O BALÉ SENSITIVO DA FUMAÇA DE UM FOGÃO A LENHA
Uma lembrança me tomou de soslaio, e à medida que eu me lembrava, era remetida a outro espaço-tempo, como se meu corpo fosse todo transportado a um lugar posicionado em minhas lembranças e meu nariz experimentasse o suave perfume da lenha queimando e da casca de laranja sobre a chapa de ferro. Minha infância e parte da adolescência foram vivenciadas entre aromas dos diferentes tipos de madeiras que eram colocados para queimar no fogão a lenha. De manhã, já acordávamos com o perfume da fumaça penetrando nas nossas narinas e imediatamente o gosto da torrada na chapa e o café fresco tomava conta de nossa mente. Essa memória ficou em algum local de minha mente, pronta para voltar e me fazer sentir o prazer e a alegria do aconchego que só uma cozinha com essas características pode dar. Eu tenho, em minha casa atual, um fogão a lenha, onde reproduzo os rituais de minha infância, deixando fluir minha lembrança saboreando o cheiro doce da fumaça e da casca de laranja no fogo. O cheiro é assim, sai bailando pelo espaço, e muito diferentemente do que se fala por ai, que tudo que é fumaça e efêmero se desmancha no ar, a fumaça dos fogões é muito diferente, pois eles estão sempre associados com o cozinhar, que por sua vez se associam com a convivência e com sentimentos. É um cheiro visceral que nos conecta aos nossos ancestrais ao redor das fogueiras ou nas festas de solstícios nos fazendo devanear, como reforça Bachelard (2008, p.23) “não se entregar ao devaneio diante do fogo é perder o uso verdadeiramente humano e primeiro do fogo”. Hoje é muito raro se ver um fogão a lenha nas casas, mesmo aquelas do interior. A necessidade de se preservar o meio ambiente dificulta a aquisição de lenha e aqueles que porventura, tenha um fogão a lenha, raramente podem fazer uso dele, pois a lenha se tornou escassa. Mas acender o fogo em um fogão a lenha é uma arte que remete aos nossos ancestrais e mais uma vez Bachelard (2008, p.13) vem nos dizer da maestria de se acender um fogo e atiçar as brasas, e ele também se permite ao devaneio de relembrar de seu pai acendendo o fogo em seu quarto e nos diz “a arte de atiçar, que aprendi com meu pai, permaneceu em mim como uma vaidade”. Dedico-me a acender o fogo em meu fogão, nos dias chuvosos, raros em minha cidade, ou nas noites de sexta-feira quando recebo amigos para comer junto com minha família. É um momento de fluxo, e como diz Csikszentmihalyi, (1999, p. 83) “as experiências mais positivas que as pessoas relatam em geral são aquelas compartilhadas com os amigos” e assim, ao acender o fogo realizo um pequeno ritual de boas vindas aos amigos, possibilitando-os experimentar o cheiro de várias ervas que cultivo no jardim: alfavaca, alecrim, manjericão, hortelã e claro a inesquecível casca de laranja. Vários de meus amigos são pessoas da minha faixa etária e, portanto, já vivenciaram experiências olfativas como as minhas e a nostalgia das lembranças de infância permeiam as conversas ao pé do fogão ou durante as refeições. São momentos onde os sentidos adquirem sua função poética, como diz Rubem Alves (2005, p. 46) “Os sentidos brutos são os sentidos em si mesmos. Os sentidos se educam ao serem tocados pela poesia”. Pois é a poesia que faz o diferencial e beleza de nossos sentidos. Estar em casa e se sentir abrigado e acolhido é uma sensação muito boa. Para Cormier (2005, p.131), “o odor é uma forma poderosa de comunicação, seja por sua presença física, seja por suas associações simbólicas”. No caso da memória olfativa vivenciamos dois momentos. Inicialmente a sua presença física, que é quando vivenciamos as emoções do odor e os mecanismos olfativos nos levam a sentir e criar nossas memórias. Posteriormente, quando fazemos associações simbólicas, somos levados a buscar nossas memórias olfativas e reviver e muitas vezes, ressignificar esses odores, pois já estamos em outras situações e outras vivências onde as emoções confluem e nos possibilitam outras novas emoções. Portanto, este encontro materializado nessa experiencialidade olfativa me envolveu em cenários encantadores da minha vida, fazendo-me reviver momentos singulares em diferentes épocas, mas que estão internalizados nas minhas entranhas e me fazem ter a certeza da felicidade de valorizar as coisas simples da vida ontem, hoje e sempre.