Do outro lado da margem: compreendendo o lugar do sujeito pós-moderno a partir do livro “O quieto animal da esquina” de João Gilberto Noll.
Há na mente das pessoas, de uma forma geral, diversos questionamento sobre o que somos, para onde vamos e o que fazer do tempo que nos sobra nesse fluxo incessante de pessoas. Questões recorrentes como estas tendem a exigir um posicionamento firme de busca, de atenção e lucidez. A partir disso perguntamos: o sujeito contemporâneo está de fato preocupado com estes posicionamentos? Estão decididos em descobrir as respostas ou a indecisão é o que os movem nessa temporalidade de apreensão perpétua?
João Gilberto Noll em seu livro “O quieto animal da esquina” parece não ter se preocupado em dar respostas diretas e simples a questões tão universais como estas. Entretanto, as sugerem de uma forma muito consciente sem deixar de pensar no lugar que o sujeito pós-moderno está inserido.
É evidente que não devemos pensar no processo constante que contribui para formar a personalidade desse sujeito sem levar em consideração o lugar que ele está projetado, evidentemente. Este lugar corresponde ao que se entende por relação entre a sua subjetividade e a exterioridade do meio que o envolve.
Assim, é o modo como se criam as identidades dos indivíduos. O que nos permite afirmar o que o sujeito é reside no fato de que “as lutas a respeito de sua identidade são lutas entre o interior do indivíduo e o grupo: os personagens lutam contra ou agem de acordo com as normas e expectativas sociais. (Culler, 1999.p.110).
"Naquela tarde não demorou muito para me bater a velha fome, e fui me levantando, saindo, olhando as várias pessoas que liam debruçadas em mesas escuras e calosas. Ficava imaginando se eram desempregados como eu, ou se recebiam uma pensão por alguma invalidez oculta, não via neles nada de anormal, ali, sentados, lendo, quietos, não pareciam aleijados, não lhes faltava aparentemente pedaço nenhum". (Noll, 1991. P.6).
Nesse ponto, podemos perceber essa interioridade do individuo em relação com as outras individualidades presentes no seu campo de visão. Para Culler a construção das identidades em obras literárias, que têm como característica precípua representar os indivíduos, são construídas de acordo com lutas no interior do próprio indivíduo e entre ele e o grupo. Em muitos momentos estes indivíduos se deparam com expectativas sócias e assim agem lutando contra ou a favor delas.
Evidentemente, o narrador-personagem do livro de Noll vive um drama existencial tendo de um lado sua individualidade conflituosa e de outro uma sociedade estigmatizante onde o que está e o que não está à margem das coisas é explicitado como fenomenologia de um tempo em que se valoriza de uma forma quase extrema o que não está à margem e desvaloriza-se na mesma proporção o que se encontra nela, em outras palavras, o marginal.
O protagonista do livro ocupa um lugar marginal. Um poeta não lido que parece arremessar no papel suas apreensões sobre o mundo, palco de estranhos acontecimentos. A vida se lhe apresenta como espetáculo. É a narrativa de uma vida cansada e indecisa. Em todos os momentos ele está transitando, deixando o tempo levar-lhe, pois não conhece os limites. Sua vida não segue uma lógica científica de causa e efeito, mas uma lógica da história que procura entender como uma coisa leva a outra.
"Isso não é apenas um resultado das preferências de um público leitor de massa, que alegremente escolhe histórias mas raramente lê poemas. As teorias literárias e cultural têm afirmado cada vez mais a centralidade cultural da narrativa. As histórias, diz o argumento, são a principal maneira pela qual entendemos as coisas, quer ao pensar em nossas vidas como uma progressão que conduz a algum lugar, quer ao dizer a nós mesmos o que está acontecendo no mundo. A explicação científica busca o sentido das coisas colocando-as sob leis – sempre que a e b prevalecerem, ocorrerá c – mas a vida geralmente não é assim". (Culler, 1999. p. 84).
Segundo Culler a cientificidades das coisas não serve para refletirmos de forma segura sobre o processo histórico da vida. Entendemos que os acontecimentos são apresentados como possibilidades de histórias e não como causas e efeitos dessa história. A exemplo disso compreendemos o fato de que o narrador-personagem do livro de Noll, se depara com acontecimentos decisivos para a narrativa como é o caso de sua entrada e saída da cadeia. Noll não parece estar interessado nas causas e efeitos dessa prisão e libertação, mas no processo histórico, quer dizer, no encaixe dos acontecimentos como fleches, fragmentos que se moldam para marcar uma sucessão.
Essa fragmentação, numa perspectiva pós-moderna, é marca de posicionamentos necessários para as narrativas que pretendem colocar o sujeito como centro de pensamentos que se cortam, se desconfiguram, pois não se dá como verdade absoluta. Isso equivale dizer que quando o sujeito nasce se depara com um conjunto de valores que não foi criado por ele, mas que acaba por assimilá-los. Entretanto, tem a sua subjetividade que muitas vezes o faz ir de encontro a esses valores. Por isso a idéia de fragmentação tão difundida em nossa contemporaneidade.
No livro (O quieto animal da esquina) está posta uma cultura marcada pela indecisão e pela ausência – quase total – de afeto. A orfandade é uma ausência e o narrador do livro é movido por essa ausência, pois a mãe assim como o pai também está ausente na maior parte do tempo.
"Me veio a cara da minha mãe me esperando no apartamento pequeno, de um quarto, as paredes de tijolos expostos, a lâmpada nua, e aquela mulher que só parecia me esperar, vendo enquanto me esperava uma televisão em preto e branco que não pegava todos os canais". (Noll, 1991. P. 8).
E mais adiante:
"De manhã cedo fui levá-la na rodoviária, ela embarcava às oito, a chuva tinha parado, mas o tempo não abrira, nuvens andavam com rapidez fustigadas por um vento que parecia sul, a temperatura tinha caído, a minha mãe me beijou, eu disse que ela fazia bem em mudar de cidade, e o ônibus partiu". (Noll, 1991. P. 12).
No texto de Noll, os personagens movimentam-se se deslocam à deriva, privados de projetos e conhecimentos capazes de lhes assegurarem a direção segura para os desdobramentos de sua vida. Isso acontece de tal forma que os contatos sociais que ocorrem durante a narrativa, por vezes motivados por impulsos de violência, parecem não confirmar uma relação de afeto entre eles. Dessa forma, Noll traz à tona problemas afetivos como marca de uma sociedade desajustada e decadente. Entretanto, devemos compreender também o fato de que Noll usa a sociedade apenas como pano de fundo, pois ele não parece estar interessando em expor problemas sociais, mas sim problemas existenciais.
Assim, podemos observar também que o anonimato do protagonista da narrativa aparece como marca de um sujeito que não está interessado em buscar o olhar do outro, ser observado, enfim, aparecer para o mundo.
"O indivíduo anônimo constitui a quarta representação. Surge com as massas caracterizadas por uma indiferenciação, reunidas por um mínimo denominador de racionalidade e arrastadas por emoções íntimas. Sem a anuência propriamente do indivíduo emancipado, cada indivíduo agora com o sentido da responsabilidade diluído, sente-se autorizado a todas as audácias e fraquezas". (Nizia, 1996. P. 54).
Para Nizia Villaça (1996) este anonimato conferido ao sujeito contribuiu, sobremaneira, para que sua conduta se apresente como desapego a responsabilidades aproximando-o de experiências audaciosas, vagas e debilitantes. O que ocorre com o protagonista de Noll é exatamente isso. Após a sua adolescência esteve inserido em um anonimato quase que absoluto. Primeiro, vemos a questão do nome: salvo engano parece que durante toda a narrativa não aparece o nome do protagonista. Segundo, há nele uma falta de interesse em se mostrar para as pessoas, aparecia apenas quando lhe era imposto.
De acordo com Regina Dalcastagnè (2001) “O silencia dos marginalizados é coberto por vozes que se sobrepõe a ele, vozes que buscam falar em nome deles, mas também, por vezes, é quebrado pela produção literária de seus próprios integrantes”. (p.34). Seguindo uma proposição de Barthes, essa autora coloca o escritor como alguém que fala no lugar do outro. Dessa forma, chama a atenção para o lugar desse “outro”, isto é, quem é ele e de que forma está inserido na sociedade.
O protagonista de Noll está inserido em uma sociedade conflituosa. Seu silêncio aparece como marca de seu lugar à margem das coisas, pois não quebra esse silêncio para interferir nos fatos e se apresentar como individualidade presente em meio à contingência que o envolve.
Posto isso, podemos compreender que o lugar do sujeito pós-moderno está repleto de significados. A questão não é mais o sujeito como autor, gênio criador de seu próprio discurso, mas sua subjetividade inserida num espaço e num tempo.
Referência bibliográfica:
CULLER, Jonathan. Teoria literária: uma introdução. Tradução e notas: Sandra Guardini T. Vasconcelos. São Paulo: Beca produções culturais Ltda, 1999.
DALCASTAGNÈ, Regina. Uma voz ao sol: representação e legitimidade na narrativa brasileira contemporânea. Brasília-DF, N. 14, Julho/agosto. 2001, p. 33-77.
NOLL, João Gilberto. O quieto animal da esquina. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.
VILLAÇA, Nizia. Paradoxos do pós-modeno: sujeito & ficção. Rio de Janeiro: editora UFRJ, 1996.