O regionalismo oportuno de Coivara da Memória

Coivara da Memória, do sergipano Francisco J. C. Dantas, foi publicado em 1991 pela editora Estação Liberdade. A receptividade não poderia ser melhor no meio crítico. Jornais dos principais centros urbanos publicavam artigos que exaltavam o magnifico texto do hoje aposentado professor da UFS, Mestre nos estudos sobre Osman Lins e Doutor em tese sobre a mulher na obra de Eça de Queiroz. Neto de dono de engenho em Riachão do Dantas,em Sergipe, sempre enfrentou desafios. O último deles foi provar que o regionalismo ainda vive. Alfredo Bosi, em seu livro História Concisa da Literatura Brasileira, em sua 32ª edição, Cultrix, São Paulo, 1994, faz uma pergunta interessante para justificar a atualidade de Coivara da Memória e Os Desvalidos (seu segundo romance): “ teriam, acaso, sumido para sempre as práticas simbólicas de comunidades inteiras que viveram e vivem no sertão nordestino, só porque uma parte da região entrou no ritmo da indústria e do capitalismo internacional?”. Vai mais além Bosi ao deixar claro que o importante é o trabalho artístico com a linguagem. Com isso todos concordam: Francisco J. C. Dantas revalorizou o trabalho meticuloso com as palavras. Ele está para a década de 90 como esteve João Guimarães Rosa para os anos 40 e 50. O narrador ensimesmado, enquanto aguarda julgamento, retido por ordem judicial no seu próprio cartório, monta no cavalo da memória e campeia pelos pastos da consciência. Passa pela reconstrução do patriarcalismo em Rio-das-Paridas, determinador de vidas como o tio Burunga, Tia Justina, Garangó, Luciana, Tucão e tantos outros viventes do engenho Murituba. Recorda o episódio do relacionamento com Luciana, em cenas de amor jubiloso. É interessantíssimo o discurso do narrador-personagem, com ciúmes de Luciana, prometendo matar Tucão, tio dela e matador do pai do escrivão. Claro que ele cumpre a promessa, mas de forma curiosa e depois de sofrer nas mãos dos sobrinhos do Tucão. O mais encantador de tudo é a instrospecção mesclada com um mundo arcaico extremamente violento e cruel. O regionalismo nasce dessa fusão e as reminiscências servem como tentativa de recuperar o tempo perdido e de revelar o tempo arruinado dos antepassados, centrado na figura do avô, dono do engenho Murituba, um Costa Lisboa. Cada palavra é colocada minuciosamente, de forma ardilosa, lenta, desapressada, colaborando com o aumento da dramaticidade das cenas. É um romance que fez renascer a prosa sergipana e renovou a prosa nacional, abrindo caminhos, por exemplo, para prosadores de talento como Antônio Carlos Viana.

Veja aqui alguns trechos selecionados:

“Este quadrado de pedras é um retalho íntimo e rumoroso, onde lampedejam réstias e murmúrios, avencas e urtigas. Aqui encafuado, as juntas emperram, as têmporas pesam e o ânimo se amolenta, de tal modo que cada nova semana vou ficando mais bambo das pernas e zonzo da cabeça. Contudo, até nas crises de maior desalento, nunca perdi o governo de todas as forças, a ponto de derrubar a cara no chão. (...)” (Capítulo 1, p.11) .

“De tanto pegadio com o neto, até nos menores quefazeres fora de hora meu avô me queria com a cara metida nas coisas que as suas mãos manejavam. Era o seu jeito mais congruente de me passar afeto calado de sua companhia, e ao mesmo tempo me adestrar na sabedoria que apanhara dos antepassados rurais(...). Além de lavrar no Engenho Murituba os bens de consumo que abasteciam a sua gente, meu avô ainda tinha o domínio razoável de todos os pequenos ofícios necessários ao bom andamento de sua produção. (...)”(Capítulo 21, p.174).

“Meu corpo sobre Luciana é um arco que a protege, sustentado pelos braços que cruzo sobre as espáduas, em cuja maciez espalmo e afundo as mãos com força, até sentir o contorno dos ossos e das cartilagens, desejo de me absorver nela até perder a minha forma, sumir nas suas entranhas.(...)” (Capítulo 34, p.294).

Vale a pena ter Fracisco Dantas na relação das melhores leituras do Brasil moderno.