Vida e Morte Mariá

D. MARIÁ

Capítulo I

-D. Mariazinha, como vai a senhora? Está me ouvindo? Está bem?

("Oh, aquela médica que eu gosto tanto e que me ouve sempre! Que bom!")

E aí, D. Mariazinha? Vamos ver como está tudo com a senhora.

A médica faz os procedimentos, sempre conversando com a senhora de 62 anos, que teve um AVC há pouco mais de dois meses.

Na cama, em semicoma, ela houve a médica com suas perguntas e respostas que ela mesma faz, pois D. Mariá sequer abre os olhos. Às vezes, dependendo da conversa, descem lágrimas dos seus olhos fechados. Uma vez chorou copiosamente.

O filho que morava no interior, pegou a filha e esposa e veio morar com ela na Capital. O apartamento de três quartos, alugado, já não cabia de tanta gente, pois lá já estavam outros filhos e netos. Motivo da vinda: ele estava revoltado com o destino que uma irmã, que se tornou curadora da velha, estava dando ao dinheiro da pensão, cerca de dez mil reais. Com todo este dinheiro, ninguém havia providenciado a compra de um imóvel confortável para a mãe.

-Minha filha, (confidenciou a médica à uma técnica de enfermagem que cuidava da senhora), D. Mariá já havia sido atendida por ambulâncias da Empresa várias vezes com problemas de pressão, pois normalmente havia brigas por dinheiro na sua casa! Eu já sabia que o resultado seria esse! Visualizava esta senhora como está hoje na cama! Parece que eu via um trailer de filme! Mas não podia fazer nada! É uma pena! Às vezes, só me ouvindo, sem precisar medicá-la, a pressão dela baixava e eu ia embora sem nenhum procedimento mais importante!

"Hoje terei um pouco de paz com a médica. Que bom ter alguém que se preocupa comigo, sem ser parente e nem mesmo amigo! Poderei ouvi-la e sair um pouco desse limbo em que estou presa!". Pensava a senhora na presença da médica.

"-Quantas vezes eu tive que gritar, explicar que o dinheiro era meu, que meu marido deixou-me a pensão quando morreu e que não podia mais sustentar tanta gente adulta, alguns irresponsáveis e que não queriam nada com trabalho!".

"-Minha pressão só andava alta, e até meus remédios eu tinha que sair para comprar, pois ninguém se dispunha!".

"-Minha alimentação não era apropriada, pois eu não tinha condições de ir à feira e ninguém ia para mim!".

"-Não sei se quero sair desta! Fico aqui, pensando e sofrendo em ver meus filhos brigando por dinheiro, sem preocupação com o que está por trás de tudo! Sequer pensam que são culpados pela situação em que estou!".

"- Se me esforçar para sair deste limbo, fatalmente terei os mesmos aborrecimentos que sempre tive! Aqui onde estou está mais seguro, estou sendo medicada e tendo os cuidados de pessoas capacitadas! Por outro lado, não quero morrer, passar para o outro lado. Estou nesta ponte, mas no momento é o mais seguro para mim. Até quando ficarei assim, não sei. Até quando meu organismo suportará, também não sei, mas tenho medo, muito medo de voltar. Também tenho medo de morrer! Não sei se realmente há vida após a morte e não quero me entregar. Meu Deus, o que faço, dá-me forças para decidir o que fazer. Às vezes sinto vontade de lutar, voltar à minha vida, mas que vida, se ao meu redor só há abutres que só pensam no meu dinheiro? Deus, ajude-me a não enlouquecer enquanto estou em coma! Dai paz a essa gente, que é meu sangue, mas que não sei como controlar!".

Os filhos e netos, sempre saindo à noite para as baladas e chegando de madrugada, continuam suas vidas como se nada houvesse acontecido. Sessenta e dois anos não é motivo pra um AVC tão sério! Falta de cuidados e prevenção, isto sim! Pensam todos os profissionais que cuidam dela agora!

Cada dia que passa é mais um dia para ela pensar em tudo o que fez, em seus erros na vida, nos erros na criação desses próprios filhos!

"-Amanhã será mais outro dia e terei que agüentar novamente as discussões e imbecilidades destes que são meu sangue! Até quando? Estou cansada e acho que vou dormir. Todos pensam que já estou dormindo, mas só durmo quando quero. De resto, pensem o que quiserem, pois já fiz a minha parte e continuo fazendo, pois minha pensão está sendo usada para várias coisas que não são de meu conhecimento e nem consentimento! Mesmo nesta cama, estou sustentando esta cambada! Beijinhos de vez em quando para enganar não sei a quem! Não me iludo. Criei cobras! Hoje estão me picando! Às vezes penso em me entregar só para acabar com toda essa mordomia, pois a pensão não passará para ninguém! Mas não quero mais pensar por hoje! Vou dormir para acordar melhor! Sei que não saberão se estou dormindo ou acordada, mas o que importa é que sei de tudo o que acontece à minha volta...".

19/08/2009

"-Já é meio dia e ninguém se mexe para por a comida na mesa! Estão esperando o marido da técnica que cuida de mim, num plantão de doze horas, trazer a refeição dela, só para não oferecerem um prato de comida que sou eu quem propicia".

"- Será que meu dinheiro não dá para colocar mais um prato de comida para a pessoa que limpa minhas fezes, minhas secreções, cuida das minhas escaras, me alimenta pela sonda gastro diariamente, com a paciência que um filho deve ter pela mãe?".

"- Pensam que não estou observando isto tudo? O absurdo é que quem deveria estar cuidando de mim eram meus filhos. Cuidei de todos quando pequenos e o natural seria cuidarem de mim agora. Não posso exigir de estranhos o amor que eu deveria ter de meus filhos! E no entanto, tenho! Sinto isso nos olhares e gestos destes profissionais!".

"- Vejo, às vezes, as caras de nojo quando olham para minhas feridas ou fezes! Deveriam agradecer a Deus de terem pessoas para cuidarem de mim com tanto zelo! Mas não, sequer se interessaram em dar o almoço e o café da manhã para o pessoal dos plantões! Como se o dinheiro fosse deles! Não os criei para serem miseráveis assim! Para comprar coisas inúteis, futilidades e sair para festas, o dinheiro dá!".

"- Tenho que orar pelas almas deles! Tenho que orar por essas meninas (técnicas de enfermagem) que cuidam de mim. Tenho que orar para não enlouquecer e sair desta!".

26/08/2009

Capítulo II

"- Já é de madrugada e todos estão dormindo... Sinto um formigamento nos meus pés. A cuidadora e a técnica de enfermagem estão dormindo. Não tenho nenhum equipamento que monitore meus batimentos cardíacos ou outra coisa que o valha... Acho que está na hora de eu me decidir! Sinto frio".

D. Mariá sabe que neste horário existe falhas no monitoramento de sua saúde.

Manhã de cinco de setembro e a nova técnica chega para dar o seu plantão de doze horas a partir das sete.

- Bom dia, diz a moça, mas se depara com a família chorando e olhando-a muito triste, e uma das filhas de D. Mariá diz que a mãe falecera na madrugada. A técnica que estava no plantão de sua morte já havia ido embora e nem sequer perguntou se precisavam de ajuda para empacotar (palavra de uso na área de saúde para o preparo do corpo).

A técnica que chegou, depois do susto, se compôs e adotou os procedimentos rotineiros neste caso.

"- Vejam só, não pensei que seria tão fácil! Eu aqui, em plenas faculdades mentais, sentindo-me ótima, vejo agora meu corpo sendo preparado para meu enterro... Tanto sofrimento, por nada! Mas foi bom passar esse tempo de coma, pois vi muita coisa que não veria se estivesse acordada e bem de saúde".

Neste momento, chega alguns policiais com um dos filhos de D. Mariá algemado, para vê-la pela última vez. A Justiça liberou para a visita, mas não para o enterro.

Chorando, lágrimas talvez de crocodilo, (não saberemos nunca) o rapaz abraça o corpo da mãe sem uma palavra. Não houve discussões nem brigas.

Ele fora o causador da mãe estar neste estado. Depois de muito tempo brigando por dinheiro para sustentar as drogas, culminou por dar dois tiros em D. Mariá, mas sua irmã tomou a frente para proteger a mãe. Os tiros pegaram no pescoço e no ombro da moça, e os médicos acharam melhor não extrair as balas que estavam em posições perigosas para uma cirurgia de retirada. Ela ficou com as cicatrizes, mas sem seqüelas. Sacrifício vão, devido ao AVC posterior.

"- Meu Deus, não consigo ter nenhum sentimento por esse moço que é meu filho! Já procurei entender aonde errei em minha criação, mas não vejo nada! Queria me matar, sua própria mãe e atingiu a irmã. Fugiu sem dar socorro. Seu próprio sangue! O que ele está fazendo aqui? Veio ver o resultado de sua obra? Não me matou naquela época, mas sofri muito mais com o A.V.C. que tive depois de tudo! A cadeia em que ele está, ainda é pouco para o sofrimento que todos tivemos por sua causa! Enfim, tomei a decisão mais correta para o bem de todos. Meu dinheiro não será revertido para ninguém. Todos terão que se virar por sua própria conta. Graças à Deus estou livre desse inferno! A outra, que cuidava do meu dinheiro, que estourava com roupas caras, jóias, homens e baladas nas noites, vai ter que dar um jeito na vida. Só sinto pelos meus netos. Crianças inocentes que de nada têm culpa, mas o que fazer? Vou encontrar meu parceiro, que se foi há alguns anos, talvez já sabendo de tudo o que viria pela frente. Sofri muito sem êle. Quanta amargura!".

"- Deus abençoe esta menina que está cuidando do meu corpo, gratuitamente, pois seu plantão foi cancelado porque minha morte foi de madrugada e ela pega as sete da manhã, não tendo mais obrigação. As pessoas estranhas me trataram muito melhor no período da minha doença. Como dizem por aí, as vezes um estranho é melhor do que um parente. Comprovei em minha vida que o ditado é verdadeiro".

"- Mas não posso demorar. Uma luz muito forte e calmante, vem lentamente em minha direção, e algumas sombras de pessoas que sinto conhecidas, me estendem a mão e não consigo me controlar tal a satisfação que sinto nisto tudo! Espero que seja realmente uma nova vida! Que Deus esteja comigo! Tenho que partir!".

+ 05/09/2009