O romantismo e o trovadorismo: Fremosa senhor e Senhora.
AS CANTIGAS E ROMANTISMO
O presente trabalho tem por objetivo fazer uma pequena comparação entre o romantismo brasileiro, utilizando a romance “Senhora”, de José de Alencar ,e o Trovadorismo português, nas “Cantigas de amor cortês”. A partir da leitura das cantigas medievais percebe-se a idealização da “Fremosa Senhor”, bem como um amor que tem com resultado muita dor, assim como ocorre no romance “Senhora”. Para essa análise será feito um estudo da personagem “Aurélia” e de algumas cantigas, bem como do movimento romântico, com o objetivo de conhecer o que tem da mulher medieval no romantismo brasileiro.
O romantismo foi o movimento literário baseado nas obras da Antigüidade clássica, essa foi a maneira utilizada pelos românticos para se sobrepor à escola que os antecedeu, o arcadismo. Segundo Nelson Werneck Sodré:
“Os neoclássicos pregavam o culto da Antiguidade pagã; os românticos, o culto à Idade Média : exumaram lendas medievais e um riquíssimo material folclórico. Ao paganismo opuseram os românticos o cristianismo”.
Essas palavras mostram a relação ocorrida entre as cantigas e o romantismo. Além disso, o vocábulo “romântico”, em época anterior às cantigas significou uma espécie de composição literária escrita em língua vulgar, em verso ou em prosa. A presença da língua vulgar, ou seja, língua do povo , lembra a liberdade lingüística defendida pelos Românticos, da mesma forma que os personagens heróicos e corteses lembram os corajosos personagens da escola brasileira., então se pode dizer que a liberdade de forma e imaginação romântica é uma influência medieval.
Frente a tantas características românticas, escolheu-se para trabalhar a incessante busca pelo amor do individuo feminino como ser idealizado e divino,
A “senhôra” de Alencar e a “Senhor” das cantigas:
Ao ler a obra “Senhora” , de José de Alencar, nota-se o uso da palavra “senhôra” para designar Aurélia, a protagonista da obra. Nas cantigas de amor cortês o tratamento “senhor” era usual na expressão literária, quando se queria falar de alguém realmente nobre, e no caso de ser adotada para tratar uma mulher designava mais importância a esta.
“Senhora” é um romance urbano onde ocorre muita descrição dos costumes daquele meio social, por sua vez as cantigas de amor, conforme afirma Spina, também representam seu universo social:
“Os cantares de amor (...) constituem um retrato da vida feudal da corte, são expressão de um meio culto, refinado, comprometido pelo convencionalismo da vida palaciana.”
O enredo do romance consiste na compra de Fernando Seixas por Aurélia Camargo, para que ele ocupasse o papel de marido da protagonista. A relação entre o casal era de patroa e empregado. Esse tipo de relação encontra-se, também, nas cantigas, segundo Spina:
O tema constante desses cantares (...) é a coita, a paixão vivida pelo homem que está a serviço de uma dama. O trovador se compraz, então, em viver de um amor insatisfeito, ocasionado pela incorrespondência da mulher, e em analisar nos seus pormenores de causa e efeito o seu drama passional. A mulher torna-se assim , a (...) dama impiedosa, obstinadamente inacessível às solicitações do trovador.
Numa cantiga observa-se a ação da dama, idolatrada pelo trovador, semelhante à de Aurélia diante de Seixas, quando ele à encontra na escadaria do teatro:
U lh’eu dixi: “con graça, mia senhor!”
Catou-m’ um pouco e teve-mi em desden;
E, por que mi non disse mal nen bem,
Fiquei coitad’e com tan gran pavor
Que, se mil vezes podesse morrer,
Meor coita me fora de sofrer!
(D. João Soares Coelho. SPINA)
Neste trecho da cantiga de amor sente-se a relação de indiferença da dama pelo trovador; o que para este é pior que o ódio da amada, pois o ódio é um sentimento , já a indiferença é a total apatia pelo outro, não podendo ser classificado como um sentimento, nem mesmo negativo. Do mesmo modo, Aurélia agia com seus adoradores:
“Os gestos fátuos e as palavras insinuantes dos mais afoitos quebravam-se na fria impassibilidade de Aurélia.” (pg.86)
A dama deveria colocar-se de forma superior, como ser divino, acima do pecado carnal, este fato é relevante nos dois períodos literários. No romantismo era necessário idealizar, para mostrar a liberdade do autor, já nas cantigas isso ocorria para manter o sistema feudal.
Sendo a dama alguém inacessível o cavalheiro deveria ter um comportamento condizente com essa realidade. Na obra de Alencar, as ações de Aurélia redimiram Fernando, pois em muitos momentos foi obrigado a sobrepor-se ao seu orgulho:
“seixas, trespassado pelo cruel insulto, arremessado do êxtase da felicidade a esse abismo de humilhação, a princípio ficara atônito. Depois quando os assomos de irritação vinham (...) recalcou-os (...)” (pg. 76).
Numa cantiga de João Garcia há algo semelhante, revelando o medo de ofender a dama e o lamento do trovador pela má sorte que o persegue:
Tan gran sabor houv’eu de lhe dizer
A mui gran coita que sofr’e sofri
Por ela! Mais tan mal dia nasci,
Se lh’oj’eu bem non fiz entender!
Ca me tremi’assi o coraçon
Que non sei se lh’o dixe ou se non
Esse texto quer passar que a ação da mulher era apenas salvar o homem do “mau caminho”, mas na verdade o objetivo é coloca-lo na ordem social vigente. É dessa forma que Aurélia salva Seixas
Como todas as almas que se regeneram, a de Seixas exercia sobre si mesma uma disciplina rigorosa (...) O homem de coração e de honra se forma aos toques de Aurélia.” (pg. 211 e 212).
O jovem vassalo do príncipe tinha seu caráter moldado pelo jogo da cantiga de amor:
Os jogos do amor delicado ensinavam, na verdade , amistat, com diziam os trovadores, a amizade (...) com todos os valores do estoicismo (...) Desejar o bem do outro mais que o seu próprio, era isso que o senhor esperava de seu homem.” (Georges Duby, pg. 65).
Na mesma obra Duby comprova a semelhança na atitude dos cavalheiros do romance “Senhora” e das cantigas:
“Era demonstrado sua capacidade de transformar a si mesmo por um esforço de conversão análogo àquele que todo homem devia realizar se quisesse, subindo um degrau na hierarquia dos méritos, introduzir-se numa comunidade nomástica, era fornecendo a prova de que podia convenientemente jogar esse jogo, que o novo rico (...) conseguia faze-se admitir nesse mundo particular, a corte (...).”
Por isso pode-se dizer que o papel da mulher na sociedade era o mais difícil, pois devia estimular e, ao mesmo, tempo conter as paixões para que o jogo cortês não acabasse..Isso pode ser visto tanto em “senhora” como na cantiga de D. Dinis:
Que/ par /zer / ha /ve /des/, se/ nhor, A
De/ mi/ fa/ zer/ des/ mal/ por/ ben/ B
Que/ vos/ qui/ s’e/ quer/ pó/rem B
Pe/ç’eu/ tan/ t’a/ Nos/ tro/ Se/ nhor/ A
Que/ vos/ mu/ d’ê/ sse/ co/ ra/ côn,/ C
Que/ mi há/ vê/ dês/ tan/ sem/ ra/ zon./ C
Pra/ zer/ há/ vê/ dês/ do/ meu/ mal, D
Pe/ ro/ vos/ a/ mo/ mais/ ca/ mi,/ E
E/ pó/rem/ pe/ ç’a/ Deus/a /ssi,/ E
que/ sa/ be/ quan/ t’é/ o/ meu/ mal,/ D
que/ vos/ um/d’ê/sse/co/ra/côn/ C
que/ mi há/ vê/ dês/ tan/ sem/ ra/zon./ C
Mui/to /vos/ praz/ do/ mal/ que hei,/ F
Lu/ me/ d’a/ quês/ te/s o/ lhos/ meus,? G
E po/ r es/ to/ pe/ ç’eu/ a / Deus, G
Que/ sa/b’a/ coi/ ta/ que eu/ hei,/ F
Que/ vos/ mu/ d’ê/ sse/ co/ ra/ côn,/ C
Que/ mi há/ vê/ dês/ tan/ sem/ ra/ zon/ C
E,/ se/ vo/-lo /um/ dar,/ em/ ton/ H
Po/ss’eu/ vi/ ver/ , se/ non,/ non./ H
Na cantiga o trovador queixa-se da indiferença da dama, no romance, Seixas considera seu amor impossível:
“E essa mulher que deu a mim com mais sublime abnegação , essa mulher única, eu a admiro, e não posso amá-la nunca mais! Encontrei- a em meu caminho, e perdi-a para sempre! Também não amarei outra.. Depois de a ter conhecido, não profanarei minha alma com afeição de outra mulher...” (pg. 120).
Aurélia,como as damas da cantiga, conseguia confundir Fernando, por vezes parecia apaixonada e em outras demonstrava apenas o interesse em humilhar o marido:
“Essa tarde Seixas achou Aurélio inteiramente outra da que era nos últimos tempos. Sua expressão meiga, e sobretudo a candura e singela de seu modo, restauraram em sua memória a imagem da formosa menina de Santa Teresa, a quem amara outrora.” (pg.169).
Isto demonstra que os homens não perdiam a esperança de serem correspondidos, pois a mulher de certa forma estimulava esta paixão, mantendo o jogo, tanto no romance quanto na cantiga.
Na análise dessa cantiga de D. Dinis pode-se encontrar outras comprovações da semelhança entre aspectos medievais e românticos. Ela apresenta rimas agudas, interpoladas (A-A, D-D, F-F), emparelhadas (B-B, C-C, 3x, E-E, G-G , H-H). As rimas interpoladas são ricas. Esta estrutura traz a musicalidade, um dos principais elementos das obras medievais, também trabalhada nas obras de Alencar. Por exemplo o momento em que Aurélia e Fernando dançam a valsa, onde cada episódio narrado expressa o som (presença da letra “s”) e as emoções (grande tensão entre os protagonistas) desta música:
Seixas abdicou de si, e arrojou-se novamente no turbilhão.
Tudo isto se passara em breves momentos, durante o espaço
Que o par valsante levara para descrever pelo vasto salão duas ou três elipses.(pg. 199)
A cantiga tem três grandes grupos de significado: o amor (mud, razon 3x, amo, mudar, viver, lume); o sofrimento (prazer 2x, mal 4x, coraçon 3x, praz, coita, non) e a religiosidade (Nostro Senhor, Deus 2x). Nesta cantiga o amor não correspondido traz um grande sofrimento que só poderá ser solucionado pela intercessão divina, além disto, sem o amor da dama o cavalheiro não tem razão para viver. Estes três grupos de significado aparecem em senhora:
“Poupemos aos nossos mútuos sarcasmos a augusta santidade do amor conjugal; disse ela comovida. Deus não os concedeu essa inefável alegria, a fonte pura de quanto há de nobre e grande para o coração...” (pg.191)
Na camada sintática se tem duas figuras de linguagem: a antítese (versos 2, 7 e 13) e a hipérbole (versos 9, 18 e 19). A antítese demonstra as duas faces do amor o bem e o mal – e a capacidade que o amor tem de levar o ser humano para outros “mundos”, o sentimentalismo e a felicidade. Esta última figura é uma das mais usadas no romantismo e a encontramos em Alencar:
“Seria difícil conhecer a quem mais adorava a gentil menina, e de quem mais vivia,se do homem que a visitava todos os dias ao cair da tarde, se do ideal que sua imaginação copiara daquele modelo.”(pg. 93)
Percebe-se nisto que o romântico vive do seu amor, ou ainda do seu ideal, de forma exagerada, pois todas as suas ações circulam em torno dos sentimentos extremamente forte que só um ser divino pode dominá-lo e guiá-lo a um porto seguro. Observa-se que na cantiga a palavra “Senhor” rima com “Nostro Senhor”, uma aproximação da imagem da dama amada à imagem divina; Aurélia por várias vezes é comparada pelo amor e a bondade, sem a sede de vingança que a guia no romance. É necessário que a mulher se pareça com a imagem de Deus, pois o elemento feminino é um elemento julgado perigoso, se não for dominado destruirá o homem e a ordem social vigente. Isto é notado por Antônio Candido em Alencar:
“Os seus diálogos (...) denotam igual tendência para idealizar”
Talvez respondam ao esforço de dar estilo e tom a uma sociedade de hábitos pouco refinados, composta na maioria de comerciantes enriquecidos ou provincianos em pleno ajustamento.” (pg. 233).
Esta forma de ver a mulher perdurou durante anos e continua – ainda que enfraquecida – em nosso meio. Ou o elemento feminino liga-se a imagem de Nossa Senhora (um ser puro que salva a humanidade, figura da mãe e da esposa) ou liga-se a imagem e Eva (um ser ambicioso, a mulher fatal que acorda todos os desejos da carne no homem); se os personagens femininos seguirem o primeiro exemplo eles ficarão vivos no romance, se seguirem o segundo, geralmente sofrem a força da ira da sociedade, chegando por vezes à morte como expiação de seus erros, ou seja, como pagamento por terem fugido aos padrões ditados por uma sociedade machista; exemplo disto é Lúcia do romance Lucíola, também de Alencar. Nas cantigas, o jovem trovador, se conquistasse a mulher e ela perdesse a imagem ideal, não sofreria nenhuma pressão da sociedade, já a mulher seria repudiada pó todos. Aurélia só conseguiu ser feliz quando renegou a sua riqueza e com ela seu poder social:
“- Esta riqueza causa-te horror? Pois faz-me viver, meu Fernando. É o meio de a repelires. Se não for bastante, eu a dissiparei.” (pg. 231)
O romance de Alencar inspirado nas trovas medievais:
Com estas pequenas comparações conclui-se que tanto as damas das cantigas como as do romantismo apresentam papéis importantíssimos, apesar de serem consideradas secundarias na sociedade. Mesmo tendo uma grande diferença de tempo e apresentando características de uma mulher moderna, em Aurélia aparece muito das mulheres medievais.É o próprio personagem Fernando Seixas que afirma isso:
“Aurélia tomou o braço do marido, e afastou-se lentamente ao longo da alameda”.
_ Por que me chama de senhôra? Perguntou ela fazendo soar o ó com a voz cheia.
_ Defeito de pronúncia!
_ Mas às outras diz senhora. Tenho notado; ainda esta noite.
_ Essa é creio eu, a verdadeira pronuncia da palavra; mas nós, os brasileiros, para destinguir da fórmula cortês, a relação de império e domínio, usamos da variante que soa mais forte (...). O súdito diz à soberana, como o servo à dona , senhóra. Eu talvez não reflita e confunda.”(pg. 190)”.
Na obra de Oscar Lopes e Antonio José Saraiva, aparecem os conflitos de amor, que o próprio Camões utilizou e tiveram influência das cantigas:
“O sentimento dos contrastes do amor – do querer e não querer da timidez e da violência impulsiva do desejo, do doce amargo da saudade – são temas muito correntes entres os provençais, que o transmitiram a Petrarca, em quem por sua vez irão aprende-los Bernardim Ribeiro e Camões.” (pg. 61)
Estes conflitos ocorreram na obra de Alencar e de vários outros autores pois o amor é tema universal e atemporal. Assim, sem dúvida, não só “Senhora” sofreu influências das cantigas, mas muitas das obras onde ocorre o mesmo tema. Isto se dá porque o amor é um jogo, continuamente realizado pela humanidade, mudam-se as regras, os personagens mas a tensão é sempre a mesma. Como ocorriam nos jogos das trovas e em todos os grandes amores – tanto na arte quanto na vida – Aurélia e Fernando comprovam:
“Aurélia tinha em suas relações com o marido, especialmente nos instantes de animação, gestos e atitudes de uma grande expressão dramática. Esses movimentos naturais não eram senão acenos das paixões e sentimentos de sua alma; pareciam artísticos porque revestiam-se de uma suprema elegância.”(pg. 206)
Por tudo isso, arrisca-se em dizer que não existe obra literária sem uma pincelada de sentimento, e também se pode afirmar que na literatura nada se cria tudo se copia, pois existem muitas influências das Cantigas Medievais nas outras escolas literárias,mais do que se pode imaginar. Acredito que seja preciso entender estas maravilhosas figuras femininas que desfilam orgulhosamente na Literatura, fazendo seus jogos de amor, afinal desvendando seus mistérios talvez se consiga encontrar um ponto de equilíbrio entre Senhores e Senhôras.
“A ficção não consiste em fazer ver o invisível, mas em fazer ver até que ponto é invisível a invisibilidade do visível.” (Michel Foucault)
Bibliografia:
ABDALA, Benjamin Júnior, PASCHOALIN, Maria Aparecida. História Social da Literatura Portuguesa.Editora Ática.
ALENCAR, José.Senhora. São Paulo: Klick Editora, 1997.
CANDIDO, Antônio. Formação da literatura Brasileira. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Belo Horizonte: Itatiaia.
DUBY, Georges. A propósito do amor chamado cortês.In: Idade Média, idade do amor e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. Pg. 65.
GOLDSEIN, Norma. Versos, sons e ritmos. São Paulo: Ática, 1995.
SODRÉ, Nélson Wernneck. História da literatura brasileira. São Paulo.Pg. 193.
SPINA, Segismundo. Presença da literatura Portuguesa: Era Medieval. Rio de Janeiro : Bertrand Brasil, 1991.