Amor rasgado

Charadas e enigmas inundam os contos de amor, que de amor romântico nada têm, como a própria Marina Colasanti diz, eles são rasgados. Neste livro o inusitado se torna comum e o fantástico é normal. Colasanti apresenta de forma criativa e inovadora, tal obra apresenta minicontos, pequenas fábulas e até mesmo pequenos poemas em prosa, que retratam surpreendentes situações, as quais o leitor pode tirar suas próprias conclusões a respeito de seu conteúdo e participar do texto. Na literatura contemporânea estão muito presentes os textos curtos e micro contos, um novo gênero, já que o mundo rápido, acelerado exige um gênero objetivo. O livro Contos de amor rasgados (1986) é um livro não tão novo, foi. É um texto inovador, atual, envolvente que prende inúmeros leitores.

No conto “Enfim”, um indivíduo de idéias abertas, retrata basicamente bem o que o livro é no geral. Este conto não tem nem 10 linhas, a história surpreende um pouco, pois uma atitude besta e corriqueira de alguns homens, que é coçar dentro do ouvido com uma chave ou qualquer outro objeto semelhante que caiba numa orelha. Com esta atitude “abrir” a cabeça, encaixar a chave no ponto exato e abrir as portas de sua cabeça. Será que nossa cabeça tem esse encaixe onde podemos abri-la e colocar as idéias lá dentro ou será que a autora quis simplesmente retratar a falta de idéias abertas e modernas das pessoas, porque o título do conto já diz tudo. Quando ela fala “enfim”, a autora já demonstra essa falta de indivíduos sem idéias inovadoras e somente agora com o indivíduo abrindo sua cabeça teremos na nossa sociedade uma “mente aberta”. Outro conto do livro também usa a chave como tema de uma de suas cenas. É o conto “De de certo tom azulado”, que parodia “O Barba Azul”. Enquanto na história clássica a desobediência da esposa era passível de ser punida com a morte, a retomada contemporânea do texto ironiza o destino das mulheres do Barba Azul, o segredo do quarto proibido e a utilização da chave para abrir o proibido. Carlos Drummond de Andrade tem uma poesia que pode se chamar de um intertexto ou uma paráfrase destes contos, com o mesmo sentido: de abrir, revelar segredo, revelando uma paráfrase de conteúdo sob formas diferentes: prosa e poema.

Procura de Poesia

(...)

Chega mais perto e contempla as palavras.

Cada uma

tem mil faces secretas sob a face neutra

e te pergunta, sem interesse pela resposta,

pobre ou terrível, que lhe deres:

Trouxeste a chave?

(Carlos Drummond de Andrade)

Como foi dito acima esse livro nada fala de romance romântico, mas já de um amor que é pouco explorado, o amor pelo próximo. Na realidade nem sempre é tão próximo, o amor pelas coisas e pelas situações, como por exemplo, o amor pela morte é mais valorizado que o amor pelo outro ser humano. No conto “A paixão da sua vida” o personagem é apaixonado pela morte, mas tem um amor platônico; a morte o rejeita, mas ele de todas as maneiras, tenta conquistá-la. Quando ele resolve trocar de amor e se entregar de corpo e alma para a vida, a morte tem um ataque de ciúmes e o leva para junto dela estourando o coração do infeliz. Quem mandou trair sua paixão, uma hora essa paixão pode se virar contra o apaixonado. Colasanti mostra neste conto uma coisa muito freqüente no relacionamento amoroso entre homem e mulher, o amor platônico que pode se transformar em amor concreto, mas o que sentia o platônico se cansa e pode assim desencadear um crime passional.

No conto “Concerto de silêncio, para duas vozes” a palavra amor é citada de uma forma triste, pois a personagem que se chama Otília é surda e não pode ouvir as palavras e as músicas de amor que seu amado dizia e cantava. Colasanti mostra de forma trágica a tentativa de Otília ouvir. Ela encosta seus ouvidos no violão e desliza seus dedos na boca de seu amado. Sofria e ficava trancada no seu silêncio, quando não agüentava mais cravou seus dentes de forma grotesca e irada no violão que seu amado dedilhava e enfim o som invadiu sua cabeça, mas ela era muda também e não podia falar nada sobre as músicas e as palavras de amor. Então seu amado sofrendo pela mudez de Otília crava seus dentes no ombro dela e escuta assim o som de sua amada.

O conto “Contos em letras garrafais” basicamente trata de uma pessoa que esperava uma resposta, então esvaziava uma garrafa, de bebida alcoólica claro, e nela colocava uma mensagem e jogava no mar. Nenhuma resposta recebeu e no final se tornar um alcoólatra, além do personagem sentir-se sozinho e querer uma resposta para suas dúvidas ou incertezas, o infeliz tem uma doença que assola uma parte enorme de pessoas no mundo, o alcoolismo. Este conto quer mostrar uma das conseqüências do mundo dito moderno, a solidão e o egoísmo, as pessoas preferem ficar sozinhas e esquecem de ajudar as outras, mesmo que seja somente com uma palavra de carinho, uma conversa ou só um pouco de seu tempo e atenção para com o outro.

“Tudo na manga”, seria um conto de delírios ou de anseios. Um mágico serrava sua esposa ao meio todas as noites em suas apresentações e no momento que a serrava, ficava pensando se o truque desse errado. Imaginava o sangue jorrando e a platéia desesperada com a cena grotesca, cena essa que a autora retrata como uma emoção semelhante ao orgasmo. Como tudo é falso em um espetáculo de mágica, o mágico sonha ou delira estar em sua casa pela noite pensando que somente o erro o faria feliz e pega uma espada e sem magia ou lantejoulas crava no peito de sua esposa adormecida. Não dá certo porque é um sonho como mostra no final, a própria esposa aplaude quando o mágico lhe dá um buquê de flores de papel que brotou da espada.

No conto “Silêncio que no sol queima” é um dos menos intrigantes e sem charadas, sem muitos enigmas. Colasanti escreve de forma bem mais poética que os outros contos do livro, uma poesia que encanta o leitor com uma descrição da natureza no meio de um trigal em pleno verão, seria como descrevendo a mãe natureza recebendo os pássaros e as plantas. Seria como uma descrição de um quadro, CAMPO DE TRIGO COM CIPRESTES (1889) do pintor holandês Vincent Van Gogh.

Em “Nunca descuidando do dever” há um tom irônico e ao mesmo tempo triste no conto. A personagem feminina é uma dona de casa exemplar e deixa tudo impecável. A roupa de seu marido sempre está perfeitamente bem passada. Com o passar dos anos seu marido foi envelhecendo, assim como ela lógico, e suas rugas foram surgindo e ele já não combinava com a roupa devidamente bem passada. A mulher na sua fixação por perfeição resolve passar a face de seu marido. Quer coisa mais absurda e deprimente, como se a personagem tivesse uma síndrome de “perfeição”, que somente desta forma, a perfeita, a vida dela tem sentido. E o fantástico está presente na cena final quando a personagem começa a “passar” o rosto de seu marido na tentativa da perfeição.

“A verdadeira estória de um amor ardente” é um conto irônico e um pouco depressivo. O personagem é um homem já de certa idade e que nunca teve uma mulher como companheira, triste ele resolve comprar materiais como cera e corantes e começou a moldar a mulher que preencheria seus sonhos e desejos. Quando sua “mulher” ficou pronta logo se apaixonou pelo silêncio e a atenção dela voltada somente para ele. Viveram alguns anos juntos até que toda aquela docilidade da mulher o estava cansando e com o mesmo isqueiro que acendera um cigarro inflamou a trança de sua mulher e serenamente começou a ler enquanto ela queimava a seu lado lentamente. Esse amor ardente é um pouco depressivo, um homem realmente precisa de uma boneca para ser feliz e se sentir amado. Nesta história também há um individualismo e egoísmo, como um homem não consegue uma mulher, com certeza porque ele é individualista e não deixa ninguém se aproximar dele. Mais uma vez a comum solidão presente nos dias atuais é explorada neste conto.

“Só uma palavra poderia salvá-lo”, um conto que mostra uma das coisas mais comuns entre as pessoas, a superstição e o acreditar em tudo que os outros falam. O personagem acredita na cartomante, que diz a personagem se ele disser uma certa palavra, ele morrerá. Ele tenta de todas as formas não pronunciar a tal palavra. Fica muito neurótico com essa idéia de não dizer a palavra que a morte lhe parece a única salvação contra o terror da morte, mas como ele pode chamar a morte se ele não sabe o nome da palavra. A personagem é influenciada pela cartomante e tudo agora em sua vida gira em torno do que ela disse. Colasanti mostra neste conto essa mísera humana de forma quase perfeita, a influência que certas pessoas podem ter sobre a outra e o prejuízo causado a vida do influenciado.

No conto “E tinha a cabeça cheia deles”, Colasanti descreve uma cena um pouco nojenta, mas muito comum, devido às más condições de saúde e saneamento básico que os governos oferecem. É uma mãe catando piolhos de sua filha e fazia isso todos os dias. A forma como é mostrada a cena é como fosse um carinho, um cafuné, seria a única forma da mãe demonstra carinho, amor e atenção à filha. Mas o mais interessante e fantástico é que a mãe neste ofício diário consegue numa manhã extrair da cabeça de sua filha o seu primeiro pensamento. O fantástico novamente aparece, com essa cena da extração do fio de pensamento.

“Sáfari entre a cristaleira e o sofá” é um conto meio cômico. É a história de um grande e bravo caçador de lagartas, lagartas que coisa decadente, que sempre socorria a samambaia das mulheres de sua casa. Quando em um dia as lagartas convocaram a grande caçadora de homens e abateu com um tiro o bravo caçador.

“O leite da mulher amada” retrata a personagem como uma mulher astuta que trai o marido e ao mesmo tempo submissa ao marido e ao amante. De início o verbo “mamar” chama muita atenção no conto, “No seio direito mamava o marido. Mamava o amante no esquerdo” (1986, p.15), pois tem o sentido sexual, que marido e amante exploravam o mesmo corpo. Mesmo sem um saber do outro, marido e amante, o ciúme ocorre, já que o marido reclama da qualidade do “leite”, a qualidade de suas relações sexuais. O marido a trata como um objeto e exige que ela melhore a qualidade da relação e cobiça o outro seio, o seio do amante. A astúcia da personagem, porém, é notada no desfecho do conto, quando ela resolve nomear um provador - o amante - para testar “o leite antes que chegasse aos lábios conjugais” (1986, p. 16). O “provador - amante”, então, provará e comprovará a qualidade do leite para o marido; ações que insinuam uma sucessão de relações amorosas. O triângulo amoroso atinge o clímax, no momento em que é dito que “Agora um de cada lado, mamam os dois” (1986, p. 16); ou seja, o que antes era feito às escondidas faz-se na cama na presença do marido.

No conto “De água nem tão doce”, a personagem, a sereia não possui os poderes de dominação e de sedução; mostra a submissão feminina em um relacionamento amoroso: “Trabalho, não dava nenhum”; “Mansa desde pequena”; “já estava treinada para o cotidiano” (1986, p. 77). O fato de a sereia ter sido colhida em rede de camarões e ter sido levada até a praia de coleira no pescoço “para prevenir um recrudescer do instinto” (1986, p. 77), reforçam esse distanciamento da figura mitológica, visto que esta vivia no mar, em ilhas misteriosas. O desfecho é negativo; com as escamas da cauda escondidas debaixo de uma manta, coleira no pescoço, a sereia nem tentou fugir, “enquanto flocos de espuma caíam de seus olhos” (1986, p. 78). Desse modo, percebe-se a infelicidade da sereia diante de sua nova vida, o que pode ser notada no, agora, pálido cabelo ouro que trançava e destrançava sem fim, ação que sugere o tédio de seu dia-a-dia.

O livro em si tem uma mesma temática, como a mísera humana, a dúvida, o cotidiano, o fantástico e o inesperado. As charadas e enigmas permeiam todo o livro de maneira sucinta, rápida e clara como se exige neste novo gênero de minicontos, já que o mundo vive na velocidade máxima.

Bibliografia

• COLASANTI, Marina. Contos de amor rasgados. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.

• BARZOTTO, Leoné Astride. O Universo feminino revelado nos contos de Mariana Colasanti (p189-200). In: Línguas e Letras. Londrina: CESUMAR / UEL, 2008.

• PIGLIA, Ricardo. Teses sobre o conto. Caderno Mais, Folha de São Paulo, 30 de dezembro de 2001, p. 24.

• MACHADO, Júlio César. Intertextualidade na poesia de Carlos Drummond de Andrade. Acessado dia 10/12/2008 e disponível em: http://www.portrasdasletras.com.br/pdtl2/sub.php?op=literatura/docs/intercarlos