O poeta de Pasárgada IV-parte (Libertinagem)

Saindo de O ritmo dissoluto para entrar na gloria maior, na obra de alcance inestimável, obra que passa a reger as outras em ritmo de liberdade em tom de fugacidade, em harmonia com a beleza sentenciando a cólica no leitor, configurando em um todo a imagem do autor e deixando cravado em cada palavra a diversidade em sua arte, arte e gloria, hegemonia irrevogável, tom inimitável, estilo único para toda vida e para toda morte. A obra libertinagem com poemas escritos entre nos anos de 1924 e 1930 é entre Cinzas das horas, carnaval e O ritmo dissoluto a mais visual, musical, dialética com o falar de nossa gente brasileira, com bastante coloquialismo, misturando fala e envolvendo varias nacionalidades se redimensionando a sua redondeza e ao seu manto tão aclamado. E começa assim sem saber dançar, tomando alegria sem se importar com os outros que tomam éter e cocaína.

“Uns tomam éter, outros cocaína,

Eu já tomei tristeza, hoje tomo alegria.

Tenho todos os motivos menos um de ser triste.

Mas o calculo das probabilidades é uma pilheria...

Abaixo Amiel!

E nunca lerei o diário de Maria Bashkirtseff.

Sim já perdi pai, mãe, irmãos

Perdi a saúde também.

É por isso que sinto como ninguém o ritmo do jazz-band.”

(Não sei dançar)

Sempre com as mesmas verdades nas palavras e jocosidade ao torná-las publicas em seus livros. Agora todas as mulheres eram descritas em um único poema sempre com o tom de sarcasmo mostrando que a beleza não nasce de um belo vestido, maquiagem ou qualquer outra fantasia, nasce de berço, natural e ele via, analisava e amava a beleza das mulheres como criancinhas que de forma alguma tem maldade na face.

“Como as mulheres são lindas!

Inútil pensar que é do vestido...

E depois não há só as bonitas:

Há também as simpáticas.

E as feias, certas feias com cujos olhos vejo isto:

Uma menininha que é batida e pisada e nunca sai da cozinha.”

(Mulheres)

Gostava como ninguém comparar os animais a pessoas foi assim em O ritmo dissoluto quando disse que os cães de roça pareciam com homens de negocio viviam sempre preocupados. Foi agora assim em “Pensão familiar” só que agora com gatos revelando sua critica ao burguês indecente, ao burguês mesquinho, ao burguês nodoa em sua sociedade.

“Um gatinho faz pipi.

Com gestos de garçom de restaurante-palace

Encobre cuidadosamente a mijadinha.

Sai vibrando com elegância a patinha direita:

-É a única criatura fina na pensãozinha burguesa.”

(Pensão familiar)

É presente em Libertinagem a força de vontade do Brasileiro em seu trabalho um trabalho atônito pelas crianças. Manuel Bandeira descreve o trabalho mais simples do mundo e o torna infantil, lindo, mágico, torna-o o mais importante trabalho do mundo feito de alegrias para as crianças. Incrivelmente Bandeira tem essa agilidade em tornar o pequeno em grande, o feio em bonito, o desinteressado em interesse, o repudiado em aclamado, o que era fútil em essencial. Extraordinariamente ele tinha esse dom. Os camelôs o agradecem.

“Abençoado seja o camelô dos brinquedos de tostão:

O que vende balõezinhos de cor

O macaquinho que trepa no coqueiro

O cachorrinho que bate com rabo

Os homenzinhos que jogam Box

A perereca verde que de repente dá um pulo que engraçado

E as canetinhas-tinteiro que jamais escreverão coisa alguma.”

(Camelôs)

Fez do imóvel invencível, mesmo sendo áspero, feio, engonçado, mesmo sendo cacto. Bandeira fez do cacto la do Nordeste esquecido, esfomeado e desesperado. Cacto que evoca varias vertentes de misérias do sertão. O que vem a ser cacto para os distantes do nordeste? Vem a ser fome, sertanejo, seca, espinho, fracasso, miséria, sol durante o dia e a noite. O cacto para as outras regiões é apenas planta espinhosa de pouca significância o que foi diferente para Bandeira que o fez maior de todos, que o fez importante por vinte e quatros horas. Ele o cacto espinhosos, repudioso também pode ser grande em meio às rejeições.

“Um dia um tufão furibundo abateu-o pela raiz.

O cacto tombou atravessado na rua,

Quebrou os beirais do casario fronteiro,

Impediu o transito de bondes, automóveis, carroças,

Arrebentou os cabos elétricos e durante vinte e quatro

Horas privou toda a cidade de iluminação e energia:

-Era belo, áspero, intratável.”

(O cacto)

O poema em que descreveu sua doença de forma maravilhosa e um dos mais bem escrito de libertinagem. Traz os lamentos de tudo que poderia ter feito se a doença não fosse tão presente em sua vida. O dialogo com o medico é curto e grosso, as esperanças são mortas ao fim de cada palavra, ao fim de cada possibilidade da única possibilidade o Pneumotórax. No final ela vira um tango Argentino.

“O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o

Pulmão direito infiltrado.

-Então, doutor, não possível tentar um pneumotórax?

-Não. A única coisa a fazer é tocar um tango Argentino.”

(Pneumotórax)

Segue então libertinagem fazendo “Comentário musical” tendo em seu contexto a figura de um sagüim de sussurro em seus ouvidos mais fortes que a sinfonia oceânica de “maresias atlânticas” bem mais forte que o sussurro sinfônico da vida civil. O sagüim da vizinha tinha alarido maior em toda sua extensão momentânea.

“O comentário musical da paisagem só podia ser o

[Sussurro sinfônico da vida civil.

No entanto o que ouço neste momento é um silvo

[Agudo de sagüim:

Minha vizinha de baixo comprou um sagüim.”

(Comentário musical)

Surge a manifestação quanto ao cantar das emoções poéticas “Comedidas”, ou seja, ridículas de comportamento sempre perfeito. Bandeira agoniza ferozmente o lirismo consultor de uma palavra nacional. “Poética” um poema de libertação símbolo maior de libertinagem desapego da sintaxe e das palavras de formas desconhecidas. Agoniza o lirismo namorador com particularidades e ridicularidades, o lirismo político cheios de falsas promessas, o lirismo raquítico sem força de expressão, lirismo sifilítico doente e transmissível. E prefere um lirismo renovado, diferente, repudiados por todos. Queria o lirismo dos loucos sem razão, sem medo com expressão e gesto, o lirismo dos bêbados cheios de neologias e uma linguagem difícil e do lirismo de Shakespeare que é genial.

“Quero antes o lirismo dos loucos

O lirismo dos bêbados

O lirismo difícil e pungente dos bêbados

O lirismo dos clowns de Shakespeare

-Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.”

(Poética)

Surgiu então ‘Mangue” que mais parece uma cidade, um pais, o mundo inteiro cheios de ruas, de nomes históricos e importantes, cheios de hipocrisias religiosas, cheio de musica e coloquialismo, cheio de gente, cheio de tudo, tudo no pequeno Recife, Recife maior que todo Brasil nas palavras de Manuel Bandeira, Mangue cidadezinha com o mundo inteiro imergido em suas terras, as terras de Recife. Poemas com misturas de raças, de fantasias uma verdadeira mistura de tudo, como o Brasil e sua raça diversificada.

“Mangue mais Veneza americana do que Recife

Cargueiros atracados nas docas do canal grande

O morro do pinto morre de espanto

Passam estivadores de torso nu suando facas de ponta

Café baixo

Trapiches alfandegários

Catraias de abacaxis e de bananas

A light fazendo crusvaldina com resíduos de coque

Há macumbas no piche

Eh cagira mia pai

Eh cagira

E o luar é uma coisa só.”

(Mangue)

Não cantou só Mangue em Recife, cantou também Belém do Pará bem mais musical cantou a beleza equatorial extensa, cantou o pomar, cantou estradas e avenidas, cantou a diversidade Paraense da borracha e castanha a cultura do falar indígena, cantou como canto de natal. Descreveu com nostalgia a terra das seringueiras. Sempre registrando emoção, historia e saudades a sua naturalidade e nada melhor para expressar o amor que cantar e cantar para se consolar, cantar para relembrar a beleza de Belém do Pará.

“Bembelém

Viva Belém!

Nortista gostosa

Eu te quero bem.

Terra da castanha

Terra da borracha

Terra de biribá bacuri sapoti

Terra de fala cheia de nome indígena

Que a gente não sabe se é de fruta pé de pau ou ave de

Plumagem bonita.”

(Belém do Pará)

E mais uma vez ele ressalta sua terra agora com uma evocação amorosa. Uma breve lembrança de sua infância pelo vasto Recife de tantas ruas entre elas a da União onde ele brincava. Em “Evocação do Recife” Bandeira retoma toda sua infância, infância de menino sapeca e brincalhão com outros meninos que brincavam de “Chicote-queimado” das velhas cantigas de infância: “Coelho sai! Não sai” esses de meninos a das meninas: “Roseira dá-me uma rosa craveiro dá-me um botão” poema que cabe até o rio “Capibaribe” é impressionante como este poeta único sabia por em lugares certos do poema a fala do seu povo, as ruas, as cantigas, a rua da união, o poema realmente parece uma rua da forma em que coloca as palavras, os versos, os parágrafos. Critico voraz da língua culta, inteligente na língua em que se criou, “língua errada do povo língua certa do povo”. O poema evocação do Recife é sem duvida alguma a rua da união e nele está contido toda sua infância de libertinagem.

“A rua da união onde eu brincava de chicote-queimado

[e partia as vidraças da casa de Dona Aninha Viegas

Totônio Rodrigues era muito velho e botava o pincenê

[Na ponta do nariz

Depois do jantar as famílias tomavam a calçadas com

[Cadeiras, mexericos, namoros, risadas”

(Evocação do Recife)

Fez de um simples anuncio de jornal poema breve e suicida, poema de um homem desgostoso dos trilos da vida que antes de morrer fez a três coisas que homem simples faz bebeu, cantou e dançou. A disposição das três palavras no poema, a forma como são colocadas indicam um abismos o abismo da lagoa em que pulou e se afogou.

“João Gostoso era carregador de feira livre morava no

[morro Babilônia num barracão sem numero.

Uma noite ele chegou no bar vinte de novembro

Bebeu

Cantou

Dançou

Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu

[afogado.

(Poema tirado de uma noticia de jornal)

E sempre com a mesma forma de descrever algumas mulheres jocosamente foi assim com a “Colombina” e em “Mulheres” fez-se o mesmo com “Tereza” ao descrever com ironia as características de Tereza, pobre Tereza.

“A primeira vez que vi Tereza

Achei que ela tinha pernas estúpidas

Achei também que a cara parecia uma perna”

(Tereza)

Os dois poemas que virão “A Virgem Maria” e “Oração no saco de Mangaratiba” são poemas de hipocrisia religiosa, me preso em falar sobre esse assunto, assunto em que ele não se prezou, pois nem todo gênio é perfeito.

“Cunhantã” poema em que Bandeira despeja todo o falar do negro, os modos, gestos. Pequeno poema com grande sabedoria e brasileirismo.

“Vinha do Pará

Chamava Siquê.

Quatro anos. Escurinha. O riso gutural da raça.

Piá branca nenhum corria mais do que ela.”

(Cunhantã)

Nascem em libertinagem alguns poemas curtos com muito dizer entre as linhas curtas como “Poema tirado de uma noticia de jornal”, “Pneumotórax”, “Tereza”, “Andorinha” e “Irene do céu” todos eles com uma sabedoria profunda. Em que se transmite o tédio da vida inteira, a doença sem trégua, a cor negra também bastante presente, assim com seu coloquialismo.

“Andorinha la fora está dizendo:

-“Passei o dia à toa, à toa!”

Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste!

Passei a vida à toa, à toa...”

(Andorinha)

“Irene preta

Irene boa

Irene sempre de bom humor.”

(Irene no céu)

Em “Profundamente” poema feito nas abas de São João volta às saudades do avô, da avó de todos que em sua infância teceram o carinho em seu coração frágil de poeta. Foi buscar profundamente as antigas emoções, a antiga vontade de viver, o antigo festejo Juninho com muito falar. Foi profundo em uma São João agora não mais alegre como era com as vozes do seu tempo de infância. Agora é triste com seus ressentimentos.

“Quando ontem adormeci

Na noite de São João

Havia alegria e rumor

Estrondos de bombas luzes de bengala

Vozes cantigas e risos

Ao pé das fogueiras acesas.

Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo

Minha avó

Meu avô

Totônio Rodrigues

Tomasia

Rosa

Onde estão todos eles”

(Profundamente)

Extremo admirador de Schumann e suas musicas não deixou de citar em Libertinagem também não se contendo em já ter citado em Carnaval. Deixou-se levar por um poema desespero, pânico, poema socorro, alvoroço e gritos em que não se achou alternativa para o socorro e o poema continuou gritando em “Noturno da parada Amorim”.

“O violoncelista estava a meio do concerto de Schumann

Subitamente o coronel ficou transportado e começou a

[gritar: “Je vois des anges! Jê vois des anges!”

[-E deixou-se escorregar sentado pela escada abaixo.”

É no poema “Vou-me embora pra Pasárgada” que Bandeira canta a libertinagem com efusão de alegria, saindo do mundo infortúnio real e concreto para entrar no imaginário impossível. Pasárgada o lugar perfeito para se viver”Em Pasárgada tem tudo” “É outra civilização” civilização criada para curar o mal solidão feita para que deseja a felicidade. Bandeira foi tão feliz em Pasárgada com a mulher que quis sendo amigo do rei e ouvindo histórias de Rosa sua irmã. Em Pasárgada Bandeira fugiu da doença que o mastigava a morte, esqueceu nos braços da mulher que quis e na cama que escolheu a solidão.

“E como farei ginástica

Andarei de bicicleta

Montarei em burro brabo

Subirei em pau-de-sebo

Tomarei banhos de mar

E quando estiver cansado

Deito na beira do rio

Mando chamar a mãe-d’ água

Pra me contar as histórias

Que no tempo de eu menino

Rosa vinha me contar

Vou-me embora pra Pasárgada.”

(Vou-me embora pra Pasárgada)

Em Cinzas das horas, Carnaval e O ritmo dissoluto Manuel Bandeira manifestou saudades de seu avô, avó, irmã e mãe em libertinagem surge o poema ressaltando o pai. Em “poemas de finados” ele escreve como se tivesse falando ao pai o quanto sofreu nesta vida por isso é ele quem merece as orações e não o pai. Ele próprio se diz está morto, se diz está precisando das orações mais que seu próprio pai morto que já sofreu tudo que tinha de sofrer, ele tinha mais precisão deixando apenas as flores na sepultura do pai diante a sua já formada.

“Amanhã que é dia dos mortos

Vai ao cemitério. Vai

E procura entre as sepulturas

A sepultura de meu pai.

Leva três rosas bem bonitas

Ajoelha e reza uma oração

Não pelo pai, mas pelo filho:

O filho tem mais precisão.”

(Poema de finados)

“Assim eu queria meu ultimo poema” o ultimo poema de libertinagem saiu como Bandeira queria o ultimo poema seu cheio de simplicidade, seco e por acaso num momento de inspiração qualquer, com a beleza desvirginada, repleto de pureza e loucura inexplicável.

“Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos

[intencionais

Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas.”

(O ultimo poema)