Uma folga para a alma
A ideia de que os pobres o são porque não trabalham, enquanto os ricos atingiram essa situação como resultado das suas capacidades, tornou-se a ideologia de um capitalismo triunfante e encontrou a sua expressão mais imediata no Protestantismo.
Agnes Heller – O Homem do Renascimento
H. R. Rocha
Na obra República, em um trecho do diálogo entre Sócrates e Trasímaco, em resposta à assertiva do último, ao afirmar que “são também sensatos e bons os homens injustos”, Sócrates argumenta que “São, sim! Pelo menos os que são capazes de cometer injustiça de maneira tão perfeita que põem uma cidade e povos a seus pés” (PLATÃO, 2006: 34). É a partir desse raciocínio investigativo que gostaria de refletir sobre a época política que vivemos atualmente. A ideia – se é que se pode assim dizer - é que vivemos numa era de grandes contradições que se manifestam em nós através de depressão, desânimo, angústia, solidão, irritação, desconcentração, insegurança, tristeza, decepção e assim ao infinito, talvez. Até questões relacionadas à raça, etnia, fé, etc., que são toldadas em nosso pensamento, nos inquietam e nos impedem de uma visão aprimorada do mundo social. Saber que certos governantes governam para si próprio e não para o povo, mas sim, contra o povo, é uma luz que conduz à determinadas ações que também podem nos conduzir à prática de um ato injusto.
Tudo isso que afirmei anteriormente é percebido no corpo. É nele que surgem as marcas do sofrimento, da desilusão, do desespero, do desencanto. Físico e mental, o corpo entra em colapso. Parece que hoje uma das grandes áreas das ciências humanas, a ciência política, deixou de trilhar o caminho racional. (Platão está morto?). Basta assistirmos a um comercial na televisão, ou ouvirmos rádio, ou ainda, quando lemos em papel impresso – que aliás voa pelas nossas calçadas e contribui em grande escala com a sujeira em que vivemos atolados e desrespeita o trabalho escravo dos responsáveis pela coleta do lixo – para que tenhamos a sensação de que a felicidade é impossível, porque tudo gira em torno e sobre a futilidade das coisas que nos são apresentadas de forma um tanto quanto idiotizante.
Um episódio que pode nos servir como ponto de reflexão é a enxurrada de informação que recebemos diariamente em nossos lares, nas ruas, no trabalho, etc. Através desses englobantes meios de comunicação de massa – aliás, uma massa crítica é humanamente impossível, acredita-se – somos bombardeados (procuro não me entregar aos vícios televisivos e a jornalecos comprometidos com o governo de poucos) com fofocas de um mundo fictício, notícias de desastres, mortes, atentados, assassinatos, raptos, estupros, guerras, e etc., como se o mundo fosse assim mesmo desde a gênese. Isso é mais uma mentira soprada aos ouvidos de ouvintes acríticos. O mundo é o que fazemos dele, principalmente o que governantes mesquinhos e arrogantes – e por isso mesmo incapazes de um gesto humano - que governam para poucos, certamente, fazem com que ele seja daquele ou desse jeito e não de outro. Ora, o grande propósito desses governantes é conceder uma vida de regalias para si mesmos e para os seus e uma vida de escravidão para todos aqueles que mantêm a cidade funcionando. Escravos até mesmos de seus pensamentos, esses trabalhadores dão seu sangue para que o sistema que os oprime funcione e continue ceifando suas vidas paulatinamente.
A consciência de que há um tempo cronológico (Tomara que seja breve!) para esses carniceiros sanguessugas é que me acalma. Talvez eles pensem que são eternos. Pobres mortais corruptos! Morcegos vampiros de um organismo em agonia! O muito que eles fazem para si mesmos poderá garantir-lhes a eternidade? Estão condenados ao esquecimento logo que o tempo de todos os seus protegidos e aproveitadores também passe. Isso poderia bastar para quem não tem a eternidade para ver sua cidade florescer para todos os moradores. Sim, moradores, porque cidadãos poucos são. Não se pode considerar cidadão quem não tem direito algum, a não ser trabalhar como escravo. Aliás, se precisamos lutar por qualquer direito, isso significa que não vivemos em uma cidade feliz, mas em sistema “moderno” de colônia, em que o colonizador não veio de terras de além-mar; ele se arrasta como os répteis entre nós com “cara de anjo” e uma gargalhada sinistra escondida no pensamento. (Um dia ela escapa!) Nunca ter condições para viajar com a família até a esquina é ser cidadão? Nunca poder comprar um livro para o filho ou para si próprio é ser cidadão? Esperar que o governo entregue o livro que seus “colaboradores” escolheram às cegas para o ensino do filho é ser cidadão? Fazer xerox o ano todo porque não temos condições de comprar um livro sem fazermos jejum o resto do mês? Ah, não precisamos seguir adiante para percebermos que temos sido tão parasitas quanto esses ditos governantes. É preciso que enxerguemos um pouco além daquele rio que corre somente em direção contrária ao povo.
São justos esses governantes por que, de maneira tão perfeita, saqueiam a cidade? Não é preciso que haja uma catástrofe maior do que o Nazismo! A luz que vem até nós inesperadamente está sendo ofuscada por certos ditames propagandistas eleitoreiros. Uma vida feliz no futuro não pode ser separada da escravidão do presente? Talvez essa rédea que dirige a manada possa ser arrebentada. Ou melhor, o boiadeiro possa ser derrubado de sua sela no alto de sua desumanidade.
Uma atitude digna em direção a um futuro feliz, já que o bem maior é a felicidade, pode ser tomada por qualquer um que ainda não tenha se vendido aos carniceiros. Uma atitude rumo aos sinais e às maravilhas de um mundo que se rejuvenesce diariamente pode ser nossa única saída. Frantz Fanon, um grande crítico de nossa era, nos mostra tal quadro político em seu conhecido trabalho sobre a situação dos colonizados na face da Terra. Pele Negra, Máscara Branca é uma ironia a todos aqueles que se venderam para o sistema de governo que atendem aos favorecidos, – e aí já sabemos a quem esse organismo sem vísceras protege – pois esclarece a situação do nativo em meio a seus opressores. Tornar-se um deles, então, é assumir a própria covardia. É condenar-se à uma morte lenta. É se tornar apenas um fantasma que não assusta, mas serve de palhaço aos espectadores engravatados, oleosos e perfumados que, para disfarçarem um pouquinho seu odor de sangue fétido, mergulham seus corpos grotescos em tais fragrâncias.
Essas sombras que povoam nossa mente e assediam nossa alma devem ser expulsas com a luz da razão. Não uma razão instrumental, porque nela há a tentativa de domínio. Porém, uma compreensão do mundo que não se confunda com dominação e subjugação. Há a necessidade da exploração no sentido de olhar muito bem as coisas e procurar uma compreensão para o bem maior, e não no sentido negativo, que é prejudicar a Natureza e sua consciência de si mesma: o homem. Assim, a reflexão sobre nossa situação política é dever de cada homem, se simplesmente quiser existir. Se desejamos que o sol se levante em nossas vidas é preciso que expulsemos tais fantasmas e aparições, que impedem que os raios solares iluminem nossa consciência. O ritmo alucinante e frequente de nossos corações aterrorizados com a morte que nos atinge diariamente não pode continuar para sempre. Nossa alma precisa de uma folga para meditar sua viagem terrena. Não podemos alcançar a felicidade sem ações diárias que englobem nossos companheiros de jornada. Não há felicidade como bem maior sem a participação da comunidade. Não posso me sentir satisfeito com os livros lidos, se não os divido com outros leitores ávidos de conhecimento e sabedoria. A viagem deve propiciar felicidade! Ilustro este texto, então, com uma experiência de viagem que pode servir como um speculum para nossas almas.
Certa feita, quando estava passando pelo estado de Goiás, o ônibus em que eu viajava foi parado por dois policiais rodoviários. No momento, pensei que fosse apenas uma ação habitual. Depois, quando os dois valentões subiram no ônibus e pediram documentos, achei que fosse apenas uma consulta esporádica que lhes ocuparia o tempo ocioso. Porém, pararam ao lado de minha poltrona; mostrei-lhes meus documentos e me perguntaram sobre minha bagagem. Por que somente a minha? Bem, eu não devia nada. Perguntaram-me para onde eu estava indo; fazer o quê; quanto tempo demoraria e etc.; Ah, eu devia-lhes algo (pensei): eu era o único descendente de negro ali. Então era preciso interrogar, humilhar e, do meu ponto de vista, fazer-se de idiota. Ora, qualquer preconceito é sinônimo de burrice, eu bem sei. Ali estavam dois funcionários públicos colocando-se num lugar de completa intolerância. Um uniforme dava-lhes, então, o direito de comportarem-se como verdadeiros bodes adestrados por um sistema excludente. Ao inferno todos eles! Chamo aquele gesto patético de preconceito, discriminação e burrice. O que mais poderia ser?
Dê-nos um tempo!