação poética que, por sua natureza é movimento, o autor não demonstra preocupação tão profunda com a linguagem. Essa parece ser uma das posições mais freqüentes de poetas de nosso tempo, a saber, não utilizam a linguagem como marca decisiva para a interpretação do poema como um todo imbuído de características discursivas, ou seja, o discurso se mostra não pela expressão precisa, mas pelas idéias sugeridas que constitui o poema. Escritores como Derrida, por exemplo, não nega a idéia de verdade, significação e identidade ao partir da noção de desconstrução. Isso se dá pelo fato de que o pensamento, sobretudo a partir da análise pós-estruturalista, não se reduz a uma página escrita. Antes, é parte inerente de um ser que percebe e que, ao seu turno, se individualiza descentralizando conceitos e imperativos.

A linguagem assim refletida abre possibilidades para a construção de sentidos. As idéias não se reduzem a expressões de diversas formas, agora o que interessa é retratar aspectos da existência humana que não são expostos na linguagem, mas sim que estão no indizível, na incompletude. Com relação a isso podemos entender como Orlandi que:

Como a interpretação tem uma relação fundamental com a materialidade da linguagem, as diferentes linguagens significam diferentemente: são assim distintos gestos de interpretação que constituem a relação com o sentido nas diferentes linguagens. (...) A incompletude é característica de todo processo de significação. A relação pensamento/ linguagem/mundo permanece aberta, sendo a interpretação função dessa incompletude, que consideramos como uma qualidade e não como um defeito: a falta como temos dito em abundância, é também o lugar do possível na linguagem. (Orlandi, 2001.p.19)

Podemos ver isso facilmente quando o autor de “O fel e o mel” reflete sobre o ato de escrita no texto “Escrever”:

(...)

Há, sem dúvida, alguns milhões de enigmas nos textos mais inocentes, e a prática da leitura, com um vigor e com um temor salutar dos seus criadores, nos leva a descobrir tesouros escondidos de imensurável valor. (p. 106)

Essa incompletude como temos nos referido, deve ser encarada como a forma mais proveniente de se instigar o leitor a trilhar caminhos outros, isto é, de fazer com que ele saia de sua passividade para pensar por si próprio, procurando entender a falta e preencher esse espaço, pois ela não é um defeito, mas “o lugar do possível na linguagem”. Em muitos poemas Evan faz isso com precisão.

Outra forma de se pensar nessa incompletude é a que foi mencionada, mas não explicitada, que é a do possível que está à margem do texto. Assim, o poeta ao escrever o poema – em muitos casos – não abarca a realidade como totalização e, dessa forma, “tesouros escondidos” só podem ser alcançados por aqueles que com atenção lêem o que está escrito. Por exemplo, na expressão do poeta: “só na escuridão do dia está me faltando você” (p. 128). Só é possível compreendermos essa “escuridão” se atentarmos para o que está além do texto. Assim, a escuridão representa um estado psicológico em que o eu lírico está compelido experimentando certo negativismo sem que literalmente o dia esteja escuro.

Certa vez o grande Baudelaire disse: “não está longe o tempo em que se entenderá que uma literatura que se recusa a progredir de mãos dadas com a ciência e com a filosofia é uma literatura assassina e suicida”. Essa seria uma máxima tão verdadeira – embora o próprio Baudelaire não tenha realizado com tanto destaque – que argumentos outros talvez fossem desnecessários. Entretanto parece seguro trilharmos caminhos próprios, mas sem abrir mão da ciência e da filosofia apenas como aliadas da literatura, jamais como seu complemento. Com relação a isso o poeta Evan do Carmo se inseri deixando transparecer, em muitos momentos, sua condição de filósofo, em outro sua veia poética. Por esse fato, há poemas carregados de certa nebulosidade, pois se torna difícil distinguir o poeta do filósofo e o filósofo do poeta.

É como foi dito antes: resgates constantes, fleches que se moldam para formar um todo. Essa condição que recai sobre o poeta, ainda que preocupações fragmentadas, retrata dimensões da existência humana. Assim, ser filósofo e ser poeta é a síntese ambivalente para quem não deseja ser compreendido com tanta profundidade, mas para quem se objetiva em retratar o ser humano em suas partes constitutivas.

Por essas e outras, a poética de Evan do Carmo pode ser encarada não como emoções soltas arremessadas num papel, mas como a representação fidedigna e condizente com a realidade que o poeta está inserido. É a síntese de um pensamento transfigurado. A objetivação de quem deseja compreender cada vez mais... E a marcha segue seu rumo ensurdecida pelo grito de alguém que para e diz: está aqui minha poesia e minha filosofia! Leiam se buscam sentir o imperceptível e compreender o insondável.

Referências:

CULLER, Jonathan. Teoria literária: uma introdução. São Paulo: Beca produções culturais Ltda, 1999.

CARMO, Evan do. O fel e o mel. Brasília: Fakos, 2007.

MARICONI, Italo. Como e por que ler a poesia brasileira do século XX. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002.

ORLANDI, Eni Puccinelli. Discurso e texto: formulação e circulação dos sentidos. Campinas – SP: Pontes, 2001.

Leon Cardoso
Enviado por Leon Cardoso em 02/12/2009
Código do texto: T1956332
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.