Sobre a história, três agricultores portugueses pobres e a literatura (I)
PUBLICADO ORIGINALMENTE EM http://dacarpe.wordpress.com
Existe ainda na história, como campo de saber, um ranso de não admitir a ficcionalidade da narrativa histórica. No século XIX, quando a história se estabelece como ciência aos moldes positivistas, junto com outros campos de saber como a sociologia, a psicologia, a geografia, todas se desmembrando da “nave-mãe”, a filosofia, ela faz um esforço tremendo (a meu ver, com sucesso) para se desvincular de qualquer maneira da literatura, campo de saber que começou a ser construído como menor, visto que por ele passava intrínseca e inexoravelmente a ficção, a ilusão se sobrepondo à realidade. Este caminho foi obedecido até os Annales, corrente francesa do início do século XX que abriu novos horizontes à história ao admitir que os chamados saberes de humanidades advinham todos de um só lugar. Assim, a história passa a dialogar com os saberes “irmãos” citados acima, mas a literatura ainda passa pela tangente. Ela ainda é vista como o ilusório e a história como um retrato fiel da realidade. O enfrentamento desta questão é adiado e o diálogo destas duas é postergado. Somente na década de 1970, com o chamado pós-estruturalismo, se constrói uma tentativa, de fato, de estabelecer um nexo entre estes dois saberes. Hayden White sendo o principal propulsor desta conexão contesta até que medida o discurso da história é real, relativizando assim a distância imposta a estas duas narrativas.
O fato é que a história ainda não conseguiu se livrar desta postura isolacionista. Houveram inúmeras reações a esta aproximação, gerando um debate fervoroso que ainda perdura até hoje. Eu, particularmente, não consigo (por inabilidade ou por intuição) perceber esta longa distância entre a literatura e a história. Se a terceira geração dos Annales possibilitou o engrandecimento da história cultural como campo hegemônico dentro da história, foi, creio eu, por enxergarem ou intuirem uma proximidade entre a história e as manifestações culturais, conclusão esta aparentemente óbvia, porém de implicações importantes. Assim, penso que a literatura tem um papel significativo na (re)construção, hoje, da história tanto no âmbito acadêmico como no escolar, meu lugar de preocupações e de militância.
Digo tudo isto pois pensava esta semana na minha história familiar. Descobri há alguns anos por ocasião da mudança de meus pais, jogado em uma pasta dentro de um armário de tralhas lá de casa, documentos da entrada de meu avô e bisavós no Brasil; eram todos portugueses. Aquilo de alguma forma mexeu comigo, como a todos mexe a eterna questão das origens, de que falava Marc Bloch. Pus-me a pesquisar e consegui descobrir poucas coisas. Por exemplo, que meu bisavô ao chegar ao país, conseguiu emprego como motorista de caminhão de lixo. Nada demais a não ser por dois fatos inusitados: ele fez parte da primeira frota automotiva deste tipo e quase foi despedido com dois meses de trabalho, por ter batido o caminhão. A tolerância devia ser alta para tamanha novidade e para uma cidade que ainda andava a pé ou a cavalo.
Descobri outras coisas, menos do que poderia, mas o suficiente para me por a pensar que nunca conseguiria descobrir os sentimentos de três agricultores analfabetos que vieram para o Brasil sabe-se lá o porquê (alguns dizem que para fugir da guerra portuguesa na África, outros que para tentar a vida no Além-mar, nunca saberei…). As questões sentimentais sempre fogem a história, afirmação perigosa que me ponho a explicar na próxima frase. Pode-se alegar de ser possível descobrir o sentimento de alguém em uma carta, em um diário, em uma foto até. Mas na verdade o que se descobre é o que aquela pessoa quis que aflorasse de sentimento, ou melhor, o sentimento momentâneo ao escrever a tal carta, diário ou foto. Nunca se consegue descobrir o que a cabeça reflete: é como um espelho silenciado.
A estas alturas entra na história o que a literatura tem para oferecer, mas que aquela não assumiu até hoje como parte integrante de si: a ficção. E não há nada de mal em ser ficcional, penso eu. A imaginação é a parte que torna a história presente, que faz ela ficar perto de nós, que a ela nos une. É a imaginação fértil que dirá o que meus bisavós vieram aqui fazer, como foi a viagem, porque meu bisavô se apaixonou pela minha bisavó, se se apaixonaram, a impressão que ele teve ao chegar, os papos que ele teve com os seus vizinhos etc. Neste campo do cotidiano a história deve admitir, para ser mais transparente e mais prazeirosa do que a maliciosa arte de escrever em código restrito, que a literatura é uma grande companheira. E assim, poderíamos construir uma espécie de historatura. Quem sabe?
Meus bisavós e meu avô (e seu irmão mais novo, morto durante a viagem de navio de lá pra cá) sorriram, choraram, brigaram, solidarizaram e escarneceram a vida como todos os seres deste mundo (e de outros também, diga-se). Isto não há de ser descoberto por qualquer papel ou memória concretizada, quiçá de serem descobertas. A isto só a intuição ou a imaginação, duas características humanas que a história, e a ciência como um todo, ainda custa a admitir como humanas. Ainda bem que a literatura não é ciência. Ainda…
Continua…
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