III - Mudaram-se para a cidade

Miguel das Neves Alves veio ao mundo em primeiro de janeiro de mil novecentos e sessenta e nove numa noite quente de verão.

Nesta época do ano as chuvas eram quase freqüentes naquela região e, Maria das Neves e seu marido enfrentaram uma forte tempestade torrencial com raios e trovões intensos para chegarem ao local do parto.

Começou a sentir cólica logo após sua primeira refeição e achou que pela alta temperatura a comida ingerida havia se estragado. Porém, quando sentiu escorrer pelas pernas um líquido quente, que no primeiro momento pensou ser mijo, não teve dúvidas: ia parir.

Como nascera fraca, levemente desnutrida e nem mesmo chorara, a criança fora batizada na capela do povoado, minutos após o parto para que, se não resistisse à viagem de volta, pelo batismo garantiria um lugar celestial.

O padre local sempre abria essas exceções para batizados urgentes. Mas o recém-nascido resistiu muito bem. Não chorou, mas respirava profundamente.

Veio toda viagem com a boca colada ao peito da mãe, sugando-lhe o leite ralo que esta possuía.

A chuva deu-lhes uma trégua e chegaram todos sorridentes e estupefados com a nova criatura à casa da colônia.

A vida na cidade não foi fácil como já não era no campo. Francelino Alves começou a trabalhar na construção civil, pois a cidade em formação exigia serventes de pedreiro para erguer as novas moradias e os prédios comerciais.

Repartições públicas, fórum, delegacia, cadeia, prefeitura, igreja, escola, todo tipo de construção Francelino Alves participava e obtinha parcos rendimentos que colaboravam no sustento da família. Todavia, seu vício pela bebida era notório.

Tremia tal qual um portador de Mal de Parkinson pelas manhãs, continuava vomitando bile e só um ou dois tragos de aguardente o fazia renascer.

Gastava quase metade do mirrado salário semanal nos botecos da cidade e se não fosse pelo trabalho de Maria das Neves, que agora era faxineira da escola; pouco lhes restava no final das contas.

Como não tinha com quem deixar a criança, Maria das Neves levava Miguel das Neves Alves para o colégio no qual labutava.

E foi lá, em meio ao grande pátio, a biblioteca, a quadra e o laboratório rudimentar que essa criança cresceu.

O menino apreciava jogos com bola e corridas, mas também ficava horas na biblioteca lendo contos infantis e livros de história e geografia.

Aprendeu a ler sozinho aos cinco anos, para espanto dos docentes locais.

Foi nessa época que contraiu bronquite asmática e quase faleceu por falta de oxigênio.

Sua mãe desesperada o levou a uma benzedeira, uma velha corcunda com uma verruga enorme no canto da boca, nariz largo e pouco cabelo na cabeça, e ela, a observar o estado deplorável da criança, achou melhor irem até uma farmácia para o menino fazer inalação com broncodilatadores.

Sobreviveu.

Aos sete anos sabia de cor o nome das capitais de todos os países que existiam naquela época.

Quando algum conhecedor lhe perguntava de supetão:

“Albânia?” Ele sem pestanejar respondia: “Capital: Tirana!”

“Honduras? -Tegucigalpa! - Filipinas? Capital Manilla!”

Isso lhe deixava orgulhoso de si.

Conhecia também as bandeiras dos países sul-americanos, europeus, africanos e dos estados brasileiros.

Quis elaborar uma bandeira para o município dos Miguéis, que até então não possuía nenhuma, pois as autoridades haviam esquecido disso, mas logo o barraram por ser apenas uma criança e encomendaram uma bandeira na capital a preço exorbitante e que contivesse as cores: preto, verde, branco e vermelho.

Foi também nessa época que durante uma pelada de futebol na rua, a bola, chutada por ele caiu num terreno cercado por um enorme muro. Outras crianças que participavam do joguinho obrigaram Miguel das Neves Alves a buscá-la.

Trepou no muro com a ajuda da molecada, ralou-se todo na subida e saltou ao outro lado. Pegando a bola, empilhou algumas madeiras no grande paredão de tijolo e cimento, trepou ralando novamente e saltou para a rua sob gritos de comemoração.

Na manhã seguinte estava internado num hospital comunitário rodeado de pernilongos com uma infecção óssea. Suas canelas estavam azuis de tão pretas e bolas de pus brotavam nas solas de seus pés.

O médico disse que o muro era muito alto e o impacto com o solo causara tal infecção.

Se necrosasse as canelas, teria que amputar-lhe as duas na inserção dos joelhos.

Sobreviveu à base de arnica e ungüentos de confrei (ervas indígenas cicatrizantes, muito apreciadas pela sua mãe).

Em cerca de cinco semanas já estava a correr pelo pátio da escola atrás da molecada.

Sempre que as temperaturas oscilavam sua bronquite asmática emanava e, assim, passava alguns dias em casa, alguns dias internado. Todos no ambulatório do hospital comunitário já o conheciam.

Desde os cinco anos sofria de enurese noturna e isto o acompanhou até os treze anos de idade. Era um desconforto para ele urinar em si mesmo sempre que dormia e, corriqueiramente chegava cheirando mijo na escola.

Quando o calor batia, por volta das dez da manhã, o seu odor gerava tremendo mal estar em quem, estando por perto, o inalava involuntariamente.

Miguel das Neves Alves não era e nunca foi um hipocondríaco.

As fatalidades do destino que eram causadoras de tantas patologias naquele corpo franzino e raquítico.

Sempre que brincava com bola quebrava algum dedo. Vivia enfaixado ou engessado. As crianças maiores e mais fortes e até mesmo as menores e com ar de fragilidade zombavam dele.

Para elas, Miguel era algo insignificante, um nada, uma doença em forma de gente e que não tinha a mínima chance de vencer na vida. Mas Miguel, se sentindo rejeitado, apegava-se mais e mais aos livros.

As meninas afirmavam que ele tinha um jeito misantropo e algumas até se identificavam com ele.

Contavam-lhe segredinhos e diziam quem eram os bonitinhos do colégio, quem elas sentiam desejo de conquistar.

Sabiam que não contaria para ninguém. Miguel ouvia tudo pacientemente e emitia algumas opiniões breves.

Miguel das Neves Alves não era misantropo, também não era atraente.

Era muito magro, tinha cerca de um metro e setenta aos treze anos e possuía muitas espinhas, acnes enormes em sua cara seca.

Brotavam freqüentemente pus e sangue escuro de seu rosto e, quando isso estava a ocorrer, gerava repugnância por parte de outras pessoas. Suas costas também possuíam espinhas internas enormes como furúnculos em formação constante.

E foi nessa mesma época, em que tinha apenas treze anos de idade que, após a eliminação de seu time de basquete num campeonato escolar, depois de haver quebrado dois dedos durante a partida e ter sentido a pressão baixar no intervalo do jogo; chegando em casa percebeu seu corpo coçar por inteiro.

Sentiu um leve desespero, pois já se acostumara com intempéries patológicas e quando se olhou no espelho estava coberto por uma catapora avassaladora que até hoje nenhum médico daquela região pôde rever.

Parecia que seu corpo fosse derreter em pus.

Desde a sola do pé até o couro cabeludo, tudo. Na garganta cresceram bolas de leucócitos, células de tecidos em degeneração, hemácias e micróbios, de modo que não podia ingerir nada.

Até o ar que entrava involuntariamente pelo seu corpo doía na passagem pelas vias respiratórias.

Sobreviveu. Também catapora não vai matando assim!

As maiores seqüelas foram manchas pelo corpo causadas pelas cicatrizes ressecadas e uma sequidão corpórea jamais vista, pois, ficara duas semanas sem comer, apenas molhando os lábios em pano úmido e tomando dois banhos mornos diários.

Sua mãe com toda a paciência cuidava muito bem dele dando-lhe tais banhos e ministrando panos úmidos na sua boca ressequida.

Quanto aos dois dedos quebrados, foram calcificados sem reparo, pois o médico disse que se executasse o procedimento normal às fraturas, o gesso poderia necrosar seu braço.

Durante toda a vida teve lembranças desse fato, já que seus dedos indicador e médio da mão esquerda ficaram tortos e um pouco mais grossos que os demais.

Nesse período de clausura leu muitos livros de filosofia e contos que sua mãe recolhia na biblioteca escolar e lhe trazia com boa vontade.

Narrativas banais e textos de Sócrates, Plutarco e Nietzsche passearam pelos seus olhos constantemente umidecidos.

Foi nesse mesmo período que descobriu a poesia de Carlos Drummond de Andrade, Vinícius de Moraes e Maiakovski.

Encantou-se pela vida de Alexandre, César e Sócrates.

Descobrira que, o mesmo fora condenado a pena de morte pela justiça por fazer jovens gregos pensarem, a questionarem as coisas do mundo.

Trabalhava em suas mentes o conceito de ética e moral com o intuito do engrandecimento da sociedade ateniense.

E por tudo isso foi julgado e condenado.

Sua acusação: corromper a juventude.

Aí pensou:

“Como será bom corromper a juventude, instigando-os a pensar! Será que serei merecedor de um cálice de cicuta se nos dias atuais conseguir provocar isso?”

“Quero ser professor!

Quero trabalhar conceitos nobres nas mentes das pessoas”.

Miguel das Neves Alves sempre teve amor pelos livros.

Gostava de manuseá-los. Apreciava o cheiro que emanava do papel envelhecido. Criava universos psicodélicos em sua mente por intermédio dos livros.

Era como se um bom livro fosse para ele uma tragada de ópio ou coisa parecida.

Ficava estupefato, entorpecido pela leitura.

Marciano James
Enviado por Marciano James em 15/07/2009
Reeditado em 11/04/2012
Código do texto: T1700635
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