A Identidade Cultural do Vampiro na Literatura dos Séculos XIX, XX e XXI
RESUMO
O ensaio visa, por meio da teoria sobre identidade cultural proposta por Stuart Hall, apresentar um panorama da identidade cultural do vampiro dos séculos XIX, XX e XXI, com as obras Drácula, o vampiro da noite, de Bram Stoker, Entrevista com o Vampiro, de Anne Rice, e Crepúsculo, de Stephenie Meyer.
PALAVRAS-CHAVE: Identidade Cultural, Stuart Hall, Vampiro.
ABSTRACT
By means of theory about cultural identity proposed by Stuart Hall, this essay aims at presenting a panorama of vampire’s cultural identity of the centuries XIX, XX and XXI, with the works Drácula, o vampiro da noite [Dracula, the night’s vampire], by Bram Stoker, Entrevista com o Vampiro [Interview with the Vampire], by Anne Rice, and Crepúsculo [Twilight], by Stephenie Meyer.
KEYWORDS: Cultural Identity, Stuart Hall, Vampire.
Atualmente, uma série de estudos tem sido realizada para entender o que é identidade e como esta passa por mutações com o correr dos séculos. Pode-se dizer que identidade seria um conjunto de caracteres peculiares ao indivíduo, e neste conjunto acrescentar-se-ia toda a bagagem social, cultural, ideológica, etc. Qualquer pessoa, a partir do nascimento, já é destinada a desenvolver um papel identitário e isso ocorre não somente no mundo real, como também na ficção.
Para Stuart Hall (2003, p.8-11), a identidade cultural do indivíduo surge do mesmo pertencer a uma série de culturas, que englobam etnia, raça, língua, religião e nacionalidade, sendo passível de três formas de concepção: a primeira faz referência ao sujeito do Iluminismo, marcado como um indivíduo centrado, racional e individualista; a segunda seria a do sujeito sociológico, que surge no século XIX e reflete o crescente grau de complexidade que se insere no mundo moderno e a necessidade das relações de alteridade para o entendimento do núcleo interior de cada ser; e a terceira concepção, seria a do sujeito pós-moderno, marcado como um sujeito sem identidade fixa, fragmentado e em constante alternância com os sistemas culturais.
A figura do vampiro, presente na literatura, oferece um panorama para a observação deste fenômeno de modificações na estrutura da identidade cultural ao longo dos séculos XIX, XX e XXI, por refletir e personificar, de forma significativa, anseios, pretensões e temores do homem frente ao seu lado mais obscuro e a tudo que possa lhe ter sido negado, em detrimento de instituições sociais moralizantes de cada época e nos processos de aquisição de novos conhecimentos e alterações no próprio cerne das estruturas sociais às quais pertence.
Para tanto, o ensaio pretende fundamentar a teoria da identidade cultural, oferecida por Stuart Hall, nos romances: Drácula, o vampiro da Noite, de Bram Stoker; Entrevista com o Vampiro, de Anne Rice; e Crepúsculo, de Stephenie Meyer.
O VAMPIRO DO SÉCULO XIX: CONDE DRÁCULA
Antes que Bram Stoker (1847-1912) pudesse compor o personagem que o tornaria célebre, dois outros autores literários já tinham desenvolvido narrativas com a figura folclórica do vampiro, o primeiro foi John Polidori , e o segundo, Sheridan Le Fanu . Mas, nenhum dos dois, deixou tão marcado um perfil de personagem que definiria a imagem do vampiro durante tanto tempo.
Bram Stoker tomou a iniciativa de escrever Drácula, o vampiro da noite após um pesadelo, no qual via um vampiro se levantar do túmulo. Isto o motivou a pesquisar acontecimentos sobrenaturais, por meio de leituras e estudos sobre as lendas da Transilvânia. O livro foi publicado em 1897 e deixou a crítica dividida: alguns diziam se tratar de mais uma história de horror do período, e outros o consideravam como um clássico com requintes de crueldade e sensualidade. A obra retrata a história de um jovem advogado, contratado para resolver assuntos imobiliários com um Conde, de nome Drácula, na Transilvânia; o Conde, na realidade, é um vampiro que, com o desenrolar da narrativa, passa a ameaçar todas as pessoas que convivem com o rapaz; para combatê-lo, o jovem organiza um grupo de cavalheiros de caráter ilibado que, ao final, derrotam o ser monstruoso.
No instante em que é introduzido no romance, o Conde Drácula é descrito como um homem de maneiras requintadas e costumes excêntricos. Polido, bem educado e com espírito pesquisador, mas extremamente solitário. Quando se vê acuado, foge. Geralmente, procura evitar demonstrações de força física, embora o romance traga a informação que ele teria a força de aproximadamente dez homens robustos. As demonstrações de violência da sua parte não são exatamente aterrorizantes, e sim resultado da busca por alimento e de uma sexualidade intensa, sendo justamente a sensualidade com que envolve as pessoas à sua volta a sua principal característica. O Conde também possui capacidade de transmutação, podendo envelhecer ou rejuvenescer, transformar-se em animais e assumir a forma de uma densa névoa. No momento de sua morte, sua aparência vingativa dissolve-se numa expressão pacífica.
Segundo Sérgio Luiz Prado Bellei:
"Drácula representa uma poderosa identidade monstruosa a ser negada a todo custo porque constitui uma ameaça ao mundo civilizado onde o vampiro tenta se instalar. Seu objetivo é sugar o sangue de jovens mulheres inglesas, o que resulta na disseminação do terror em um mundo masculino aparentemente pouco seguro em seu relacionamento com o feminino". (BELLEI, 2000, p. 33)
Dessa representação de afronta a um mundo civilizado e do relacionamento com a figura da mulher ressalta que a interpretação de uma obra e principalmente, a composição de uma personagem deve levar em conta os aspectos históricos, sociais e culturais que ocorrem na época; no caso em questão, o século XIX, onde a Revolução Industrial e a inserção de uma nova identidade cultural (a feminina) surgiam.
Ainda segundo Sérgio Luiz Prado Bellei (2000, p. 18-21), a figura do monstro existente na segunda metade do século XIX, mesmo não tendo voz narrativa, goza de uma poderosa autonomia ao se contextualizar com o momento histórico e a capacidade que possui para refletir o sentimento profundo de insegurança individual e também de questionamento cultural de valores pertinentes à sua época. O personagem gótico do período é responsável pela duplicidade do homem, dividido entre ele mesmo e com o outro. Fato que se aplica claramente ao personagem do vampiro de Bram Stoker, dividido entre a segurança do mundo medieval e seu solo-nativo na Transilvânia (a cultura já arraigada) e o desejo de pertencer a uma nova sociedade cultural que se constrói (no caso, sua mudança para a cosmopolita Londres); bem como a relação que estabelece com o outro, como muitas vezes ocorre durante a obra, em que o Conde prefere fugir a enfrentar seres relativamente inferiores a ele, e a questão da sexualidade constante no texto.
Isso ressalta a noção de sujeito sociológico, proposta por Stuart Hall (2003, p. 8-9), em que o individuo se encontra diante da complexidade de um novo mundo e novas mentalidades, que se constroem à sua volta, e a relação que estabelece com outras pessoas para mediação e intercambiação dos laços culturais. Portanto, o indivíduo do século XIX, no personagem do vampiro, busca encontrar um lugar dentro deste mundo e ao mesmo tempo lidar com as relações de alteridade, como salienta novamente Sérgio Luiz Prado Bellei:
"Drácula representa formas múltiplas de alteridade, entre elas a alteridade sexual enquanto aquele desejo inconsciente, perverso e inaceitável para qualquer estrutura social e, em particular, para a sociedade vitoriana inglesa. Mas Drácula é ainda um outro cultural, ou seja um descendente “de uma época histórica dominada pela superstição [...]”. E é também e principalmente o outro social, ou seja, a representação “de todas as forças sociais que pairavam ameaçadoras do outro lado das fronteiras da experiência vitoriana e burguesa”. (BELLEI, 2000, p. 43).
Portanto, ainda fazendo referência ao pensamento de Sérgio Luiz Prado Bellei (2000, p. 43), o vampiro é um ser de fronteira, reprimido e oprimido, pelo desejo de construir uma nova identidade no mundo que se apresenta e rechaçado na tentativa desastrosa do estabelecimento de relações com o outro, o que acarreta os sentimentos de inveja, possessão e ódio que acometem a figura de Drácula.
É o vampiro do século XIX a personificação concreta dos temores humanos relativos ao relacionamento social, tais como: o pertencer a um grupo sob qualquer preço, o entusiasmo e o receio frente ao mundo industrializado que se configura diante do indivíduo, a exposição e o posicionamento sexual exacerbado num desejo intenso e incontrolável, o medo da solidão frente ao desconhecido e ao outro que não pode compreender uma individualidade particularizada ao extremo e o próprio desejo de enclausuramento, numa tentativa de fugir da realidade e manter-se a salvo das intensas mudanças que atingem tudo e todos. Por fim, como afirma J. Gordon Melton:
"Stoker quebrou o convencionalismo ao trazer o mundo gótico para o contemporâneo familiar de seus leitores, soltando o mal de uma terra estranha sobre uma família britânica convencional. Nem os poderes empossados, um forte herói ou a moderna ciência puderam diminuir, muito menos impedir, a disseminação daquele mal. Não fosse a intervenção do devoto da sabedoria não-convencional e sobrenatural, o mal teria se espalhado impunemente pelo centro do mundo civilizado e incrédulo". (MELTON, 2003, p.356)
Essa quebra de convencionalismo, bem como a árdua extirpação de todo o mal na figura de Drácula, personificando em apenas um ser todo o mal que acomete a humanidade, já era o prenúncio do que aconteceria com as imagens identitárias na modernidade.
O VAMPIRO DO SÉCULO XX: LESTAT DE LIONCOURT
Lestat de Lioncourt é o personagem central de uma série de romances intitulados Crônicas Vampirescas, de autoria de Anne Rice (1941- ), e surgiu pela primeira vez no livro de abertura da série, Entrevista com o Vampiro, escrito em 1976. Segundo J. Gordon Melton (2003, p. 269), o personagem de Lestat se tornou, na atualidade, o vampiro mais importante depois de Drácula, e assim como este, tem sua vida contada através de outro vampiro, com quem conviveu, Louis de Pointe Du Lac; é por meio de Louis que se conhece o personagem de Lestat e toda a sua caracterização.
Entrevista com o Vampiro se baseia numa entrevista que Louis concede a um jovem repórter narrando todos os fatos da sua vida, principalmente a partir do momento em que é convertido em vampiro por Lestat e tudo o que vem lhe acontecer após esse episódio, até mesmo a tentativa frustrada de matar seu “criador”. Louis não consegue se fazer entender pelo repórter e, no fim, é Lestat quem sai vitorioso e exultante do fascínio que a sua condição causa aos mortais.
J. Gordon Melton apresenta a seguinte definição do personagem:
"Tinha um rosto muito expressivo, capaz de transmitir uma gama de emoções fortes ou mesmo exageradas [...]. Após alimentar-se, parecia mais normal e não tinha dificuldade em se passar por um ser humano “normal” [...]. Como todos os vampiros, sentia um aumento significativo de força na sua forma humana. [...] Tinha algumas habilidades inusitadas, força telepática e poder hipnótico, mas não podia se transformar em animais. Podia ainda se ver num espelho, mas perdeu a habilidade de se engajar no sexo normal humano e, portanto, não podia procriar. Normalmente dormia num caixão. Ateu antes de sua transformação, Lestat não tinha problemas com os símbolos sagrados ou de estar em locais consagrados." (MELTON, 2003, p. 475-476)
De acordo, ainda, com J. Gordon Melton (2003, p. 271), o romance inicial das Crônicas Vampirescas aborda com mais ênfase vários temas que são aplicados à figura do vampiro, tais como: o papel sexual do indivíduo na sociedade, a questão do vampirismo numa época ateísta, o limite da moral presente na imagem do assassino e a androginia, tema muito discutido do final dos anos 70 ao início dos 90, que afirmava que o ideal da perfeição residia na incorporação da dualidade.
Em praticamente todos os romances que abordam a questão do vampiro salienta-se, de forma abundante, a erotização que envolve o personagem, e no caso específico de Entrevista com o Vampiro, esse aspecto é ressaltado pela intensa busca que cada ser das trevas tem de encontrar um companheiro, para juntos vivenciarem a imortalidade e a sede de sangue. Em Drácula, o vampiro da noite, o personagem que dá título à obra ataca apenas mulheres, já na obra de Anne Rice percebe-se uma alusão clara à homossexualidade, em que os vampiros atacam indiscriminadamente aqueles que mais lhes despertam os seus desejos, vide o comportamento dos personagens Lestat, Louis e Armand.
A ausência de religiosidade e a contestação moralizante do indivíduo que mata para se alimentar, como no caso de Louis, que se lamenta pelo fato de que toda noite, ao sair, é certeza que um mortal perecerá, ou a diversão e sadismo que Lestat experimenta no ato de matar, são também de extrema importância para o estudo da identidade cultural do vampiro. No primeiro tópico, as intensas descobertas científicas, aliadas ao desenvolvimento das grandes metrópoles, tornou o homem ciente do seu poder de modificar o espaço em que vive e buscar respostas por si mesmo, fugindo dos dogmatismos e de explicações miraculosas para os fenômenos antes explicáveis apenas pela fé, isso faz com que novas identidades surjam no seio da civilização e que se tente justificar toda situação de conflito. No que se refere à questão moral que envolve o assassinato, pode-se fundamentar pela teoria de Stuart Hall (2003, p. 32-33), que classifica o indivíduo em quatro formas: isolado (o ser que procura a solidão ou é atingindo por ela e se coloca em contraposição a uma multidão ou metrópole desconhecida), o flaneur (o indivíduo que vagueia a contemplar “o passageiro espetáculo da metrópole”, chamado de vagabundo ou turista no mundo), a vítima anônima (a quem os fatos lhe acontecem de forma inexorável e não tem forças para enfrentá-los) e as figuras alienadas (fruto da literatura e sociologia e que tentam representar “a experiência singular da modernidade”).
Louis, na maioria das vezes, pode se encaixar no perfil do indivíduo isolado pela própria vontade e vítima anônima, como na passagem de Entrevista com o Vampiro em que salienta seu desejo em encontrar a morte de todas as formas, e esta lhe aparece, irremediavelmente, na figura de um vampiro, que finda sua vida mortal e lhe concede uma existência angustiada, a qual estava irrevogavelmente preso desde então, e a quem o ato de matar sempre será foco de contradição. O personagem central, Lestat, se adéqua à definição do sujeito errante, que vagueia através dos mundos e das eras em busca de um parceiro que possa acompanhá-lo em suas aventuras e na sua ânsia por sangue; e ao mesmo tempo, ele tenta experimentar a modernidade, ao vivenciar intensamente cada período por que transita; para isto basta constatar o início da sua trajetória como descendente de nobres falidos, na França de Luís XVI, por volta de 1760 (conforme O Vampiro Lestat, segundo volume da série) até se tornar um astro do Rock n’Roll na modernidade, e com sua música acordar a mãe de todos os vampiros, Akasha (de acordo com A rainha dos condenados, terceiro dos volumes de crônicas). Para Lestat, matar corresponde ao ritual mais prazeroso, já que na obra de Rice, embora haja clara referência às relações homossexuais, necrófilas e pedófilas, estas não se consumam, pois o vampiro só é sexualizado no sabor que experimenta com a morte da sua vítima, como afirma Eldes Ferreira Lima:
"A compulsão por prazer carnal dos vampiros é saciada e reiniciada imediatamente. Após o ataque do vampiro suas vítimas morrem e ele necessita caçar outras, deixando para trás um rastro de corpos exauridos no próprio prazer. Em casos particulares e raros, ele salva sua vítima da morte transformando-a em vampiro, entretanto, de forma semelhante ao corpo das vítimas que morreram, o corpo de outro vampiro é incapaz de lhe proporcionar prazer. A fome voluptuosa do vampiro não cessa jamais nem pode ser aplacada por algo que não seja o sangue humano". (LIMA, 2005, p. 106)
Louis, desta forma, é o protótipo do assassino solitário e vítima das circunstâncias, e Lestat, o assassino que mata tanto para saciar sua fome ininterrupta e provar o prazer, quanto para experimentar a diversidade e a novidade que é propiciada com o passar dos séculos.
Ao final, a questão de suma importância no momento de publicação da obra, a androginia, é descrita de forma singular no romance de Rice, ao sugerir o distanciamento das designações de gênero, aprisionadas à cultura e o desenvolvimento de personalidades com elementos masculinos e femininos marcantes e, ao mesmo tempo, independentes da fisiologia. Conforme relata J. Gordon Melton:
"Na prática, dada as atribuições de gênero comuns à cultura ocidental, a androginia é muitas vezes expressada por uma pessoa que adota vários atributos de expressão do sexo oposto. [...] De maior significado, porém, a androginia pode levar as pessoas a desenvolver aspectos de sua personalidade que foram no geral designadas pela cultura do sexo oposto. [...] A atual subcultura gótica assume a liderança de expressar o estilo de vida andrógino em grande parte devido a Lestat". (MELTON, 2003, p. 479)
A enfatização da natureza andrógina do personagem criado por Anne Rice se deve não apenas pelo fato de não poder copular, quanto pelo fato de seguir num mundo que traça com suas próprias regras, assimilando e incorporando a sua pessoa o que é conveniente para si. Esse caráter andrógino pode ser entendido como mais um dos fatores que atuam no processo de identidade cultural do sujeito, pois segundo Stuart Hall (2000, p. 38), mesmo que o sujeito moderno esteja sempre dividido, a tendência é vivenciar sua identidade como se ela estivesse realmente unificada dentro do seu ser, isso leva o indivíduo ao processo de “identificação”.
Ao longo da obra, não somente o caráter de duplicidade proposto pela androginia se faz presente nos personagens, como também a constante busca de cada um deles por encontrar um seu igual, um com quem se identifique com o correr dos séculos e da eternidade a que estão condenados. Os vampiros de Rice procuram seus parceiros para tentar juntar as partes que tornam o homem moderno um ser fragmentado, num desespero constante de suprimir e resolver qualquer problema e preencher o vazio individual, ver e ser visualizado pelo outro. Essa tentativa de fazer parte de uma coletividade, que se inicia no século XX, desembocará nos conflitos que atingem os personagens da pós-modernidade, da era tecnológica e cibernética.
O VAMPIRO DO SÉCULO XXI: EDWARD CULLEN
Crepúsculo, primeiro romance de autoria de Stephenie Meyer (1973- ), lançado em 2005, é considerado o livro sobre vampiros mais vendido desta primeira década dos anos 2000. A autora, assim como Bram Stoker, alega que a inspiração para a obra surgiu de um sonho no qual um vampiro se apaixonava por uma humana, mas ao mesmo tempo, com ímpetos de assassiná-la por sede de seu sangue. Desta forma é que se passa o enredo, narrado sob a perspectiva da jovem Bella Swan, a causa dos amores e tormentos enfrentados pelo vampiro Edward Cullen. A história dos encontros e desencontros que os personagens enfrentarão é perpassada por mais três volumes da série, intitulados respectivamente: Lua Nova, Eclipse e Amanhecer.
Na obra de Stephenie Meyer, o personagem Edward Cullen é caracterizado da seguinte maneira: pele clara e, se exposta à luz solar, brilhante; olhos escuros que mudam de tonalidade, conforme a fome e os sentimentos, delineados por intensas olheiras causadas pela insônia eterna; beleza notória e diferenciada; força física acentuada; reflexos bem desenvolvidos; temperamento rude e distante com relação aos mortais; não possui nenhuma repulsa ou ligação com símbolos sagrados, embora não tolere o relacionamento com lobisomens e, em conjunto com sua família, adepto de uma dieta “vegetariana” (que consiste em não se alimentar de sangue humano, mas apenas de animais). Pode-se ressaltar, ainda, na obra, a questão de que todos os vampiros apresentam dons diferenciados, que correspondem às características presentes em vida e que foram aperfeiçoadas ou acentuadas com a nova condição existencial; no caso de Edward, essas características são a velocidade e a capacidade de ler mentes.
A autora constrói dentro do texto um mundo de vampiros que se reparte em diversos clãs, organizados em seres civilizados ou nômades, que se alimentam de sangue humano ou de animais, residentes em grandes metrópoles ou à procura de caminhos para se esconder rumo às regiões nórdicas pouco ensolaradas, que aprenderam ou não a conviver pacificamente com os mortais, e capazes ou não de lidar com os seus próprios impulsos e de se relacionarem com outras criaturas, iguais ou diferentes. Declara também que o momento de transformação que sofre um vampiro é marcado por intensa agonia e que a única forma de exterminá-lo é por meio da incineração do seu corpo devidamente destroçado.
Edward Cullen se coloca no mundo dos humanos, numa típica condição de sujeito pós-moderno, que segundo David Harvey (2003, p. 53-62) corresponde às personagens que com freqüência sentem-se confusas acerca do tempo e do espaço onde se localizam e de como deveriam agir com relação a isso; na obra, pode-se exemplificar tal afirmação pela repulsa inicial do personagem em permanecer no mesmo espaço físico em que a jovem, por não saber conter suficientemente os seus impulsos e, ao mesmo tempo, a sua dificuldade em manter-se afastado de Bella. Durante a maior parte da narrativa de Crepúsculo, observa-se o embate que o vampiro trava consigo próprio e a angústia do querer e não querer, sendo que em várias ocasiões procura alertar a garota de que ela não deve confiar tão cegamente nele, pois tanto pode agir como um rapaz normal quanto como um vilão ou um assassino cruel.
A consciência de Edward, da duplicidade do seu caráter, permite a associação, também, com o sujeito pós-moderno apresentado por Stuart Hall (2000, p. 12-13), que consiste na figura do indivíduo que sabe não possuir uma identidade “fixa, essencial ou permanente” e sim:
"[...] Formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados, nos sistemas culturais que nos rodeiam. [...] O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas". (HALL, 2003, p. 13)
Portanto, é o vampiro do século XXI um indivíduo que deixou de ser apenas o antagonista (como no caso de Drácula) ou o andrógino (Lestat), para se tornar um sujeito consciente das metamorfoses por que passa e tentar se integrar à contemporaneidade da melhor forma possível, buscando soluções alternativas para se relacionar com os demais habitantes do mundo. O ser pós-moderno continua o processo de fragmentação e descentralização do “eu” iniciado no século XX, mas não busca transcender, opor-se ou definir tal situação, como atesta David Harvey (2003, p. 52-63), e sim aceitar e se espojar diante disto, como se mais nada pudesse existir daí então. Tal constatação aplica-se interinamente à figura de Edward, que vive essa situação de embate e conflito, mas de forma consciente, tentando ele próprio adaptar-se às estruturas da sociedade da qual deseja participar; conhece suas fraquezas e gradualmente, no transcorrer da narração, vai aprendendo a lidar ou não com elas.
Não se tem mais a figura do vampiro enlouquecido e disposto a atacar todas as mulheres ou daqueles que travam uma batalha moral, pró ou contra, diante da morte de suas vítimas; mas tem-se a figura de um vampiro humanizado, com características peculiares advindas da sua condição, e que deseja se integrar, viver relativamente “em paz” com as outras criaturas. O sangue humano continua a ser uma grande tentação, mas já não é a única opção disponível para a sobrevivência do vampiro na sociedade, não é mais degradante alimentar-se de animais (como Lestat pensava de Louis, em Entrevista com o Vampiro); antes é melhor dedicar-se para preservar, salvar a vida humana, seja pela defesa da amada mortal ou na escolha da profissão (no caso, o pai de Edward que era médico e já não se abalava diante de sangue, devotando sua existência eterna em fazer o bem).
Essa preocupação e o respeito pela vida humana, comuns à família de Edward e que tenta passar aos demais vampiros nômades, recai justamente na maior preocupação da pós-modernidade, segundo David Harvey (2003, p. 52-63): a alteridade.
Os personagens da obra de Stephenie Meyer estão constantemente preocupados com a questão do relacionamento com o outro, sejam eles mortais ou imortais. Dedicam-se a salvar vidas e a se interessarem pelos sentimentos que lhes são exteriores, sempre de maneira pragmática e intensa. O envolvimento amoroso do vampiro com a humana, o seu cuidado em se controlar diante da amada, não atacá-la, mesmo que para isso empregue toda a força do seu caráter é a maior comprovação que o indivíduo pós-moderno, mesmo tendo uma identidade ambígua, um “eu” fragmentado, possui um desejo maior dentro de si que é o de integração com o outro, com a sociedade, sentindo-se parte de uma cultura.
Percebe-se, por fim, de acordo com as concepções abordadas por Stuart Hall (2000, p. 10), que mesmo que cada século tenha o sujeito representado como sociológico, moderno ou pós-moderno, a construção da identidade cultural do vampiro (o Conde Drácula, Lestat de Lioncourt e Edward Cullen), passa pela tentativa do mesmo de pertencer e se integrar a todos os aspectos culturais do seu tempo e ao relacionamento com o outro, e é isso que confere certa unidade identitária às três diferentes caracterizações dessas personagens.
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