DIA VINTE DE NOVEMBRO – MAIS UM DIA PARA ESQUECER
O dia vinte de novembro foi eleito como o assim chamado “dia da consciência negra” e sua expectativa órbita em torno da necessidade imperiosa de reflexão sobre a importância da cultura e do povo africano na formação da cultura nacional, como elemento fundamental para a construção de nossa cultura e nossas reminiscências históricas, constituindo, assim, uma das fundações da nação em que nascemos, crescemos e vivemos.
A guisa de mero comentário de ordem referencial esta data foi estabelecida pelo projeto lei número 10.639, no dia 9 de janeiro de 2003. Foi escolhida a data de 20 de novembro, pois foi neste dia, no ano de 1695, que morreu Zumbi, líder do Quilombo dos Palmares. Aliás, esta data suplantou a anteriormente comemorada – o dia treze de maio – posto que a reflexão ali imposta (segundo análise de “especialistas” no assunto) versava sobre a “generosidade” de uma mulher da raça branca (Princesa Isabel) em face da população negra escravizada até então.
Todavia, como já argumentamos acerca do que há para comemorar na data de oito de maio (dia da mulher), em que se celebra a mortes de mais de trezentas trabalhadoras em uma fábrica, questionamos mais uma vez o que há de se comemorar em uma data (morte de Zumbi dos Palmares), inclusive com o intuito meramente político de exigir-se conscientização sobre a etnia negra a partir da morte de um revolucionário? Que conscientização alguém pode ter a partir de sentimentos como revolta, ódio racial, ressentimentos e lembranças que cultivam a separação étnica?
Sem mesmo compreender o significado real da palavra “consciência”, dela se valem apenas para justificar erros insanos de quem apenas quer dividir para conquistar.
Ao nos exigirmos a consciência de certo evento (seja ele um ato ou um fato), temos que admitir uma postura de conhecimento por absorção, ou seja, temos que somar empatia com simpatia. A primeira diz respeito à importância de nos colocarmos no lugar de outrem para podermos sentir o mesmo que aquele indivíduo está sentindo, cujo objetivo crucial é que despertemos nossa mente e nossos sentimentos para aquelas situação vivida pelo nosso semelhante.
Empatia é um processo extremamente dificultoso e que exige muita dedicação do agente que deseja dele valer-se para buscar uma compreensão mais precisa e mais profunda sobre os sentimentos, imagens e impressões do semelhante com quem se relaciona. No nosso caso aqui elaborado, temos que todo o cidadão deve compreender (sentir) aquilo que o outro sentiu ou sente quando se vê discriminado, subvertido, ignorado, menosprezado e tratado com desrespeito.
Quanto ao segundo (simpatia), revela-se como outro processo complementar ao primeiro e que tem por finalidade compartilhar estas mesmas experiências e sensações com o intuito de construir uma relação de proximidade fraterna com o semelhante. Trata-se de um relacionamento fundado na fraternidade em seu sentido mais aprofundado, não apenas como um ato de comiseração, ou arrependimento, mas uma sensação de compartilhamento, de identidade com aquele que lhe é tão caro quanto si mesmo e cujos sofrimentos e angústias tornam-se tão seus quanto os sentimentos que possui em relação ao mundo que o cerca.
Apenas desta forma, estaremos aptos ao pleno exercício da consciência de tal modo que, ao final deste processo, seremos mais capazes de sentir nossos semelhantes como realmente eles são: nossos semelhantes, nossos irmãos, nossos fraternos que conosco dividem angústias, alegrias, tristezas, expectativas e esperança num mundo melhor.
Qualquer coisa diferente disso não é conscientização, mas sim ignorância, falta de informação e absoluta ausência de respeito pela vida humana, até mesmo porque não somos raças diferentes, apenas etnias distintas com características próprias que devem ser conhecidas e respeitas. Conhecidas para que delas possamos usufruir uma adição de expectativas e de plena intensificação da sensação de igualdade e de fraternidade que torna o ser humano um indivíduo – uma entidade como corpo, mente, alma e espírito – coeso com o meio em que vive e integrado aos seus semelhantes.
Respeitadas porque nada se faz sem respeito ao nosso semelhante, porque além de nosso semelhante no sentido físico, também o é no sentido eterno, secular. Somos todos absolutamente iguais nas expectativas, nos anseios e na esperança dividida com a nossa própria existência.
A maravilha de nossas diferenças reside na nossa capacidade de compreendê-las, transformá-las e transmiti-las aos nossos semelhantes buscando além da compreensão que nos torna humanos e receptividade carinhosa do amor que também nos torna inigualáveis e espetacularmente criativos e ciosos de nossa finalidade de transformar o amor universal em uma realidade.
Que me perdoem os leitores, mas não posso coadunar com comemorações acerca da diferença, porque é na diferença que reside a grandiosidade da razão de nossa própria existência. Não posso concordar que comemoremos datas que enaltecem a segregação, o radicalismo e a incapacidade do homem em superar seus erros com acertos. Afinal, somos aquilo que sentimos e se nos sentimos como um mal sobre os outros assim agiremos, ceifando qualquer esperança de um mundo melhor e sem diferenças.
O ser humano, independentemente de sua etnia, não deve considerar-se, em si mesmo, um mal ou ainda um bem no sentido literal do termo, pois não somos inteiramente bons ou maus, mas apenas humanos. Erramos, falhamos e, muitas vezes, não nos arrependemos de nossos atos.
No entanto, não podemos viver uma existência de eterna redenção: redenção por erros que cometemos e que iremos ainda cometer, posto que falíveis somos e falíveis sempre seremos. Buscar redenção em nosso próprio nome e em nome de gerações anteriores ou posteriores, já que este desejo não resolve o problema de continuarmos errando, como, por exemplo, fazemos atualmente com a população GLBT, discriminando-os e deles exigindo um afastamento social que não levará à redenção, mas sim ao pecado (mais uma vez).
Quando escravizamos um semelhante, o fazemos tendo a certeza de que isto é algo correto, aceitável pelas suas próprias razões. Senão vejamos. É o que fizemos na Roma Antiga, quando escravos eram objetos de saque das conquistas e estes nada mais eram que os integrantes do povo vencido, não importando a que etnia pertenciam, passavam a serem tratados como “coisas”, passíveis de serem negociados como mercadorias e cujo valor econômico integrava-se às necessidades de cidadãos, bem como aos interesses do Estado.
Como vemos o escravagismo, como meio de acionamento da economia não surgiu com aquele que mais conhecemos entre os séculos XVII e XVIII. E como já salientamos, trata-se de uma análise de interesses econômicos e políticos, movidos única e exclusivamente pelo anseio que indivíduo tem em relação ao lucro, ao ganho que uma situação pode lhe proporcionar – é a ambição que todos possuímos, mas que alguns sufocam tempo suficientes para tornarem-se dignos, enquanto outros apenas deixam-se por ela levar na direção e ao sabor da própria satisfação pessoal.
Nos dias de hoje ainda encontramos este tipo de prática como o trabalho escravo (“redução do trabalhador à condição análoga de escravo”), o trabalho do menor (muitas das vezes sem remuneração), o trabalho do estrangeiro em situação irregular e o trabalho das comunidades carentes cuja retribuição apenas se reduz a alimento e lugar para dormir.
Ora, poupem-se de explanações destituídas de bom senso, alegando, prima facie que devemos nos conscientizar de erros que ainda cometemos e de que temos uma dívida a ser paga com alguém, sendo que esta dívida jamais será paga. Isentem-me de aceitar a ridícula idéia de que podemos ter algo a pagar com nosso próprio sangue que seja capaz de calar as milhares de almas sacrificadas em detrimento do interesse de alguns, de que qualquer esforço que fizermos será suficiente para nos redimir, inclusive da mesma maneira que acreditamos que seríamos perdoados por ter crucificado o Filho do Pai.
Redenção depende diretamente de conscientização de quem somos, a que viemos e para onde queremos ir. Não é uma mera figura de retórica um desiderato ao qual nos prendemos de forma única e eterna e para onde levaremos nossas culpas, medos e sofrimentos, pois todos estes devem estar aqui, conosco tornando nossa existência algo que valha a pena.
Assim, acredito que esta “redenção” fundada apenas e tão somente em movimentos melancólicos e destituídos de fundamento cuja única ação é a memória torpe de uma data e de um movimento em sentido antagônico de nada representam como demonstração inequívoca da vontade de mudança, de aprender com os próprios erros e de dignificar a raça humana que sempre estará acima das etnias, das nações e dos Estados.
Perdoem-me pela sinceridade excessiva, mas não há outro modo de tratarmos um assunto tão indigesto e tão depreciável sob qualquer aspecto que seja considerada e sob qualquer comiseração que almejemos ter em relação a nós mesmos.
Ao final, após tanta crítica destrutiva e de autocomiseração desnecessária, a mensagem que deve ficar é de uma simplicidade que chega a doer: não devemos comemorar o que não há para comemorar; não devemos buscar consciência onde apenas existe indiferença; não podemos nos considerar redimidos de erros que continuamos cometendo e dos quais não nos livramos apenas por uma data, um momento de reflexão vazia, ou ainda por acharmos que um punhado de cédulas são suficientes para “comprar” nossa indulgência.
Acreditemos sim que podemos e devemos agir de modo fraterno, buscando incessantemente a fraternidade, a igualdade e a liberdade de sermos o que somos, assim como também são nossos semelhantes. Busquemos a essência do existir que não se resume apenas ao “ter”, mas principalmente ao “ser”.
Abraços Fraternais a todos que deste pequeno ensaio foram capazes de extrair uma experiência válida para suas vidas e uma razão para continuar na busca incessante pela fraternidade que move não apenas nossos corações e mentes, mas também nossas almas e espíritos.