Refrões da cidade

Menino das laranjas

(Théo de Barros)

"Menino que vai pra feira

Vender sua laranja até se acabar

Filho de mãe solteira

Cuja ignorância tem que sustentar

É madrugada, vai sentindo frio

Porque se o cesto não voltar vazio

A mãe já arranja um outro pra laranja

Esse filho vai ter que apanhar

Compra laranja, laranja, laranja, doutor

Ainda dou uma de quebra pro senhor!

Lá, no morro, a gente acorda cedo

E é só trabalhar

E comida é pouca e muita roupa

Que a cidade manda pra lavar

De madrugada, ele, menino, acorda cedo

Tentando encontrar

Um pouco pra poder viver até crescer

E a vida melhorar

Compra laranja, laranja, laranja, doutor

Ainda dou uma de quebra pro senhor..."

Até então, eu partia da música para o ensaio, ou seja, diante do que sentia ao ouvir a música, eu escrevia. Desta vez, no entanto, foi diferente: ao presenciar o vendedor de sombrinhas da Praça XV seguir sem proteção sob a chuva, surgiu a idéia de escrever a crônica e a partir daí me lembrei das músicas que abordam o tema.

A letra de “Menino das laranjas” é interessantíssima. De fato, a feira é um reduto dos vendedores ambulantes, um espaço livre para eles, tal como as praias. Nestes dois ambientes, a liberdade de atuação dos camelôs é maior, apesar de o Estado regular a atividade.

Na praia, os vendedores de picolé, sanduíches e bebidas são muito bem recebidos; acredito que assim seja em virtude do interesse dos freqüentadores, que querem ser servidos à beira d’água. Na feira, além dos meninos que vendem frutas etc., há ainda os carregadores, com seus carrinhos de rolimã. Quando criança ia sempre à feira aos sábados e lembro do barulho dos carros de rodinhas metálicas e das brincadeiras dos meninos carregadores, seus refrões e as corridas que às vezes apostavam entre eles. Havia o trabalho, a obrigação de levar as compras alheias, mas eles não deixavam de brincar, de ser crianças, era - apesar de tudo - lúdico o modo como empurravam seus carrinhos, oferecendo seus serviços.

O fato de a versão de Elis começar com o refrão deve ser ressaltada, pois é esta repetição que o camelô usa para chamar a atenção do público para seu produto - e frequentemente são musicais e bastante criativos estes jingles das ruas.

O segundo verso da primeira estrofe, “Vender sua laranja até se acabar” dá azo a duas interpretações: o menino que se acaba ou as laranjas que se acabam; penso que os dois se acabam, na verdade; mas não sei quem fenece primeiro: será a criança ou o produto?

Quanto aos dois últimos versos da primeira estrofe, “Filho de mãe solteira / Cuja ignorância tem que sustentar”, tenho algumas considerações a fazer. O filho, a meu ver, sustenta a ignorância que nós - Estado, sociedade - criamos, na medida em que não oferecemos educação a boa parte da população.

A estrofe seguinte trata da angústia da criança, que só pode voltar quando o cesto estiver vazio, caso contrário ele será substituído por outro filho e ainda castigado. Será que conseguimos nos imaginar, aos 8 ou 9 anos, saindo de casa bem cedo com um cesto de laranjas nas mãos, sem hora pra retornar; ou melhor, só podendo voltar quando o produto acabar, seja lá quando isto acontecer?

A intenção do texto é proporcionar esta identificação, é uma tentativa de preencher estes homens, pois de fato é como se eles fossem vazios da substância que os faz humanos e que permite a identificação das pessoas que ignoram sua realidade. Quem é ignorante, então: a mãe solteira desta criança ou todos os que passam por eles e não percebem que ali há um homem como qualquer outro?

E lá vão eles, bradando seus refrões:

“Compra laranja, laranja, laranja, doutor

Ainda dou uma de quebra pro senhor!”

Para mim, estes refrões, cantados pelos vendedores ambulantes, são a trilha sonora real das grandes cidades, principalmente nos centros. Nós os ignoramos, mas eles estão lá, quase como máquinas, a repetir, intermitentemente, seus "jingles":

Chocolate é um! Sombrinha é 5! Familhão é 10! Doce é 2! Olhaí, DVD com filme que tá no cinema ainda! Bala, olha a bala!

As pessoas seguem quase sempre; alguns param e compram algo, se lhes interessa o que é ofertado nas calçadas. No entanto, insisto: não são homens que estão ali de pé vendendo na rua: são máquinas, nas quais pode-se depositar o dinheiro e pegar o produto.

Nos ônibus, também transitam camelôs, os quais - com seus ganchos cheios de sacos de balas, que se adaptam às barras internas - proferem seus refrões mais que decorados, totalmente automáticos, e oferecem sua mercadoria.

E os ambulantes não pedem esmolas: eles oferecem bens - não pedem dinheiro sem nada em troca. Sobre os pedidos nos ônibus, “O Rappa” transformou em música um refrão da cidade:

“Senhoras e senhores estamos aqui

Pedindo uma ajuda por necessidade

Pois tenho irmão doente em casa

Qualquer trocadinho é bem recebido

Vou agradecendo antes de mais nada

Aqueles que não puderem contribuir

Deixamos também o nosso muito obrigado

Pela boa vontade e atenção dispensada”

Temo que as músicas sobre tais temas sejam ouvidas como mero entretenimento e não como críticas severas a uma realidade absurda. Porque a ignorância é tanta que é capaz de dançarmos “empolgados” ao ouvir estes tristes refrões, os quais, em vez de incitar a reflexão, podem banalizar os jingles das ruas.

Voltando a “menino das laranjas”:

“Lá, no morro, a gente acorda cedo

E é só trabalhar

E a comida é pouca e muita roupa

Que a cidade manda pra lavar

Esta estrofe é crucial: inicialmente, pela divisão entre morro e cidade, mas também pela denúncia que faz ao colocar que a comida é pouca e há muita roupa pra lavar. Esta divisão (cidade/morro), segundo Bauman, em “Amor Líquido”, é um fenômeno mundial: as elites protegem-se em seus condomínios hiper-seguros e vivem suas vidas virtuais - segregação voluntária – e os demais se acumulam nas áreas físicas que lhes restam. Sobre São Paulo, o sociólogo afirma que “uma nova estética da segurança modela todos os tipos de construção e impõe uma nova lógica de vigilância e distância”.

Os versos “A comida é pouca e muita roupa / Que a cidade manda pra lavar” demonstram que há muito trabalho e poucas condições e oportunidade para os moradores do morro - e eles se inserem - se é que se pode se chamar isto de inclusão - na medida em que servem aos moradores da cidade. Esta dicotomia morro/cidade foi banalizada e parece que não enxergamos o absurdo que ela contém.

Os termos falam por si: cidadão, etimologicamente, significa o habitante da cidade (a civitas romana ou polis grega), ressaltando-se que o conceito de cidadania sempre esteve “atrelado à noção de direitos, especialmente os direitos políticos, que permitem ao indivíduo intervir na direção dos negócios públicos do Estado”.

Sobre esta dicotomia, os Racionais MC´s cantam, em primeira pessoa, a segregação e o dilema em que vive o jovem da periferia de São Paulo (que por sinal foi a cidade que Bauman utilizou em “Amor Líquido”, ao falar das barreiras que são erigidos para “proteger” a elite)[1]:

“Se eu fosse aquele cara que se humilha no sinal

Por menos de um real, minha chance era pouca

Mas se eu fosse aquele moleque de toca

Que engatilha e enfia o cano dentro da sua boca

De quebrada, sem roupa você e sua mina,

Um dois nem me viu já sumi na neblina”

Mas não! Permaneço vivo, prossigo a mística

Vinte e sete anos contrariando ah estatística

Seu comercial de tv não me engana

Eu não preciso de status nem fama”

(Racionais MC´s – capítulo 4, versículo 3)

Neste contexto, quem é, então, o favelado? Seria aquele que serve à cidade mas a ela não pertence? Seria um cidadão ou seria uma espécie de “estrangeiro”, “refugiado” apesar de nacional?

Afinal, ele é do morro, não habita a cidade (polis) - ele transita por ela, se encaixa como peça onde há algum espaço (ainda que irregular), porém não é beneficiário da pavimentação, da proteção (polícias) etc. e não consegue influenciar nos rumos do Estado (carência de poderes políticos).

Na verdade, pode-se entender que as instituições estatais, em sua maioria, prestam-se a colocar o favelado de volta ao seu espaço e não inseri-lo; um exemplo recente é a construção de muros ao redor de algumas favelas do Rio. Não obstante a segregação dos condomínios, o Estado se propôs a usar dinheiro público para criar barreiras físicas às comunidades discriminadas.

Não seria mais lógico, como sugere Bauman, construir “pontes” em vez de “muros”, a fim de aproximar a favela da cidade e não tornar ainda mais grave a separação que já existe? O investimento em educação de qualidade e a criação de meios para que os habitantes da favela possam residir no asfalto (termo usado para designar a cidade) são algumas das “pontes” que deveriam ser construídas no lugar das barreiras.

Outro exemplo de instituição estatal que serve para reprimir é a guarda municipal, cuja função é apreender as mercadorias dos vendedores ambulantes e persegui-los pelas ruas e calçadas irregularmente ocupadas. Os guardas são servidores da cidade, do asfalto, e devem por isso zelar pela correta utilização do espaço público.

Ora, quem tem dinheiro pode comprar uma loja e colocar seus produtos à venda, ou seja, com recursos adquire-se um espaço privado e com ele há liberdade para fazer o que quiser. No entanto, como ficam aqueles que não tem dinheiro para comprar um “espaço privado”, aqueles que desconhecem o título de propriedade? A estes, que só conhecem a posse (não a segurança da propriedade), resta ocupar o espaço público, que é, em última instância, o único ao qual eles têm acesso - mesmo assim transitório, pois ninguém pode se estabelecer definitivamente no espaço que é de “todos”.

Daí se constata que ele é ambulante justamente porque tem que transitar no espaço, não tem os meios e recursos de se estabelecer: nós exigimos que ele seja nômade e o refutamos por isso! Mandamos que prossiga sempre, tal qual o agente 64 de “Crainquebille” [2], que prende o camelô que se recusa a seguir em frente.

E o movimento dos ambulantes não se restringe às suas vidas nos centros urbanos. Com efeito, a maioria dos moradores das favelas não é daqui; eles vêm do campo, são os retirantes que, instados pela fome, vêm tentar a vida nas cidades. Ou seja, essas pessoas são condenadas a se moverem sempre. Não é só o guarda que os faz seguir. É bem pior: a falta de oportunidades os obriga a migrar e a ausência de recursos os condena a se encaixar onde há espaço, ainda que informal, irregular, ilícito.

Será que os produtos realmente flutuam, sozinhos, pelas ruas ou já começamos a ver as máquinas (ou seriam sombras) que os carregam?

Notas:

[1] BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido. “Sobre a dificuldade de amar o próximo”. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 2004. V. p. 130 e seguintes.

[2] FRANCE, Anatole. A Justiça dos Homens. Tradução de João Guilherme Linke. São Paulo: Ed. Difel, 1986.