Tertúlias Na Augusta Cidade!
Quando me perguntaram se gostava de lampreia, sorri-me…pois era prato que nunca me fora grato, a não ser quando a Rosinha dos Limões o cozinhava, lá para os lados de Ponte de Lima, cidade de mil encantos. Aceitei o convite, valia o convívio entre os amigos das tertúlias daquelas sextas na Faculdade de Filosofia, na Sede da Junta de Freguesia, na Escola, em casa de um tertuliano… Sim, é de tertúlias que eu gostaria de vos falar! Sem enfados, muito serenamente, as conversas são como as cerejas, quanto mais as comemos, mais apetece comê-las...
Mas o que é uma tertúlia?
Sem querer exaurir a metalinguagem do termo, defino muito simplesmente o significado prototípico, porém, pela apresentação de temas, compreenderemos a sua essência e o seu alcance para que delas tenhamos, então, necessidade.
Cast. tertulia s. f., reunião familiar ou de amigos;assembleia literária.
Muito ao modo das “Femmes Savantes”de Molière, excluindo o preciosismo que as vitimou, um grupo de trintões, ditos eruditos, encontra-se todas as semanas para “tertuliar”.Apresenta-se o mote/tema (geralmente o anfitrião) sob a forma de exposição, declamação, questionamento, imagem, ou até sob a forma de uma adivinha (o que importa é a motivação) e inicia-se a discussão, fazendo jus a Descartes”Da discussão nasce a luz”.O local é também importante, reflector da sede do propósito. A par destes, acompanha-nos um secretário que com bom senso consegue recompor os textos orais para escritos.
Numa destas tertúlias um engenheiro a quem “nickei”de Camane, da nossa cidade Augusta, apresentou o texto seguinte, que passo a transcrever “Memórias de um Povo.
Recordo-me no meu tempo de criança de brincar, jogar... nos tempos em que a inocência se reflectia como um espelho trabalhado pelo melhor polidor. Provavelmente foi no tempo da revolução dos cravos, em que um povo cantava o seu império pelas terras de África e na sua pobreza orgulhava-se do seu império e da sua riqueza de alma, mesmo que faltasse o pão. Eram tempos da alegre casinha pintada de branco à beira mar plantado. Nesses tempos dos dias grandes e soalheiros, em terras do sul, brincávamos... jogávamos, e dos poucos livros, aqueles oficiais das nossas escolas, aquelas escolas pequeninas e pintadas de branco transparecendo um país limpo e ordeiro de boas gentes e de gentes alegres que trabalhavam as vinhas de sol a sol. Os filhos dessa gente ainda na sua juventude pelo simples facto de terem 18 anos estavam em terras para além mar a velarem pelo seu império, dando continuação à grandiosidade do seu país. Foi nesses tempos, talvez nesses mesmos livros da alegre escolinha pintada de branco, aonde a minha memória trabalhada registou uma lembrança. Passava-se numa rua por detrás de um bairro chique, nessa rua as crianças brincavam, jogavam alegremente…Os montes de terra cobertos por ervas eram as montanhas, nas poças de água colocavam as velhas latas, aquelas latas de sardinha da marca Toneca que simbolizava a indústria piscatória própria de uma país de marinheiros, brincando como se fossem transatlânticos que cruzavam os mares do império. Um dia esses miúdos foram ver o mar, viram os grandes barcos, os tais transatlânticos e no horizonte viram as montanhas.Quando regressaram à sua rua as crianças não mais brincaram, não mais jogaram.
As crianças dessa rua chegaram a ver o mar e as montanhas... passado 30 anos ainda existem outras ruas... »
Depois de ler o texto de forma efusiva, até pessoal, conseguimos uns momentos de silêncio para ordenar ideias e colocar questões, com o objectivo de nos contextualizarmos e melhor entendermos o seu objectivo. A Sibila do grupo questionou o título que o seu autor deu ao seu texto, optando por um menos abrangente, já que se tratava de algo mais íntimo, relacionado com vivências pessoais. No entanto, o interlocutor preferiu deixá-lo assim, porque considerava que aquelas vivências não eram só dele, mas e sobretudo de vários meninos (agora homens e mulheres) da sua geração. Fizemos uma analepse, tentamos perceber o modus vivendi daqueles garotos, quase de rua, entrar quase dentro da pessoa de cada um deles através de situações que Camane complementava. Ficámos então extasiados com este exercício, até emocionados! Recordámos então aquela época de inocência. Recordámos o atum Toneca pela história que Camane nos contava. Falámos do 25 de Abril de 1974, quando passámos de uma Ditadura para uma Democracia, sem nos darmos conta. Relacionámos com a actualidade e constatámos que os jovens de hoje não sabem quem é Zeca Afonso, Ary dos Santos, Ermelinda Duarte com a sua gaivota que voava, voava. Os jovens/adolescentes de hoje já vêem o mar, já vão para a escola e não a aproveitam como nós aproveitámos. (…)
E assim se passaram duas horas a recordar, a relacionar, a discursar, a declamar poemas da época, como por exemplo o “Kyrie”de Ary dos Santos, em suma, a fortificar o nosso cérebro! São assim as nossas tertúlias…daí que eu tenha aceite o convite para a lampreia num abrir e fechar de olhos, sem mesmo gostar de lampreia, só da da Rosinha dos Limões, em Ponte de Lima!