"O Artesão Fidelis" - Mário Zanini
O Artesão Fidelis
O preço da fidelidade é a eterna vigilância
Millôr Fernandes
O protagonista deste ensaio MárioZanini,
revela-nos através de suas pinturas a paulicea de animo proletário, não a do Andrade, de selvagens palavras, mas aquela das casinhas simples, de operários que vizinhavam não aquele ... Cambuci pelas noites de crime... e sim aquele por onde gingam os bondes como um fogo de artifício, sapateando nos trilhos. É dessa São Paulo que o fiel artesão, na escadaria da Sé, aguardava com seu colega Paschoal Graciano possíveis clientes. Tempos de dificuldade e muita luta. Deixou-nos em agosto de 1971 do século passado. Da Rua Ana Néri onde viveu toda a sua vida, contemplava na infância os paredões da fábrica Minetti-Gamba. Seu olhar habituava-se desde cedo àquela paisagem fabril urbana, fumacenta e de muitas chaminés. Descendente de italianos, compartia o lar operário com nove irmãos. Aos quinze anos conclui o curso de pintura na Escola Profissional Masculina do Brás. Tal iniciativa deveu-se a incapacidade econômica das famílias operárias em pagar os estudos para doutor, diante da prole, habitualmente numerosa, que precisava de ajuda na criação e o caminho era o de ter um oficio. Vinculo de responsabilidade e fidelidade. Assim sendo serviu até 1924 como letrista na Companhia Antártica Paulista. A sua ambiência e vontade levou-o a matricular-se no curso noturno de desenho e artes do Liceu de Artes e Ofícios. Ao cabo de dois anos de estudos a óleo e têmpera, cópias de pintura européia do século XVIII e de pinturas renascentistas e maneiristas mostra-se um promissor pintor e de muita dedicação. Comprovado pelo auto-retrato de 1923 e uma paisagem a óleo pintada sobre a madeira de uma caixa de charutos, de viés impressionista. Mais tarde, por ocasião do II Salão da Família Artística Paulista (1939), Mário de Andrade diria “...este meu xará foi para mim uma revelação. É difícil diagnosticar se a notável diversidade do seu atual manejo do pincel indica riqueza ou indecisão, mas pressinto nele o estofo de um grande paisagista”. A titulo de subsistência realiza pinturas decorativas, consistida em motivos de frisas estereotipadas de frutas e flores, ou livremente fantasiosos, para atender o gosto da clientela de nouveaux riches.. Nesse mister, conhece Rebolo que se ocupava de contratações desses serviços. Estreitada as relações, alugam um escritório-atelier no Palacete Santa Helena que atenderá a comercialização dos serviços e a pintura de cavalete. Os artistas-artesãos surgiram das correntes imigratórias marcadamente a partir de 1880. A hospedagem se dava num sobrado do Bom Retiro, acanhado e de precárias condições. Somente em 1885 o governo paulista foi autorizado a gastar até 100.000$000 na compra de um terreno para a construção de uma nova hospedaria, conforme Lei nº 51, de 21/3/1885. Registre-se, ficou estabelecido que o trabalho do corpo administrativo da hospedaria da Rua Visconde de Parnaíba, no Brás, seria diário, incluindo os domingos e dias santificados e estender-se-ia das sete às dezessete horas a não ser que o movimento exigisse sua ampliação por uma ou duas horas a mais. As dependências construídas tinham a capacidade de abrigar duas mil pessoas. Note-se o que ocorre em nossos dias com atravessadores de negócios, lá trás, no último decênio do século XIX também acontecia, consoante afirmação do Diretor da Hospedaria de Imigrantes, Sr. Antonio Alves P. de Almeida que revela: “Os especuladores agiam tanto junto à hospedaria como no centro da cidade. Mesmo nas conduções, os fazendeiros eram abordados e lhes era oferecida mão-de-obra à razão de cinco mil réis por solteiro e vinte mil réis por família. A oferta era acompanhada da advertência de que: ou pagavam essas quantias ou não conseguiriam trabalhadores”. No começo do século XX os italianos representavam 50% da população de São Paulo. A mega presença importunou a tal ponto que “Durante uma apresentação no Teatro São José, em beneficio do Hospital Italiano, um grupo de nativistas invadiu o teatro e um gritou “Se há algum brasileiro aqui saia! Queremos acabar com esta canalha de carcamanos!”...Seguiram três dias de luta nas ruas, uma “caça aos italianos”, segundo Brichanteau, “com cruel e selvagem insistência”. Ainda, “Os nativistas parecem ter contado com ressentimentos resultantes da competição por empregos, da indignação em relação à presença esmagadora dos italianos na Cidade e, talvez, do racismo – gritos de “Viva Menelik!” não devem ter sido gratuitos – além de manobras da alta política brasileira”. Não obstante, “...os italianos se faziam assimilar em São Paulo com uma rapidez que impressionou todos os observadores. Já em 1899, o jornal Fanfulla reclamou que os filhos dos imigrantes estivessem perdendo “a idéia da pátria” e não aprendessem italiano, um problema da maior gravidade para um jornal publicado nessa língua. Como todos reconheciam, muitos dos imigrantes falavam apenas o dialeto da sua região de origem e sentiam pouca lealdade ao recém-criado estado nacional italiano “. Este sentimento nativista comparece no movimento modernista despertando a nacionalidade, valorando a arte regional, as cores de nossa paisagem, a ingenuidade do nosso caipira e avenças de cunho sócio-politico. O preconceito social e étnico perpassa aos salões burgueses da década de 30, dado que os artesãos oriundi do Cambuci, Brás, Mooca não tinham status para freqüentar os aristocráticos ambientes do povo de Higienópolis, como veremos mais adiante. De comportamento ainda provinciano, o triangulo central da cidade abrigava os decoradores de paredes que em busca de serviço perambulavam pela Sé e arredores, a exemplo do que também acontecia em dias não tão longes no Largo do Paissandu, com os artistas de circo. A imigração “de braço livre” veio para suprir a mão de obra escrava liberta pela lei Áurea; causando profundas mudanças em nossa sociedade que tipificava no comentário do senador Antonio da Silva Prado fosse o imigrante “morigerado, sóbrio e laborioso”. Ora, “O mito criado por Antonio Prado para as populações rurais, para o imigrante estabelecido em São Paulo, também teve uma versão urbana. Esse mito foi personificado pelo conde Francisco Matarazzo, chegado ao Brasil no século XIX e que logo se tornou um dos homens mais ricos do país. Quando falava aos seus operários, Matarazzo procurava reforçar a crença numa historia, muito difundida nos bairros pobres de São Paulo, de que chegara ao Brasil pobre, trabalhara muito e durante muito tempo vivera de pão e banana. Porém, quando discursava para os membros de sua classe, aos industriais e fazendeiros ricos, aos governantes, ele fazia questão de sublinhar que tinha origem nobre, dizia mesmo que era descendente do imperador Carlos Magno e que chegara ao Brasil trazendo algum capital para os primeiros negócios. Duas historias opostas. Em sua terra, Castelabate, perto de Salerno, na Itália, ainda existe o casarão que fora de sua família, provavelmente uma família da pequena nobreza agrária completamente arruinada”. Tal recorte e suas versões servem para esconder a dramaticidade da historia imigratória. As privações, pobreza e desrespeito à pessoa e família cunharam um fingido, dissimulado receio, conduzido pelos interesses da elite dominante. A esperança de voltar é um grito agônico que só se ouve lá dentro, molhado de lagrimas e muito sofrer. O contorno desse phatos irá contagiar o modo de ser nos bairros populares, com cadeiras na calçada servidas de lembranças que os amici dividem nas tardes de domingo, enquanto a molecada joga bola de meia não de capotão. Essa nostalgia, imóvel, saudosa se fixará nos descendentes - costurada por invisíveis linhas. Esse ânimo de alma levará o artesão do Cambuci a peregrinar pelos sítios urbanos e suburbanos da cidade, ainda com lavadeiras nas várzeas do Tietê que com os filhos agarrados às suas saias se fixavam no olhar do artista no fazer cotidiano. O condutor de cabras que pelas ruas apregoava seu produto mereceu registro numa singular composição, que nos mostra uma atividade ordinária àqueles anos de casas com portas ao rés da rua.
A São Paulo dos anos 20 aos 70 foi marcada por significativos e históricos acontecimentos nos corredores da cultura, da política e da sociedade. Este tríptico inicia-se com a exposição e manifesto modernista de 22. Comemora-se o centenário da Independência. Em seguida o cardápio das revoluções de 1924, 1930, e 1932 até o golpe militar de 1964. Com o crash de Nova York em 29, a empolada sociedade aristocrática do café foi obrigada a mexer nos seus pagos de domínio. Na iminência de uma mudança institucional e a disposição das camadas populares de lutar por seus direitos; a insurgência paulista proclamada em 1924, ciente da progressiva industrialização, brada ser “a locomotiva que puxa os outros vagões”, despertando o mítico sentimento patriótico vestido de bandeirante. Enquanto isso “vivia-se ainda, nos meios intelectuais da época, em São Paulo e no Rio, demasiadamente em Paris”. Surge então uma nova mentalidade. O depoimento de Antonio dos Santos Figueiredo ilustra como estava a cidade “Pelo Vale do Anhangabaú nada de vida. Ao longe, a feérica iluminação do Viaduto. E as detonações persistiam. Via cadáveres, sangue, rostos macerados, desesperos, agonias, impotentes. Tive ímpetos de voltar, e ir-me juntar aos companheiros” (1924, episódios da revolução de São Paulo). Zanini tem dezessete anos nessa ocorrência e cursa o noturno do Liceu de Artes e Ofícios, sito a Rua XI de Agosto nº 41; fiel ao seu propósito de conhecer as técnicas de embasamento artístico. A desordem causada pela revolução conseqüência de saques, incêndios, desabastecimento, violação de propriedades publicas e privadas levou as elites dominantes e classes conservadoras (comerciantes, banqueiros e industriais) a temerem ...”uma explosão revolucionária à moda russa, conforme fica claro no alerta da Associação Comercial: Nas primeiras horas do dia 9 (...) elementos maus da população promoveram em vários bairros os mais degradantes assaltos e saques(...) Assistimos à pilhagem do Armazém Matarazzo, no Largo do Arouche. Foi uma scena da Rússia bolchevista dos primeiros tempos”. A essa altura dos fatos a cidade está sob o domínio da admirável figura de Isidoro Dias Lopes, comandante revolucionário, uma vez que o governador Carlos de Campos, o secretário da Justiça Bento Bueno e comitiva foram bivaquear por dezoito dias num trem da Central, nas proximidades de Guaiaúna - contígua a Penha; juntando-se às guarnições federais que lá estavam acampadas. A refrega encarniçada deu-se notadamente nos bairros do Bom Retiro, Belenzinho, Brás, Penha, Cambuci, Ipiranga, Paraíso, Mooca, Aclimação, Vila Mariana e Avenida Paulista. Os revolucionários tinham alvo definido, enquanto os legalistas atiravam indiscriminadamente. De acordo com Paulo Duarte, essa violência era proposital: “ Quais eram os pontos militarizados? Em primeiro lugar o quartel da Luz: uma só vez recebeu granadas; depois o quartel de Santana: não foi alvejado; a Estação da Luz: idem (...). E no entanto lugares afastadíssimos de qualquer desses, como as ruas São Luís, Augusta, Caio Prado, Boa Vista, Santa Ifigênia, av. São João (...) em todos eles prédios ruíram e inúmeros civis perderam a vida, atingidos por estilhaços”. Com tal proceder as simpatias do povo voltaram-se para a causa revolucionária. Exauridos e diante da inflexibilidade do governo federal em anistiar os revoltosos; estes por sua vez não querendo alongar o sofrimento da população abandonam a cidade na noite de 27 de julho rumo ao Sul, conduzidos por aquele - que para eles ...”corporificava a esperança de mudança, “gravando-se”na memória do populacho como aspiração insôfrega, do mesmo modo que o carrapato à criação (...) ele ficará renitente, como consolo, aspiração encorajante das massas, das multidões desenfreadas (...). As crianças pobres, dia de Natal, ao em vez de esperarem Papai Noel, esperarão, desesperadamente inquietas, papai Isidoro, que lhes matou a fome e o frio, vestindo-as e dando de comer, em ligeiros (...) dias”. A propósito Mário de Andrade escreveu: Na manhã daquele dia nós saímos de casa, como já estava no costume, pra saber o que tinha sucedido desde a tardinha da véspera (...) e logo foi engrossando a certeza de que não havia mais revolucionários na Cidade. Haviam partido no rumo dos trens (...) os homens da Paulicéia andavam de cá pra lá, nos bairros nunca visitados, parolando, colhendo lendas e fatos, parando junto aos paredões com manchas de sangue, junto às caras mortas dos incêndios, junto dos casarões desbeiçados e até junto dos conquistadores.
1930 – Ínsito o destroçamento econômico mundial, Getúlio Vargas no “Trem da Vitória” a caminho do Palácio do Catete é recebido em São Paulo num clima contagiante, dando a sensação de que se processaria uma limpeza geral, moralizante. O fato é que Vargas frustrou os democráticos que ambicionavam o comando do governo; nomeando um interventor, repetido seguidamente. Tomou a carteira do café do jugo estadual e com isso levou de roldão a autonomia paulista até então respeitada. Novos tributos debutaram para contrariedade dos lavradores, ou seja, os fazendeiros do café. As insatisfações reinantes eram vigiadas pela permanência das tropas federais. A Ditatura conhecida provisória levou José Eduardo Macedo Soares a dizer: “Para São Paulo a revolução é o bando de ciganos acampados, os olhos fuzilando de ganância, as mãos convulsivas no surrupio. O idealismo da Revolução é o cabo do relho, a fúria de mandar e de se locupletar. Sobre o entulho do perrepismo abateu um enxame inumerável de moscas que, zumbindo, escureceram os ares, atroando como se cada inseto voraz fosse um elefante alucinado. Eis a obra do Sr. Getúlio Vargas em favor de São Paulo ou em favor da revolução” (Diário Carioca, 17 de fevereiro de 1932). As classes conservadoras estavam alarmadas vendo a ascensão do operariado num latente perigo vermelho, numa clara ameaça à manutenção dos seus interesses. A eloqüência de Ibrahim Nobre se fez presente afirmando que a reação paulista seria a luta de “Jesus contra Lenine”. Da mesma opinião o arcebispo de São Paulo, Dom Duarte Leopoldo e Silva. Os forasteiros do governo provisório incomodavam com sua postura toda a classe política e ...acendia a chama do regionalismo, como mostra ... a fala de Júlio de Mesquita: “Embora seja grande a distancia entre a caatinga e os pampas, e aparentemente diversa a formação social de ambos, são grandes as afinidades entre Getúlio e João Alberto. O laço e o gibão os aproxima”. A deterioração da conjuntura sócio-politica era tal que a cidade se viu cercada de comícios, manifestações estudantis e greves operárias. A Frente Única constituída mobilizou a população na defesa da autonomia, constitucionalização e legalidade. Preparativos feitos, slogans como: “Constituição é Ordem e Justiça”, “Hoje como no Passado Paulistas, Avante!”, “Abaixo a Ditadura”, “Viva São Paulo!” e outros mais eram conduzidos por todos os cantos da nossa Piratininga.
A explosão do movimento deu-se no dia 9 de julho, resultado do comício de 25 de Janeiro de 1932 que num extenso cortejo percorre da Sé por ruas centrais parando ...em frente à redação de O Estado de S. Paulo, onde ouve o discurso de Júlio de Mesquita Filho. Ardente e legitima a aspiração do povo paulista que apregoava “Abaixo Getúlio! Morra Getúlio!”. A emoção reinante é testemunhada pelo poeta Paulo Nogueira Filho que nos conta:
“...Na rua Direita encontrei o plãoque-plãoque cadenciado. Senti-me enquadrado como na parada da independência (...). Todos marchavam, severos, compenetrados, calados, com o chapéu enterrado fundo na cabeça. ...Ninguém naquele momento tinha forças para dirigir a multidão, que se comandava a si mesma. Levantava, resoluta, o brado revolucionário. Na sua consciência se aninhara, definitivamente, a idéia do revide pelas armas. Ninguém mais a demoveria desse propósito. São Paulo lideraria a libertação do Brasil. Decisão irrecorrível”.
O entusiasmo da multidão atravessava todos os quadrantes das gentes insurretas como relata em carta Leven Vampré à sua irmã Laura Rodrigo Octávio: “A loucura coletiva que nos empolga é a mostra verdadeira que a terra bandeirante é uma terra de homens livres e não escravos. Está jogada a cartada suprema e todos os homens válidos daqui estão prontos e dispostos a manter a liberdade do nosso rincão, sem prosápia, mas resolutos. O sr. Oswaldo Aranha teve uma recepção de que ele há de se lembrar pela vida afora”. Dessa convulsão resultou treze mortos e muitos feridos. Quatro deles: Mário Martins de Almeida, Euclides Miragaia, Antonio Américo de Camargo Andrade e Dráusio Marcondes de Sousa tornaram-se os mártires do movimento e suas iniciais deram nome à primeira milícia civil – MMDC. De fato, a “revolução do improviso” partiu de surpresa na noite do dia 9 de julho em grupos de motocicletas e ciclistas que conduziam ordens aos diversos postos que prontamente executaram suas missões. A solidariedade de homens e mulheres que aqui ficavam emprestava aos que iam, cigarros, chocolates, sanduíches com exaltados bordões de encorajamento e orgulho. A mobilização era de tamanha grandeza que o Mackenzie College transformou-se em um grande hospital; professores e alunos das escolas superiores engajaram-se imediatamente; serviços dentários gratuitos eram oferecidos aos soldados; as legações consulares colaboraram com ambulâncias, curativos e roupas. A generosidade da população abraçava os revolucionários constitucionalistas. A geografia do combate foi levada do urbano para o interior do território paulista. As forças federais bloquearam as fronteiras do Estado de forma que as batalhas mais violentas se deram no Vale do Paraíba. A nível político se mediava uma escapatória que traída pela vesga articulação - se pronuncia a rendição. O gesto das crianças levando suas balas e chocolates à Casa da Formiga que por sua vez as encaminhava ao front, é de um desprendimento comovente que revela desde cedo esta generosa alma paulista recortada de vibrante civismo que não admite cabresto: “NON DVCOR DVCO”. No entanto, com a derrota batendo à nossa porta, no desespero Ibrahim Nobre improvisa: “A revolução não deveria terminar assim. Depois que fossem os filhos, iriam os pais. Depois que eles morressem, iriam as irmãs, as mães, as noivas. Todos morreriam. Mais tarde, quando alguém passasse por aqui, neste São Paulo deserto, sem pedra sobre pedra, levantando os olhos para o céu, haveria de ler, no epitáfio das estrelas, a história de um povo que não quis ser escravo”. Com o passaporte do armistício, selado em 2 de outubro de 1932, vieram às tropas federais; a prisão de lideres civis e militares foi inevitável, os mais afortunados buscaram o exílio e a cidade vigiada, contida. Os passos medidos dos seus cidadãos refletiam um caminhar solene, de dever cumprido. No transcurso das revoluções é de importância assinalar que: em 1925 foi criada a Faculdade de Belas-Artes, onde em 1968 Zanini daria aulas de xilogravura; a Biblioteca da Câmara Municipal hoje Mário de Andrade e em 1931 foi iniciada a greve geral de operários, pleiteando o regime de oito horas de trabalho. Conformado pelas circunstancias políticas e sociais reinantes, Zanini busca incansavelmente aprender as técnicas da arte de pintar, produzindo paisagens, algumas naturezas-mortas e por algum tempo frequentou o atelier de Georg Elpons; enquanto se mantém do seu oficio de pintor decorativo, tendo como companheiro Volpi. Confinado no lado velho da cidade não toma conta que em 1932 com a fundação da Sociedade Pró-Arte Moderna (SPAM) e do Clube dos Artistas Modernos (CAM) irrompem exposições. Esta tentativa visava divulgar a pintura moderna, tornando-a mais acessível ao público, visto o reproche consignado desde a Semana de 22 e mais precisamente com a mostra de Anita Malfatti em 17. A Galeria Guatapará, em abril de 1933 exibe trabalhos de Léger, Picasso, Brancusi, Chirico, Lhote, Dufy, Delaunay, Le Corbusier entre outros. Fazem-lhe companhia Anita Malfatti, Brecheret, Hugo Adami, John Graz, Lasar Segall, Paulo Rossi Osir, Tarsila, Gobbis, Warchavchik e muitos mais. O figurativismo das composições de semblante acadêmico ainda prevalece no gosto popular e na sociedade burguesa. As agremiações citadas tiveram curta duração, a primeira delas durou dois bailes de carnaval e a segunda a policia fechou quando Flávio de Carvalho tinha recém inaugurado o Teatro da Experiência. Decorre o ano de 1934 e o Palacete Santa Helena registra além de Rebolo e Zanini, a presença de Aldo Bonadei, Clóvis Graciano, Fúlvio Pennacchi e Manoel Matins. Humberto Rosa e Alfredo Rullo Rizzotti também se transferem logo depois. Da amizade estabelecida, quase natural, puxada por suas origens comuns, estabelecem uma camaradagem que se consagra ao ar livre nos domingos quando se encontram para pintar. Nesse convívio, um tanto isolados, uma vez que a elite estava do outro lado do viaduto, com afinco e paixão fixam em suas telas e cartões paisagens de rios, várzeas, campos, o fazer cotidiano, as filas de pão, casarios e tudo mais que a inquietação e sobressaltos engendravam com a constante mudança de postos no governo.“Conta-se – certa funcionária, alarmada, proferiu a seguinte queixa:” Mas isto está uma coisa louca! A gente dorme com um secretário de Estado e acorda com outro...”. Esta aglomeração de artistas a quem Sérgio Milliet conferiu o nome de “Grupo Santa Helena”, esteio da “Família Artística Paulista”, aconteceu porque a busca por trabalho se dava no centro da cidade, ali se reuniam, por serem artesãos, filhos de imigrantes, moradores de bairros operários, caminhantes de caminhos comuns e ransosamente chamados de carcamanos. Mas foi este grupo até então discriminado; através de seu figurativismo, de expressão documental por vezes, que com bom-senso e equilíbrio suportou todos os desaforos dos procedimentos modernistas. Desde o inicio a fidelidade ao oficio de artesão, aos seus companheiros, ao bairro do qual nunca se afastou, a cidade que tanto amou, às tradições de origem, os temas compositivos de suas pinturas e seus personagens populares fazem de Zanini O Artesão Fidelis. Por essa época participa do I Salão Paulista de Belas Artes; comparecerá outras vezes em anos futuros. O desenho com modelo-vivo será uma prática constante até o fim de sua vida. No final do decênio 20 e curso do 30, a sua produção revela: paisagens paulistas (Paisagem Guarapiranga (28), Vista da Ponte Grande (35), Rua do Carmo (38), Mulheres na rua de Mogi das Cruzes (38); rurais (Paisagem com Carroça (c.déc.20), Paisagem (28) e retratos (Hilde Weber (38), s. titulo (marginais-38). Nada solene são essas composições, é o quedar num canto, espiar com olhos d’alma a natureza que se insinua, com suas cores e arrumação; a Hilde, expressionista de puritano olhar contracena com o papear das mulheres de Mogi das Cruzes e do remanso da Guarapiranga sobreleva a Ponte Grande. A este tempo não podemos esquecer a presença de Ernesto de Fiori, muito cara aos pintores da Sé. Nesse passo chegamos ao ano da desgraça, 1937, segundo Paulo Mendes de Almeida; visto a outorga da Nova Constituição da República, conhecida como “a polaca”, por ter sido inspirada na Constituição fascista da Polônia. Jorge Amado lança o livro Capitães de Areia e imediatamente é preso por militares da 6ª Região Militar. Alexander Calder que apresentaria seus mobiles em 1939, no 3º Salão de Maio, foi destaque na Feira Mundial de Paris. Oswald de Andrade publica a peça O Rei da Vela, que foi encenada trinta anos depois, em 1967, pela primeira vez, no Teatro Oficina, sob a direção de José Celso Martinez Correia. Figura muito querida foi o médico Adolpho Jagle, que afinou com suas sessões de musica a sensibilidade de Zanini, além de cuidá-lo profissionalmente. Osório César, psiquiatra, também convidava os artistas para audições musicais em seu apartamento; incentivando-os a desenhar sob seu efeito. Morre Noel Rosa. Duas exposições da Família Artística Paulista se realizam, a primeira em maio de 37 e a segunda em novembro do mesmo ano. Participam dos certames: Aldo Bonadei, Alfredo Volpi, Anita Malfatti, Arnaldo Barbosa, Clóvis Graciano, F. Rebolo Gonzáles, Fulvio Pennacchi, Hugo Adami, Humberto Rosa, Manuel Martins, Mário Zanini, Ernesto de Fiori, Waldemar Costa e ainda Paulo Rossi Osir, idealizador da denominação. Como é de se supor, criticas favoráveis apareceram e contrárias também; Geraldo Ferraz, um dos que conceberam o Salão de Maio contesta: “Até os que fundaram, contra o Salão de Maio, em fins de 1937, o movimento fracassado da Família Artística Paulista, até esses surgiram. E eram os tradicionalistas, os defensores do carcamanismo artístico da Paulicéa, a morrer de amores pelos processos de Giotto e Cimabue”. Na Europa, Hitler invade a Polônia em 1939 e conseqüentemente deflagra a Segunda Guerra Mundial. Sigmund Freud, considerado o pai da psicanálise, morre. Em plena vigência do Estado Novo o DIP-Departamento de Imprensa e Propaganda interfere nos meios de comunicação, na educação e nas artes, censurando músicas, reportagens e livros. Apesar da sua irreverência muitas vezes censurada, o nacionalismo de vários modernistas combina com a política getulista. Carlos Drummond de Andrade é nomeado chefe de gabinete de Gustavo Capanema, ministro da Educação. Rio de Janeiro é o Distrito Federal e Vargas manda construir um prédio para o Ministério da Educação, marco do modernismo. Participariam os arquitetos Oscar Niemeyer e Afonso Reidy, os pintores Portinari, Pancetti e Guignard, o escultor Bruno Giorgi e o paisagista Roberto Burle Marx. Estância em que Paulo Rossi Osir convida Mário Zanini a trabalhar na Osirarte, fundada em 1940, cujo objetivo primordial é a feitura artística de azulejos, tendo como tarefa inicial colaborar na execução dos painéis das fachadas do Ministério da Educação para os quais Portinari fornece os cartões. A permanência de Zanini na Osirarte vai até o seu encerramento que se dá em 1958. A monotipia também é de seu interesse e Sergio Milliet reflete: ... A monotipia é uma arte de blasés. De pintores que, já não se satisfazendo com o conhecimento dos segredos plásticos, procuram nesse brinquedo de aprendiz de feiticeiro transmutações inéditas de valores. Itanhaém nesse período é visitada por ele, Volpi e Ottone Zorlini; freqüenta também o ateliê de Bruno Giorgi, na praça Marechal Deodoro, ao lado de Ernesto de Fiori, Gerda Brentani e outros mais. Dá-se a Exposição de Pintura Francesa (1940) e Zanini deslumbrado, fica vivamente impressionado com os trabalhos de Cézanne. Um caldo cozido por Fiori, preparado por Cézanne e mosqueado de macchiaioli será o prato benjamim de Zanini; refestelado pela sobremesa à la Galvez. Portinari se torna cumim e Van Gogh é o maitre dessa refeição. A sua primeira individual somente aconteceria em 1944, na Galeria da Livraria Brasiliense. Tamanha é sua lealdade que envolve-se na decoração carnavalesca de um salão na Av. Ipiranga para angariar fundos ao Clube dos Artistas e Amigos da Arte (Clubinho), em atividade até os dias de hoje na Rua Bento Freitas, 306. Das inúmeras participações coletivas mereceu comentários a respeito de sua insegurança, do ficar e ousar, da permanente pesquisa que ora se mostra expressiva, viva, atual para cair em cores menores, de contornos de saudosa angustia. Será o refletir da atmosfera da cidade? Quem sabe? O fato é que Francastel relaciona esta revolução estética com as transformações radicais nos diferentes domínios da atividade humana e do conhecimento, de um lado, com a mecanização e a industrialização e, do outro, com o progresso das ciências especulativas e aplicadas, responsáveis pela mudança completa na vida da sociedade. ...adverte contra a “resposta habitualmente dada... segundo a qual críticos e historiadores têm a tendência de afirmar que a arte se separou do humano”. O artesão pulsa dentro de Zanini, o métier de artífice explode em toda extensão de sua obra, exegeta de seus princípios, seguidor incansável da melhor compreensão se vê pressionado por um avançar geométrico, abstratas configurações e muitos ismos a satisfazer. A década de 40 é de intensa atividade artística. Comparece às exposições do Sindicato dos Artistas Plásticos, do Salão Nacional do Rio de Janeiro, da Osirarte, de duas coletivas no Chile, da primeira apresentação da “Pintura Paulista” organizada pela Galeria Domus, cujos participantes entre outros cite-se: Bonadei, Volpi, Graciano, Di Cavalcanti, Rebolo, Flávio de Carvalho, Pennacchi, Yolanda Mohaly e Zanini. O colar de acontecimentos artísticos e culturais em São Paulo, iniciado por Anita Malfatti em 1917, pela Semana de 22, com a fundação da SPAM (Sociedade Pró-Arte Moderna) e do CAM (Clube dos Artistas Modernos) em 1932 e pelos Salões de Maio e da Familia Artística Paulista de 1937 a 1939, serviu de leitmotiv para a criação do MASP-Museu de Arte de São Paulo (1947) e do MAM-Museu de Arte Moderna (1948). O primeiro por iniciativa de Assis Chateaubriand, auxiliado por Pietro Maria Bardi. Quanto ao segundo, calcado no modelo museográfico do MoMa de Nova York foi por decisão de Francisco “Cicillo” Matarazzo Sobrinho. No inicio do quinto decênio consegue viajar para a Itália e França, mediante uma lista de subscrição promovida pelo arquiteto Rino Levi, Fúlvio Pennacchi e o industrial Carlos Tamagni que daria direito a uma obra produzida durante ou logo após a viagem. Depois participaria da I, II e V Bienal, respectivamente em 1951,1953 e 1959. Por esse tempo se vê pressionado pelas novas propostas estéticas e um figurativo geométrico surge em suas composições até proposições abstratas e construtivas. A dissolução dos santelenistas ocorre gradualmente, a cidade recorta novo cenário, o triangulo central já não serve de ponto de encontro, uma nova agitação domina as pessoas e a cidade, surge uma nova sociedade e os interesses conflitam na hora de se escolher. A tendência abstrata é cansativa, sem vida, decorativa e afásica. Há quem não concorde. Francastel pronuncia ...sua adesão irrestrita às artes de vanguarda, exaltando o cubismo, o abstracionismo e o vanguardismo como linguagens mais correntes do ultimo meio século. A sua incursão pelas novas formas revela-se em: Natureza Morta (1958), Dunas (1956-58), Baianas, Cena baía de Guanabara, Lavadeiras (1951), Cubismo (1959), Arvoredo (1961), Abstração Lírica (1960). Essa investida serve para afirmar que sua linguagem é expressionista figurativa, aquela da manchinha, onde até o sapateiro poderia sensibilizar-se e não essa geometrização, tampouco retângulos, cubos, triângulos sobrepostos e dispostos em planos e cores a formar um caleidoscópio sem vida - contrapondo a colocação de Francastel; sem desprezar contudo o que esses vanguardismos pudessem acrescentar ao seu oficio de pintor artesão. O amadurecimento do artista revela experiência e erudição, esta revelada por sua biblioteca de grande abrangência temática. Consciente, retoma a expressividade mais ingênua e emotiva de sua temática, calcada no dialogo com o real. [ ]... concentrando-se em registrar o ambiente vivido pelo artista. Pinta pelo prazer, pela alegria de pintar como disse Peretto. Em 1962 realiza a sua segunda exposição individual na Casa do Artista Plástico, em São Paulo. A mostra exibe 81 obras entre óleos, aquarelas, guaches, monotipias e alguns desenhos. Zanini parece atender nesse estagio da vida o que Marta Traba propõe: unir significados e significantes, restabelecendo a linguagem perdida pelas artes plásticas. A significação social e humana devolve Zanini às suas origens de pintor proletário. Por ocasião da sua terceira individual em 1963, em comemoração aos seus 40 anos de pintura a Folha de São Paulo afirma que a temática da exposição seria brasileira e inflexível desde a sua origem. Até um pouco antes do Golpe Militar de 1964, excursiona pelo litoral e interior do país em companhia de vários colegas, reverenciando a paisagem, o pitoresco, o fazer das pessoas, as igrejas, o estar só na contemplação do natural. Como já foi dito sua refeição é maravilhosamente cromática. A sua tela Vagão de Segunda Classe, de 1969, exibe qualidade, equilíbrio de composição e apreensão do real. O desenho foi fundamental na vida do artista e persistiu nele até mesmo quando foi acometido de um derrame cerebral, limitando o uso da mão direita. Em sua moradia e atelier na Travessa Ana Néri, deixamos o fiel artesão, o sincero amigo que neste agosto de 1971 deixou-nos, assim como o Santa Helena que os badalos da Sé sequer anunciaram. Adeus Zanini.
“Caminhante, não há caminhos.
Faz-se o caminho ao andar”.
Antonio Machado
poeta espanhol
paulo costa
junho, 2009
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