IV - Ficava estupefato, entorpecido pela leitura

Francelino Alves, o pai, se tornara escravo da bebida.

Não mais conseguia trabalhar, pois não tinha força nos braços e nas pernas para trabalhos braçais intensos.

Pelas manhãs, além do hábito de vomitar bile começou a visualizar manchas de sangue negro na substância expelida.

A esposa, toda parcimoniosa e de grande benevolência com o trapo de esposo, tentara de tudo para separá-lo da cachaça.

O levou ao padre para que este expulsasse o demônio (ela achava que ele estava possuído) que o dominava havia anos.

Mas não sucedia demônio nenhum. Levou-o a diversos cultos religiosos para que a luz divina o iluminasse e o desprendesse da bebida.

As crises de abstinência eram terríveis, sendo que às vezes a própria Maria das Neves ia até o botequim velozmente buscar um pouco de caninha para que suas dores estomacais cessassem.

Numa terça feira de agosto, em meados dos anos oitenta, Francelino Alves não acordou.

Não tremeu. Não vomitou bile alguma. Muito menos sangue negro.

Havia partido desse planeta suavemente durante a noite em um sono talvez profundo.

O funeral foi simples. Apenas esposa e filho o velavam.

Alguns amigos de boteco e transeuntes, peões da construção civil, foram chegando aos poucos, passavam em frente ao cadáver pálido, se benziam com um sinal peculiar e deixavam o local.

O padre nem apareceu, pois havia viajado naquela mesma noite para uma cidadela próxima para ministrar uma palestra sobre o pecado contra a castidade, já que naquela região muitas meninas de doze, treze anos já se apresentavam grávidas aos pais.

Com isso, criavam-se famílias desestruturadas, crianças crescendo sem a figura paterna, sendo geradas por meio de acasalamentos esporádicos e sempre sendo criadas pelos avós maternos. Isso gerava um constrangimento por parte das autoridades locais que determinaram, por meio de reuniões que quase sempre não levavam a nada, que o método contraceptivo mais barato para o governo era o sermão do padre.

Usando os dez mandamentos, com sorte saneariam tal dilema.

Abelardo Mota pela vasta experiência em sermões foi escolhido para ministrar essa palestra aos jovens e aos prematuros pais.

Miguel das Neves Alves até então nunca havia tido contato com a morte.

Poucas pessoas haviam morrido na Cidade dos Miguéis, nenhuma possuía parentesco com ele, o cemitério ainda estava em fase de acabamento, suspeitaram-se as autoridades, de superfaturamento em sua construção e a justiça parou a obra por mais de cinco anos.

Quem morreu nesse período foi enterrado no quintal da própria casa.

Mas, como as obras estavam nos finalmentes, a prefeitura pressionada pela população, interviu junto ao poder judiciário e conseguiu liberação para a estréia do local onde se enterram os mortos.

Quando o padre retornou a cidade e ficou sabendo que o cemitério tinha sido inaugurado, chorou copiosamente.

Não pela morte de um bêbado com cirrose hepática que todos na cidade conheciam, mas por sempre alimentar em seus pensamentos que ele, o padre velho e cansado, morreria logo e inauguraria o cemitério com honras e glórias.

Miguel das Neves Alves formulava em sua mente um desejo de conhecer o mundo. Ou ao menos a região que habitava.

Conhecer todo o percurso daquele extenso e largo rio artificial, suas matas ribeirinhas ou o que restara delas.

Porém agora, sua mãe se encontrava sem par.

Mesmo que o falecido nunca se mostrasse presente, o amor dos dois era algo sólido.

Miguel então, se sentiu responsável pela mãe e sucumbiu seu desejo de partir daquela localidade.

O primeiro contato com a morte o fez ter profundas reflexões sobre a existência humana.

Sabia que, todo ser em sua existência sofre algum tipo de depreciação, todavia, se faz necessário marcar tal existência de modo que haja perpetuação da alma.

Quando se encontrava com algum livro em mãos, fosse Kafka, Carlos Drummond de Andrade ou Monteiro Lobato, Fernando Pessoa, Mario Quintana e Orígenes Lessa.

O poema “O bicho” de Manuel Bandeira foi um marco reflexivo em seu período escolar. Obteve, de maneira rudimentar, a formação do conceito de “exclusão” dentro da sociedade. Seu coração pulsou forte, sentiu-se revoltado.

Sabia que de alguma forma, esses escritores não estavam mortos, não jaziam nas profundezas de uma cova rasa, mas estavam presentes na vida das pessoas.

Faziam-se ouvir, mesmo depois da ausência de matéria corpórea e conseqüentemente da transcendência a outro plano.

Começou a entender então que a alma passa a ser imortal à medida que causa influência na vida das pessoas nos giros e giros desse surrado planeta.

“Sócrates vive ainda nos tempos atuais”, afirmou consigo.

“Sua missão não terminou naquele cálice de cicuta, pelo contrário, o homem contemporâneo necessita ainda mais trabalhar sua evolução moral, sua educação evolutiva e sua perpetuação diante de uma sociedade antropofágica que se fortalece pelo canibalismo de almas e, muitas almas que não tiveram astúcia de se perpetuar deixaram de existir como algo extremamente efêmero diante da imensidão do tempo”.

“Passado e futuro são grandezas inconcebíveis para a maioria das almas, acham que a vida é limitada apenas a sua mera existência e que tudo acaba no momento em que deixam de existir materialmente”.

“Uma alma, mesmo perfunctória, pode deixar um legado útil e imprescindível em prol da humanidade. Essa mesma alma se auspiciosa for não temerá se perpetuar, não obstante, necessita perpetuar-se, possui interesses superiores à coletividade das almas curtas, não curtas no sentido de tempo, mas no sentido de limitação de esforço, ao contrário, que ocasione geração de recursos e produção, algo que realmente prevaleça sobre o tempo e, deste modo gere imortalidade”.

Pensou em Lutero e em sua ideologia não limitada apenas à Reforma, mas na idéia de que o pagamento do pecado é a morte e somente pela redenção, pelo encontro com Deus na vida terrena é que chegaremos à vida eterna, em companhia do Pai celestial.

“O desprendimento corpóreo, o encontro com o Senhor Criador e o modo como conduzimos a existência materializada, são de vital importância para evoluirmos espiritualmente, e essa evolução possa então, produzir um legado de pensamentos, idéias, ideais e atitudes para que marquem definitivamente toda uma existência e nos perpetue”.

Nessa mesma época, o filho mais novo do libanês Ali Mohamed chamado Ali Adi Mohamed, um apaixonado pela sétima arte, investiu parte de suas economias em algo que mudaria o cotidiano e o entretenimento da ainda parca população da Cidade dos Miguéis.

Um cine teatro pequeno e aconchegante tornou-se o grande atrativo cultural que agitava o cotidiano noturno e as tardes de domingo dos miguelenses.

Apreciavam filmes antigos em preto e branco, documentários familiares de gravação amadora, registros de imagens aleatórias, lutas-livre, boxe e, no palco de proporções reduzidas, podiam presenciar pequenas companhias de balé, dançarinas performáticas, e todo tipo de expressão corporal e cultural da cidadela e de toda a região margeada pelo grande rio e posteriormente todo o estado e suas companhias teatrais amadoras e dançantes apresentavam-se no pequeno palco do Cine São Miguel.

As noites quentes da pequena Cidade dos Miguéis ganhavam algo inusitado e surpreendente aos olhos da população agora estupefata e alegremente contagiada pelas atrações noturnas que iniciavam na quarta feira de todas as semanas que sucederam a sua inauguração e matinês aos domingos para as crianças verem reproduções caseiras de seriados japoneses e pequenas peças infantis.

Aflorava nas mentes do ignaro povo miguelense uma forma atrativa e alternativa de entretenimento.

As noites de espetáculos eram esperadas ansiosamente, proporcionais a espera que cultivavam pelos comícios em época eleitoral, pelos pequenos circos que por ali passavam e se instalavam brevemente sempre no mesmo terreno de grandes proporções e inutilizado durante a maior parte do ano.

Os pequenos circos eram, de certo modo, sempre bem vistos e aguardados ansiosamente, já que se fazia notória a necessidade de diversão, a cidadela era muito quente, e dificilmente conseguia-se ficar dentro das casas nas noites calorosas e nos tórridos finais de semana.

As crianças tinham a oportunidade de ter contato com espécies animais diferentes ao seu convívio, surpreendiam juntamente com os adultos pelos truques do mágico decadente, se afligiam com o motoqueiro dentro de um globo girando insanamente com sua motocicleta.

Os papais se deliciavam com a natureza generosa da ajudante de palco e lhes causava tensão e receio no momento em que ela se preparava para girar em frente ao atirador de facas. As mamães observavam atentamente a tudo e algumas suspiravam pelos braços e abdomens dos jovens trapezistas.

Com a inauguração do cine teatro uma nova fonte de espetáculos se fez presente e se acoplou inconscientemente aos hábitos da população local.

Isso despertou, subjetivamente, nas pessoas freqüentadoras dos espetáculos uma cultura mais evoluída e persuasiva, o que de certa forma foi de grande relevância na evolução da cidadela.

Quem se recorda do primeiro filme na inauguração do recinto cinematográfico tem um sentimento de nostalgia nobre nas palavras e no olhar.

O filme era “E o vento levou”, escolhido pela esposa do prefeito e, aplaudido de pé ao final da sessão e de várias outras após a primeira estréia.

A população ia às lágrimas e se emocionava incondicionalmente com as belas imagens reproduzidas num telão de pano quase branco e de pequena proporção.

Surgiram, então, bandas musicais que se apresentavam todas as manhãs de domingo e tardes de sábado cantando músicas de conhecimento popular, pequenas escolas de dança se formavam semanalmente e se apresentavam todas as sextas feiras no começo da noite, partidas de futebol das copas anteriores eram exibidas com gritos de gol ensandecidos e passiveis de aplausos no final da partida quando a vitória era do escrete canarinho.

Nesse período peculiar, o índice de freqüência às missas de sábado e domingo caiu vertinosamente; o padre, então, sentindo-se obsoleto e rejeitado, porém consciente do papel exercido durante anos, vivia dias de depressão intensa.

Tornou-se adepto de doses cavalares de cachaça logo após o almoço e praticamente embriagava-se todo o santo dia.

Um fato relevante a esse período que devo narrar sem delongas foi o fatídico incêndio que assolou o cine teatro sete anos após sua inauguração.

Havia estreado na noite anterior ao fato o filme “As chamas da vingança”, uma estranha história de uma jovem menina de cabelos dourados que ateava fogo nos objetos apenas se concentrando e dirigindo o olhar ao que queria destruir e; naquela manhã de sábado extremamente quente a população pode detectar visualmente uma enorme fumaça negra emanada do centro da cidadela.

O cinema sucumbia velozmente às chamas gigantescas, enormes labaredas emergiam do interior do recinto até que o teto se fez cair ao chão num tenebroso estrondo. As colunas de madeira oscilavam ao vento que intensificava ainda mais as chamas.

Os assentos recheados de espuma e cobertos por uma napa avermelhada se tornaram alimento nutritivo para o fogaréu incandescente.

As lojas ao redor estavam ameaçadas pelas chamas e o que se viu então foram comerciantes aflitos colocando todas as mercadorias nas ruas, outros com mangueiras d’água em punho tentando diminuir a intensidade do incêndio.

Não havia corpo de bombeiros na pequena cidade e ainda hoje não há, o que acarretou transtornos aos comerciantes locais, já que fôra designado um carro da corporação militar responsável por incêndios na região, vindo de Barreiras, a dezenas de quilômetros da Cidade dos Miguéis.

Quando os bombeiros chegaram ao local, cerca de uma hora e quarenta minutos após o inicio do incêndio só restavam cinzas e paredes negras.

Todo o interior do prédio fora ao chão e destruira-se frente ao fogo avassalador.

Crianças e adultos iam às lágrimas ao ver a cena inacreditável, inverossímil como filmes de ficção. Parecia, aos olhos do povo miguelense, um filme real.

Aquilo acabaria bem e todos iriam para as suas casas.

Voltariam ao local à noite para mais uma sessão de sonhos e espetáculos artísticos.

Foi o último espetáculo do local. O derradeiro e fatídico show que ninguém imaginava assistir. Houve luto decretado pelo poder público local por dois dias.

Apesar de não haver vítimas, nem mortos, nem feridos, o cinema era algo incorporado à vida dos cidadãos daquela cidade minguada.

Crianças, adultos, velhos, visitantes que por ali pernoitavam, todos tinham o hábito de freqüentar aquele local, outrora cheio de expectadores e agora recheado de cinza negra e fumaça quente.

Um curto-circuito proveniente da fiação ou um cigarro esquecido aceso dentro do recinto foram as supostas causas detectadas para o incêndio.

Miguel das Neves Alves sentira a perda do cine-teatro e expressava sua tristeza no olhar ou em suspiros profundos quando se via a lembrar do fato.

Em meio a tudo isso, a vida continuava morosamente na Cidade dos Miguéis.

Marciano James
Enviado por Marciano James em 15/07/2009
Reeditado em 11/04/2012
Código do texto: T1700630
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