Viagem a Terra do Nunca (Capítulo VII)
Capítulo VII
Boquim e Arauá, (Colhendo bredo) meados de 1957
Tenho vagas lembranças da casa em que nasceram meus dois irmãos, Manoel e um outro, do qual não me lembro o nome, ambos vitimados por uma das inúmeras doenças que levavam prematuramente os “anjinhos” como as crianças mortas eram chamadas. Em minha mente sempre vem a imagem de uma casa de tijolos como chão de barro batido, na qual meu pai aparecia em períodos esparsos, sempre indo embora toda vez que minha mãe engravidava, na imaturidade de seus poucos anos de vida; ainda não contava ela com dezoito anos e já se encontrava mãe de quatro rebentos, dois dos quais lhe foram tirados para que a carga se tornasse mais fácil de ser carregada.
Dentro dos embrulhos de minhas lembranças me vem a figura difusa de um caixeiro-viajante de nome Barreto, com o qual minha mãe foi morar em Boquim, levando-nos a tiracolo, eu e meu irmão Irineu. Nessa nossa jornada em Boquim assisti a chegada a este vale de lágrimas de minha irmã Cida, rebocada por uma parteira que me pedia aos gritos para andar rápido com um caldeirão contendo água fervendo, enquanto minha mãe berrava com todas as forças que os seus fortes pulmões lhe conferiam. Foi a experiência mais importante de meus longos seis anos de trânsito a bordo de tanta vicissitude, logo acrescida de minha outra irmã, Cili, que deu o ar da graça menos de um ano depois. Via raramente o caixeiro-viajante: dele guardo traços de um homem moreno, atarracado, que passava algumas horas em nossa casa, com o qual não tinha eu a menor afinidade.
Entre os eventos da chegada de minhas duas irmãs ao nosso conviver ocorreu uma festiva mudança de Boquim para a vizinha cidade de Arauá, mudança que foi realizada a bordo de uma carroça, na qual eu e meu irmão Eri, apelido do Irineu, nos acomodamos entre os bregueços que compunha o mobiliário da casa de minha mãe. Saímos de Boquim no início da tarde, chegando a Arauá após algumas horas de sofrida viagem, mareados pelos muitos solavancos da rústica carroça. Arauá nos deu a delícia de um chafariz, aonde as mulheres lavam as suas roupas, enquanto nós, as crianças, nos fartávamos de brincar, deslizando pelo piso limoso até atingir a água, lá embaixo, como num delicioso escorregador. Da cidade de Boquim trouxe a lembrança de uma enorme cicatriz na cabeça, fruto de uma aventurosa cavalgada num intrépido cavalo de pau, encarapitado no qual tropecei nas rédeas de um cavalo real, amarrado na calçada, enquanto seu dono tomava uma “bicada” de cachaça no boteco ao lado.
O acontecimento mais esperado de nossa estadia em Arauá, era quando minha mãe nos pegava para colhermos bredo, uma espécie de erva daninha, também conhecida como caruru, que serve para fazer salada. Sair da pouca liberdade das paredes de nossa casa e aspirar toda a imensidão que o verde das campinas me proporcionava era revigorante, compensava plenamente o insosso da vida que levávamos, longe das benesses da casa mais farta de minha avó.
Logo depois do nascimento de minha irmã Cili, em Arauá, o hebdomadário caixeiro-viajante de minha mãe tornou as suas visitas muito mais raras, o que obrigou minha mãe a nos deixar, os quatro, debaixo das protetoras asas de minha avó, pondo fim a sua infausta aventura de mulher independente.