II - Trinta anos naquela cidadela

Estando a chegar Maria das Neves ao centro de escambo logo pela manhã, pôs-se a perceber um cheiro peculiar de outono em seu nariz, e tal cheiro lhe fazia mergulhar em imensa nostalgia; caminhava para trocar leite de cabra fresco por sabão e um pedaço de carne de porco e avistou de longe, notou algo que, mesmo antes de ser visto com definição, produziu uma sensação de desconforto em seu coração, era uma figura singular, delicadamente grotesca, com certa singeleza e possuidor de um olhar profundamente desconcertante para uma mulher de dezesseis anos.

Francelino Alves acabara de tomar dois tragos de aguardente de cana produzida na própria região e parara instantaneamente de tremer suas mãos.

Era assim todos os dias. A abstinência do álcool lhe causava dores estomacais terríveis e sempre que acordava vomitava a própria bile.

Suas mãos tremiam incessantemente até que o primeiro gole do dia lhe despertasse para mais uma jornada errante e sem destino.

Quando ele a avistou sentiu um ardor no peito que até então nenhuma caninha lhe havia proporcionado. Sentiu uma embriaguez sóbria de um desejo desconhecido, inefável.

Era como se estivesse no lugar certo, na hora exata para que o destino lhe pregasse essa peça inverossímil.

Ambos aproximaram-se, trocaram cordialidades, se despediram, mas, com um novo encontro marcado para o dia seguinte, num local menos movimentado.

No dia seguinte, como que pelo sincronismo da vida, chegaram praticamente juntos ao local combinado. Um barranco sob uma imponente paineira as margens do grande rio.

E assim foi por vários dias; meses se passaram e Maria das Neves se viu prenha.

Faziam sexo regularmente debaixo da sombra daquela paineira, se deliciavam num amor sedento, às vezes violento como gatos do mato copulando para sobrevivência da espécie.

Uniram-se sem delongas após a constatação de três meses sem sangrar por parte de Maria das Neves. Fizeram um casebre de bambu no fundo de uma propriedade do provecto Felizardo Jacinto em troca de trabalho.

Alguns dias depois estavam alojados na colônia da grande fazenda, pois a casa de bambu, tão efêmera, não agüentou três dias em pé e para a sorte do casal havia um pequeno casebre vazio junto à colônia de serviçais.

Apenas cobras, ratos e escorpiões habitavam o interior do minúsculo pardieiro. Instalaram-se rapidamente antes que outros trabalhadores sem-teto o fizessem.

Limparam alegremente o local e se deliciaram em sua primeira moradia sólida depois de unidos.

Felizardo Jacinto era um velho que vencera na vida por meio de lutas sangrentas. Dizimava posseiros e quem mais tinha terras por ali.

Mandava cercar propriedades e passava em cartório tudo para seu nome.

Plantava milho entre os meses de setembro a março. Seus serviçais cuidavam da terra, adubando-a com calcário e restos de estrume do gado que também pertencia ao velho. Não tinha filhos, apesar de estar casado há quarenta anos. Diziam os antigos que, “o ancião, de tão ruim, Deus não quis que se perpetuasse sua herança genética em outros seres vindouros”.

Seu desejo era que quando morresse, de morte natural na velhice extrema, doaria tudo à Igreja em troca de perdão de seus muitos pecados e assim garantiria um lugar não nas chamas do inferno, mas nas regiões celestiais. Todavia, na certeza de que viveria ainda algumas décadas, não redigiu testamento.

Seus empregados escravos trabalhavam em troca de comida e duas horas de folga aos domingos para irem à missa.

Tinham horário para sair e retornar a propriedade controlado por um jagunço que viera da região norte e adorava espancamentos e torturas. Esse tipo de trabalho lhe gerava imenso prazer. Era homem de confiança de Felizardo Jacinto e se chamava Raimundo Batista Nonato.

Na época de plantar, além do adubo natural espalhado, seus serviçais preparavam a terra para receber milho e capim braquiária de sementes provenientes da região centro-oeste. Quando colhiam o milho, restava apenas o capim para que o gado se espalhasse pelas terras no período de entressafra.

Tudo se transformava num grande pasto cheio de gado gordo. Mas, a braquiária fazia surgir, como que se brotassem da terra vermelha, um enorme contingente de ratos silvestres que, logo se tornaram uma praga na região.

Assim, seu predador natural também se manifestou em enormes contingentes, a cobra cascavel. Quanto mais ratos havia, mais as cascavéis dominavam os pastos e plantações.

Nessa época muitos serviçais morreram picados pelas cobras, inclusive o jagunço nortista que, voltando para seu casebre numa noite sem lua, após encher a cara de cachaça num botequim do povoado, em meio à escuridão, a pé, pisou no rabo com cinco guizos de uma enorme cascavel que, sem pestanejar lançou-lhe um bote certeiro em suas nádegas.

Amanheceu morto, ressequido, com uma tonalidade azulada na face, beiços roxos e um par de furos na região glútea.

O gado pastava e pisava nas cascavéis naturalmente, como se tudo aquilo para eles fizesse parte de um cenário, um habitat. Vez ou outra um animal era picado. Tinham vertigens, andavam a cambalear, berravam em alta ressonância, e assim, corriam os serviçais a aplicar-lhes soro antiofídico. Litros de soro eram consumidos anualmente, e deste modo, o rebanho permanecia sem baixas significativas.

As cobras se enrolavam às cercas do caminho e lançavam seus botes certeiros junto à população.

Um dia, em meio à colheita de milho, Francelino Alves ao lado de uma senhora serviçal avistou uma enorme cascavel com sete guizos em seu rabo. Nesse órgão sonoro da cauda das cascavéis, dizem os antigos, que cada gomo representa um ano de vida do animal.

De qualquer forma o bicho peçonhento era enorme e Francelino Alves se viu estático, paralisado, como se tivesse sido hipnotizado pela serpente que os encarava profundamente, mostrava-lhes a língua e vibrava seu guizo, ressoando pela plantação um barulho mortal e perturbador.

A franzina senhora no alto dos seus cinqüenta e poucos anos, num ato rápido e preciso, como que num piscar de olhos, lançou a lâmina, amolada pela manhã, de sua enxada gasta de tanto labor contra a cabeça chata do animal e a partiu ao meio. Francelino ainda permanecia inerte quando a pequena senhora se pôs a cantarolar uma cantiga da região e retornou a capinar embaixo do sol escaldante. Foi uma cena que Francelino Alves jamais esquecera e sempre a narrava nos balcões dos botecos que freqüentava.

Nessa mesma época, o beberrão inveterado mais célebre da redondeza, aprendeu, com um caixeiro viajante de nome João Rodrigues Sobrinho, que passava pela fazenda trazendo botinas, chapéus, luvas de couro, sabonetes, espelhos refletivos, canivetes e todo tipo de bugigangas que esses profissionais comercializam, a fazer cachaça caseira.

Foi uma verdadeira alquimia para Francelino Alves, que prestava extrema atenção às palavras e gestos do caixeiro viajante e conhecedor da cultura do mundo.

Era uma forma de cachaça antiga, preparada com fubá de milho e Francelino Alves dizia que ir morar em meio aquela enorme plantação dos tais grãos era sem dúvida um presente divino.

Quando estava a preparar a substância líquida cantava com júbilo em estrondoso volume, de modo que todos sabiam o momento em que a preparava. Tornou-se exímio artesão e como o milho abundante era de propriedade de Felizardo Jacinto, este ficava com praticamente toda a produção de dez litros dia, ressarcindo Francelino Alves com duas garrafas por semana.

A receita do comerciante João Rodrigues Sobrinho era mais ou menos assim: moia-se o milho fazendo-o tornar-se fubá.

Misturava-se esse fubá com um líquido preparado a base de cana-de-açúcar moída e deixava-se aquela mistura descansar ao ar livre até virar uma fétida fermentação.

Em um recipiente com oito litros de garapa da cana colocava-se a substância fermentada deixando-a descansar por algumas horas.

Nesse recipiente havia um furo a altura de dois litros e por ali o líquido se dirigia até um alambique improvisado, que mais tarde tornou-se um belo alambique vindo da capital.

Aquecia-se então, com fogo de lenha nobre a uma temperatura de 90ºC (o termômetro também veio da capital a mando de Felizardo Jacinto), e a substância era evaporada num espiral de cobre com água até que toda substância liquida se tornasse cachaça da boa.

Todo esse procedimento levava uma jornada.

Felizardo Jacinto tornou-se então, além de grande fazendeiro, comerciante de aguardente renomado, com fregueses que vinham de várias regiões do estado em busca desse néctar de milho produzido por seu serviçal extremamente competente nesse ramo, Francelino Alves.

Aos poucos Francelino deixava de trabalhar nas plantações e se dedicava integralmente ao preparo da caninha nobre. Nenhum dos outros empregados da fazenda que tentaram produzí-la obtiveram tanto êxito na textura do líquido quanto Francelino Alves.

E assim, em meio às intempéries do cotidiano, surpresas do destino e toda sorte de fatos, o casal das Neves Alves vivia feliz. Tinham algo para comer, pois trabalhavam juntos, coisa que Francelino Alves nunca havia feito nem imaginado.

Pensava, anteriormente ao dia em que conheceu Maria das Neves, que seu destino era a solidão do copo de aguardente e que vagaria sem compromisso com a vida até que a morte o seduzisse, o beijasse e o levasse sabe-se lá para onde.

Agora a realidade se mostrava diferente. Era homem pai de família e, exceto o vício do álcool que lhe carcomia, mostrava-se preocupado com o conforto que podia proporcionar a sua amada e ao seu herdeiro que não tardaria a chegar.

Havia um pomar na propriedade, de modo que frutas da época nunca faltavam. Na colheita de milho preparavam toda espécie de alimento que se podia produzir com os tais grãos.

Numa noite, depois de comerem cinco abacates Maria das Neves quase abortou, pois o peso dos abacates na sua pança de sete meses causava-lhe dores inexprimíveis. Era uma cólica intensa e no desespero de Francelino Alves este lhe enfiou o dedo indicador em sua goela e a fez vomitar diversas vezes aquele barro verde que a possuía.

O nono mês inevitavelmente chegou. O proprietário da fazenda, o velho Felizardo Jacinto, num ato de benevolência extrema, tanto que sua esposa Marieta nunca entendeu, já que o velho era de uma maldade tremenda, sanguinário com seus inimigos e brutal com seus vassalos, e sempre o interrogou até seus últimos dias naquela terra pelo ato de bondade para com dois serviçais sem expressão, fadados ao destino cruel de uma pobreza total, cedeu-lhes um cavalo de sua propriedade para que Francelino Alves conduzisse à parteira mais próxima sua esposa.

Se tivesse êxito, o pai se comprometera a tornar seu filho ou filha, mais um serviçal de Felizardo Jacinto.

Porém, meses depois após o nascimento do filho de Maria das Neves, numa tarde quente de verão, com a temperatura beirando os 40ºC, Felizardo Jacinto teve uma morte instantânea provocada não pelas cascavéis de sua propriedade, mas por choque anafilático ou congestão, pois comera carne de ovelha, feijão preto, bebera vinho tinto e, logo em seguida entrou as margens de um riacho em suas terras, que corria atrás da casa grande, com o intuito de saciar o calor demasiado.

Foi fatal. Seu corpo foi encontrado três horas depois a quinze metros do local onde entrara, submerso, encostado num toco podre, sem lábios e olhos, provavelmente comidos pelos lambaris que habitavam o riacho.

Marieta, então, rica e solitária vendeu sua propriedade para um libanês, que acabara de chegar à região com suas três esposas e diversos filhos, chamado Ali Mohamed, mulçumano abstêmio e, uma das suas primeiras ordens foi a de destruir a produção de aguardente, pois dizia que Alá não permitiria tamanha heresia e não queria que sua alma queimasse no mármore do inferno por toda a eternidade, sendo produtor de algo que causasse degradação aos consumidores do produto, ficando apenas com a plantação de milho e as cabeças de gado.

A viúva, tentando resgatar a memória, como que num sonho de infância, mudou-se para o litoral sul, onde passava o dia todo fazendo crochê, contanto estórias inverossímeis e jogando damas com os velhinhos queimados pelo sol.

Sabiam-se, seus contemporâneos, que sofria de hirsutismo e tornava-se atração onde quer que passasse.

Após esse fato, Francelino Alves desocupado, sua esposa fatigada pela colheita e a temer os ratos e os animais peçonhentos com os quais convivia e com a criança fazendo três meses de vida, mudaram-se para a cidade.

Marciano James
Enviado por Marciano James em 16/07/2009
Reeditado em 11/04/2012
Código do texto: T1702410
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