Tardes de Curumim
Numa tarde quente de um sábado qualquer, o parque de diversões estava cheio de gente andando de um lado para outro, como siris em desfile ensandecido. Vestes domingueiras já antecipavam o colorido típico da periferia paulistana.
Como se vindo de uma galáxia muito distante, a observar entre espantado e curioso o movimento do parque de diversões, Francisco passeava por entre as várias atrações do local, procurando, sem nem ter muita consciência da busca, uma alma com a qual pudesse compartilhar o oceano de sensibilidade em que se via submerso.
Corria o ano de 1972 com a malfadada repressão patrocinada pela ditadura cívico-militar em seu auge e, no dia anterior, aquele garoto introspectivo, tipo meio Curumim, havia sentido na pele a odiosa presença militaresca que assolava o país. Enquanto voltava do trabalho, de mãos dadas com a namorada, lá pelas bandas do Itaim Bibi, uma patrulha motorizada resolveu implicar com o casalzinho, dando ordens aos gritos, para que corressem ou seriam mortos ali mesmo. Nessa colorida tarde de sábado, em meio àqueles siris travestidos de humanos, Francisco tinha o espírito enegrecido pela sensação de covardia que lhe dilacerava o ser: sabia que não mais conseguiria olhar de frente a criaturinha doce que vira desaparecer correndo entre as árvores do bairro, enquanto ele mesmo tomava uma direção qualquer. A sensação de opressão que sentia no peito foi se acalmando, embalada pelos acordes de uma música executada pelos altofalantes do parque: "have you ever seen the rain', da qual poucas palavras entendia, mas que lhe falava direto ao coração, dispensando qualquer outro tipo de tradução. Silenciosamente, como se estivesse fazendo uma oração, o rapaz agradecia ao conjunto country pela construção da melodiosa canção que lhe resgatava a combalida crença no ser humano.
Ainda hoje, as notas daquela velha canção, resgatam na mente de Francisco, o namoro na chuva, o andar de mãos dadas pelos jardins, os beijos roubados no escuro, e ainda acrescenta um mitigar para a dor da perda de amor tão imberbe.
Benditos sejam, Credence, Clearwater (Águas Claras), Revival (Reviver)!
João Bosco (aprendiz de poeta)