Viagem a Terra do Nunca (Capítulo VI)
Com o pé na estrada (Nas águas do Gongogi)
A primeira tentativa de deixar a minha casa aconteceu quando eu tinha onze anos de idade, motivado pelo inconformismo diante das constantes agressões verbais de meu avô materno, Raimundo Curvelo. Um dia, pela manhã, juntei algumas roupas numa trouxinha de pano, coloquei em minhas costas e peguei a estrada que conduzia a Itabuna, cidade localizada a 63 quilômetros de onde morávamos, na região Sul do estado da Bahia. A sensação de liberdade que senti, caminhando na companhia de meus pensamentos pela estada ornada de cacaueiros e perfumada pelo cheiro das jacas e cajás era indescritível. Prá colocar a cereja que faltava em meu bolo, me vinha a doce consciência de que estava me afastando cada vez mais da odiosa voz de meu avô, que os seus xingamentos e imprecações haviam ficado para trás, despegados a cada passo que me levava para diante. A sede não representava problema, já que havia fartos regatos em toda a área, nem mesmo a fome, pois que, quando esta apertava, me alimentava dos frutos do cacaueiro e das várias outras espécies, como as goiabas, mexericas e cana-mirim. Seguia feliz, mergulhado nos sonhos de um menino de onze anos, que finalmente se sentia livre para voar, não me importando nem um pouco aonde seria o meu próximo pouso. Qualquer coisa, para mim, seria melhor do que a insuportável companhia de meu avô, pois compartilhar do mesmo teto com ele não fazia parte de meus planos. Até então havia engolido goela abaixo os desaforos dele pela compensação que me vinha dos carinhos de minha avó e pela conscientização de minha fragilidade no tocante à minha própria sustentação econômica. Porém, no dia anterior a minha partida, o meu copo de fel atingiu a borda, ao ouvir uma saraivada de xingamentos enquanto almoçava. Larguei da comida e fui para o meu quarto, mantendo-me lá até a manhã seguinte, quando iniciei a minha jornada em busca de ar mais puro. O meu primeiro sonho de liberdade acabou com a visão de minha avó descendo do ônibus e parando a minha frente. Uma enorme nuvem vermelha de vergonha cobriu toda a minha face, não por estar fugindo de casa, e sim por ver obstados os meus projetos de independência. Com a minha volta para casa estabeleceu-se, após a frustrada tentativa de evasão, uma provisória trégua entre o meu avô e eu, diminuindo a carga de impropérios que ele me dirigia cotidianamente. Este armistício durou em torno de quatro anos, tempo em que procurei também me aproximar mais dele, ajudando-o nas tarefas em sua pequena fábrica de sapatos e no curtume que ele mantinha próximo ao matadouro, em Gongogi. Na sapataria cuidava e pequenos consertos, auxiliando também nas vendas dos produtos; gostava de ver a habilidade de meu avô, ao engendrar modelos novos de calçados, manejando com perícia as afiadas facas de corte. Eu mais brincava e conversava com os oficiais sapateiros do que trabalhava, escutando suas muitas histórias. Eles tinham apelidos sonoros, que me soavam muito engraçados: Bobó, um cafuzo desengonçado e brincalhão, sempre às voltas com a cachaça e as doenças adquiridas na zona boêmia local, e Bombacho, que, como o próprio apodo sugeria era um tampinha, desses bem enxeridos. Meu avô, que gostava muito do Bombacho, tentava levá-lo para as refeições em nossa casa, esbarrando nas recusas de minha avó, que invariavelmente dizia: “- não tem almoço nem prá Bombacho, nem prá Bomalto. Se você quiser que o leve para onde bem entender.” A mesma sentença não valia para o desengonçado Bobó, sabedor de como agradar a Dona Maria Pequena. Desse período de calmaria me ficou a lembrança da professora Clarisse cantando conosco “Luar do Sertão”. Toda vez que a canção chegava ao trecho que falada onça, eu sentia os olhos da própria pousados em mim, gelando de pavor ao imaginar os seus dentes poderosos cravados em minha jugular, ao mesmo tempo em que me encantava com a visão da lua surgindo por trás da serra. Eu viajava naquela canção. Depois da escola da professora Clarisse fui estudar no Grupo Escolar Pompílio Barreto, época de revolução e de uniformes imitando os todo-poderosos militares, mandões do momento, em tom verde oliva, com direito a gravata e tudo o mais. Detestava aquilo. Dessa época também me recordo de meus dois amigos, Uda e Du, dois irmãos que moravam um pouco distante de minha casa. Trocávamos gibis, os quais carregava escondido debaixo da camisa prá que ninguém soubesse o que eu andava a ler. Os meus dias transcorriam entre o trabalho com meu avô, logo que chegava da escola, e as fugas para o campo de futebol, depois o banho no rio Gongogi, junto com todos os amigos. O rio Gongogi é um capítulo a parte na vida de todos os que o conhecem: suas águas de uma pureza ímpar, seu Pitu inigualável, suas curucas, as locas de pedra aonde brincávamos de esconde-esconde, suas indefectíveis lavadeiras a mostrar suas coxas morenas enquanto cantam antigas canções, sem falar no lendário Boitatá, apavorante criatura que preencheu de pavor muitas de minhas noites de insônia. Em suas águas nós travávamos heróicas batalhas, encarapitados em nossos barcos construídos com os bulbos de baronesa, que também serviam como projéteis, atirados uns contra os outros, batalhas que só terminavam quando conseguíamos atirar à água os componentes do barco inimigo.
O caminhão de Goiás
A minha mente, sempre em busca de coisas diferentes, encontrou uma nova oportunidade de fuga quando apareceu em minha cidade um desses caminhões paus-de-arara que recrutavam trabalhadores rurais para as lavouras do Centro-Oeste. Apesar das muitas e terrificantes histórias que se contavam sobre o tratamento de escravo que se dava a tais trabalhadores, não pestanejei em subir no caminhão e fazer planos de rumar para bem longe daquele lugar simplório que já me sufocava. Queria horizontes novos, ver lugares diferentes, viver as aventuras que até então, só vislumbrava através dos livros e revistas que lia. Quando a noite chegou, subi ao caminhão e me coloquei como voluntário para ir anotando as diversas preocupações dos campônios, uma espécie de secretário, visto que a maioria era constituída de analfabetos. Não conhecia ninguém naquele grupo formado por deserdados da sorte, gente que pouco ou nada tinha de seu. Aquela gente calada, os bancos duros, feitos em madeira, do pau-de-arara, tornava-me ainda mais encolhido, esperando com ansiedade a hora de ouvir o rondo do motor, indicativo de que estávamos partindo. Não me atrevi a descer do caminhão pra nada, temeroso de que fosse visto por algum conhecido e denunciado incontinenti a minha cuidadosa avó. Já me via trabalhando numa daquelas fazendas de arroz do Cerrado brasileiro, como auxiliar de algum fazendeiro, destino diferente daquele bando de deserdados. Lá pelas dez horas da noite finalmente o caminhão pôs-se em movimento, coincidindo com o término de minhas aulas no ginásio local; umas três horas de viagem e chegamos a Jequié, aonde o pau-de-arara faria uma parada para que os cansados viajantes comessem alguma coisa, tudo por conta dos aliciadores daquela gente. Descemos do caminhão e, mal me aproximei do restaurante, divisei a figura carrancuda minha avó, acompanhada de um motorista que contratou para ir atrás do neto fujão. O rescaldo dessa malfadada aventura foi agüentar a molecada da minha cidade me aporrinhar durante um longo período, a imitar o desgraçado do barulho do motor do caminhão aos chistes de “olha o caminhão de Goiás”. Aqueles que se arriscavam a ficar ao alcance de minhas mãos pagavam caro a afronta, o que foi desestimulando os mais insistentes até que minha frustrada proeza caísse num previsível esquecimento, coisa que durou mais de um ano. Em razão dessa fuga, tive de fazer um acordo de cavalheiros com minha avó: prometi-lhe não mais fugir, mas iria embora assim que fizesse dezoito anos, atingindo a minha maioridade legal. Ela concordou com a minha reivindicação, desde que eu fosse a te minha mãe e conseguisse dela a anuência para meus projetos. Tive de amargar mais dois longos anos, até que, finalmente, vi-me sentado num ônibus viajando para São Paulo, a até então desconhecida capital dos bandeirantes.