IX - Começava um novo ciclo

Dona Maria das Neves era todo orgulho em forma de mãe.

Apesar do enfraquecimento das funções vitais, mantinha sóbria lucidez, pois não era o excesso de primaveras que a envelhecia, mas o fardo da vida sofrida que pesava em seu corpo frágil e cansado; tratava com zelo o filho professor do colégio Capitão Mário Cunha.

Colégio no qual havia estudado seu pupilo, e que agora retornava no papel, não mais de mero coadjuvante, de aluno que precisava obter notas para avançar, de figura insignificante com a cara cravada de acnes, um ser raquítico e repugnante que vivia correndo atrás dos outros garotos; mas de docente cheio de ideais, anseios e devaneios.

Um homem formado, alto, magro, de olhar penetrante e perturbador, que cativava por meio da fala quem quer que lhe ouvisse, que conquistava respeito da sociedade não pelos seus bens materiais, pois, de origem humilde, ainda não havia acumulado quase nada, apenas livros, alguns discos e vários sapatos, que aliás era sua paixão de consumo.

Todos os dias, à hora do almoço, o esperava com a comida pronta.

Comida esta que outrora era minguada, frugal, nos dias contemporâneos se fazia farta em uma variedade de alimentos, já que os vencimentos do filho e as reservas da mãe davam outro modo de vida aos dois que, pode-se dizer, ascenderam em nível social.

Não as altas camadas, não eram burgueses, muito menos nobres ou aristocratas, todavia eram pessoas que ganharam por meio do trabalho, potencial de consumo e uma melhor qualidade de vida.

No primeiro ano como professor titular Miguel das Neves Alves encontrou muitas reações diferentes, muita divergência e certa opressão por parte dos professores “velha guarda”.

Sua prioridade era instigar os alunos a pensarem. A entender o motivo de tudo. O porque das coisas.

Como tudo ao redor funciona, não aleatoriamente, mas dentro de um sincronismo de causas e fatos. Sabia que por meio de sua matéria, História Geral, poderia gerar esse desconforto e assim, criar condições mentais de raciocínio para seus discentes.

Numa manhã tórrida, onde as aves que habitavam as árvores do colégio cantarolavam em tremenda algazarra, fez uma abordagem sobre os motivos de estudar a História da Humanidade, como era vital entender nosso passado, as conquistas do ser humano que evolui gradativamente no tempo e também no espaço.

De que modo as civilizações cresceram, evoluíram, atingiram o apogeu e tiveram seu declínio, cada a qual por determinado motivo, razão e causa, de todo modo inerentes a situação da época em questão.

Enfatizou que, quando estudamos a astronomia também só podemos visualizar o passado de todo o universo. Seus alunos o ouviam com silenciosa atenção, quando o pequeno Ednardo Rabelo o indagou:

“Como assim, professor? Não posso compreender suas palavras sobre o estudo do universo”.

“É que mensuramos a distância entre planetas e galáxias por meio de minutos-luz e anos-luz, ou seja, o tempo que a luz demora a atingir outro ponto no espaço está diretamente relacionado com a velocidade que a luz leva para percorrer tal distância”.

“Continue professor Miguel”, interrompeu o jovem Ednardo.

“Se o planeta Terra, supostamente o único planeta habitado em todo o universo, estiver recebendo a luz de outra estrela a dez milhões de anos-luz, então estamos recebendo uma luz que demorou todo esse período para chegar até aqui, compreendem alunos?”

“É muito grandiosa essa idéia, manifestou-se Celina Emiliana, outra jovem aluna daquela sala de sétima série do primeiro grau”.

“E ocorre que”, completou o professor Miguel, “se de alguma forma houver outras formas de vida nos observando a uma distância de sete milhões de anos-luz num planeta qualquer dentro de uma galáxia distante esse observador espacial estará vendo o planeta Terra tal qual era no passado longínquo de sete milhos de anos-luz, entendem?”

“Então quer dizer que os astrônomos estudam o universo para entenderem o passado?” Completou Celina Emiliana, com um brilho irradiante em seus olhos negros e grandes.

“Exatamente, apenas o passado pode ser estudado diante dessa situação de distâncias extremas. Só veremos fatos refletidos a partir da distância que ele levou para percorrer mensurados em anos-luz. Não é fantástico?”

“O Homem sempre teve curiosidade em estudar e entender seu passado, o porquê de sua história, vide os arqueólogos, os antropólogos, os historiadores, os teólogos e os religiosos comuns que lêem a bíblia freqüentemente. Nosso papel é usar o passado e nele buscarmos nossa constante evolução para que tenhamos um futuro preciso e sem comprometimento com erros que já foram identificados, questionados e supostamente solucionados, pois a história nada mais é que uma sucessão de fatos. É como se tudo, de alguma forma, se repetisse intrinsecamente aos fatos, e naturalmente tudo está inserido num contexto factual e passível de análise mensurável”.

Toda turma assistia à aula e, como que por hipnotismo o observava silenciosamente. Falava e gesticulava de tal maneira que todos simplesmente todos os alunos estavam interagindo de alguma forma com a explicação do professor.

Somente ao toque do sinal de finalização da aula é que o encantamento se quebrou.

Houve um alvoroço e todos saíram a correr para o pátio, pois se fazia a hora do intervalo.Miguel se viu só e exausto naquela sala que, para ele, se tornara um grandioso palco de informações.

Lentamente, punha-se a apagar a lousa, breves esboços e alguns rabiscos, como um diagrama abstrato, recheavam o quadro negro, e nesse efêmero instante repassava toda a aula em sua mente como um trailer de um filme.

O professor Miguel das Neves Alves não se ateve apenas aos fatos primórdios e de situação didática para lecionar.

Exprimia, por meio da fala e gestos serenos, que a educação escolar educa apenas para índices bimestrais, notas sem sentido determinam se o aluno é inteligente ou burro.

Sua intenção era educar para o futuro.

Não usava livros. Não exigia que decorassem questões.

Pedia em suas provas que seus alunos elaborassem perguntas, indagassem sobre fatos relevantes que haviam ocorrido.

Queria descobrir um novo marco para a mudança da História, assim como outros marcos passados que instituíram mudanças nos mais diversos livros usados didaticamente nesta e naquela atualidade.

A chegada da escrita, o salto evolutivo da Idade da Pedra até a construção de pirâmides, a tomada de Constantinopla, a Revolução Francesa, a Revolução Industrial, a Queda do Muro de Berlim, a Chegada do Homem à lua e tudo o que a história tem o para nos contar.

Dizia que nada é por acaso.

Tudo parte de um sincronismo passível de análise, mensuravelmente teórico, e que outrora estudado, talvez no século XVII por algum francês, e ainda tangente em cada minuto de nossas vidas.

Numa tarde nublada, todavia muito quente, como se as nuvens que cobriam a pequena urbe retessem todo o calor emanado do solo, o professor Miguel ministrou uma curiosa aula sobre o Egito antigo.

Não uma aula sobre pirâmides, esfinges, muito menos sobre faraós, mas uma aula sobre a sociedade egípcia daquela época, há 2500 a.c..

Uma sociedade que tinha em seu âmago a vontade extrema de se eternizar, de manter-se intacta através dos tempos. Mesmo depois de milhares de anos, de alguma forma, os hábitos, alguns costumes e ensinamentos permanecessem úteis e utilizáveis por toda a humanidade.

Dizia e argumentava o professor Miguel para os alunos da oitava série vespertina que as construções daquele povo foram erguidas com o intuito de serem eternas e que, eram notáveis engenheiros, verdadeiros mestres na arte da construção civil.

Sabiam como cortar cada rocha, como transportá-la apesar de todo peso e que, suas paredes serviam como forma de relatar toda sua história.

Entalhavam magistralmente as pedras de modo que deixaram um legado para a humanidade de verdadeiras cartas de modos de vida relativos à época.

Eram exímios peritos nos encaixes das rochas, enormes rochas.

Utilizavam a própria matéria prima rochosa em forma de pó para rechear fissuras e deste modo desenvolveram uma espécie de cimento antiquado.

Suas construções também possuíam pequenas rochas retangulares como se fossem pequenos tijolos, tal qual conhecemos atualmente, dizia enfático e com brilho no olhar.

Os alunos, colados à carteira, ouviam-no atenciosamente.

Eventualmente um ou outro erguia o braço e solicitava ir ao banheiro e isso causava um pequeno breque em sua explanação.

Continuava dizendo que também eram exímios mestres na construção naval, na medicina e nas artes.

Na medicina desenvolveram tipos de analgésicos, métodos contraceptivos, testes de gravidez e eram senhores na arte de dessecar cadáveres.

Enquanto algumas civilizações contemporâneas aos egípcios tinham o conceito de que não se poderia violar corpos humanos sem vida, pois perderiam suas almas, os egípcios desenvolveram técnicas avançadas para a época de mumificação e preservação de corpos.

Tinham o conceito que somente pela preservação do corpo suas almas seriam eternas.

Desde os mais importantes políticos da época até o mais simples trabalhador tinham o direito de serem mumificados e preservados da ação do tempo.

Empolgado, cheio de adrenalina em suas veias, o professor Miguel destacou o papel da mulher na sociedade egípcia ressaltando que tinham direitos iguais aos dos homens, com papel relevante no comércio, na família e na religião.

Alguns alunos o questionavam sobre esse aspecto curioso para um passado tão distante, por parecer que retroagimos sobremaneira nas relações com o sexo feminino.

Alguns perguntavam como ele descobrira esse fato, outros duvidavam dizendo que o homem sempre prevaleceu na sociedade seja ela qual fosse.

Miguel argumentava que existem manuscritos que relatam vários casos e situações relativos ao papel feminino na sociedade da época e que devemos aprender com uma cultura tão evoluída nas relações interpessoais.

Dizia que o passado existiu para tirarmos proveito e não fecharmos os olhos e vivermos como se nada antes de nossa existência tivesse acontecido.

“O povo egípcio, dizia Miguel, tinha necessidade de se perpetuar e por meio de sua inteligência, pesquisa e vontade intríseca de toda uma nação conseguiram sabiamente manter-se vivos”.

Pigarreando brevemente, se fez continuar:

“Pelo calendário de doze meses, pelo dia de vinte e quatro horas, pelo estudo astronômico e a descoberta de estrelas longínquas, pela utilização do período das cheias para plantar e colher, pelo desenvolvimento da escrita, pela matemática, pelas técnicas de irrigação e plantio, pela construção de barragens tal qual conhecemos hoje bem a nossa frente”, ressaltou o professor, citando a barragem que alargou o enorme rio e alagou quantidades enormes de terras férteis da Cidade dos Miguéis e em toda região por onde ele corre lentamente.

Mais uma vez o sinal de término da aula soou forte, alto e estridente.

Os alunos outrora hipnotizados pela entonação do professor de História saíram rapidamente, trombando uns nos outros na passagem da estreita porta e se digiram ao pátio, uns para irem ao banheiro, outros para saciar a sede e outros simplesmente para brincar.

Ainda nesse mesmo ano fora convidado a palestrar, para um grupo de comerciantes locais, sobre a evolução do capitalismo mundial e suas novas tendências para geração de lucro, pois o mercado da pequena Cidade dos Miguéis antes mesmo de prosperar havia estagnado.

A convite solene da diretora da Escola Capitão Mário Cunha, aceitou sem pestanejar.

Havia feito um curso no último semestre da faculdade sobre mercado contemporâneo e suas novas tendências, e ao comentar durante o intervalo com a diretora na sala dos professores, essa achou por bem que Miguel dissertasse para a comunidade comerciária local, onde poucos comerciantes se destacavam pelo espírito empreendedor.

O professor Miguel disse que gostaria muito de transpassar idéias que gerassem corporativismo da classe comerciária de modo que, somente pela união de esforços, concorrência sem deslealdade e qualidade dos produtos, como que todos na mesma sintonia poder-se-ia aumentar a chance de retomar o crescimento e aquecer a economia local.

Estavam todos, ou quase todos os comerciários e comerciantes sentados no interior do pequeno clube recreativo no centro da Cidade dos Miguéis quando Miguel das Neves Alves começou a falar.

Muitos foram ao local a espera de uma fórmula milagrosa, algo pronto como uma receita de bolo ou um prato especial, gostoso e fácil de fazer.

Mas o intuito de Miguel era fazer todos pensarem, raciocinarem sobre a causa e o efeito, encontrarem dentro de suas mentes vazias alguns conceitos e tirar conclusões que levasse ao êxito cada ouvinte atordoado pela velocidade do mundo dos negócios.

Iniciou a palestra a citar uma pesquisa, de um biólogo sino-lusitano, imigrante de Macau, da sexta década do vigésimo século, que viera estudar o sincronismo entre seres vivos a partir de algo inusitado: uma situação provocada pelos minúsculos vaga-lumes da região sudoeste da nossa União Federativa no qual, ao anoitecer, começam a piscar aos milhares, cada qual em seu tempo particular e que após alguns minutos grandes flashes começam a se formar dando uma unidade peculiar ao ritmo de cada inseto.

Em pouco tempo todos os micro vaga-lumes estão formando um grande feixe de luz como se apenas um gigante vaga-lume existisse então.

Aos poucos havia um zunzunzum que ecoava pelo interior do clube.

Comerciantes se levantando achando um absurdo ouvir aquela estória enquanto perdiam um capítulo da novela que simultaneamente à palestra era exibida pela televisão.

Miguel citava filósofos e dissertava sobre a importância do cooperativismo.

Dizia que a solução não é algo uno, mas amplo; e do diferencial sobre qualidade de atendimento e produtos com excelência a preços acessíveis.

Saber qual a necessidade dos clientes, o que eles buscam ao entrar em determinada loja, e assim direcionar o atendimento personalizado.

Deste modo, Miguel das Neves Alves bombardeou os comerciantes locais com perguntas e não com respostas, o que gerou um tremendo mal estar entre os ouvintes, já que a intenção deles não era serem questionados, serem colocados contra a parede por um simples professor de História Geral e, no momento em que Miguel dizia que nada é coincidência, se estavam atravessando um período difícil é por que eles mesmos durante anos caminharam para aquilo e que o momento exigia mudança, começaram a se levantar aos montes e saírem do recinto balançando a cabeça num ato de descontentamento.

Quando Miguel indagou os que restavam:

“O que vocês fariam se não tivessem medo, mas tivessem audácia? Toda mudança gera desconforto e agora, é hora de mudar? Ou vamos continuar achando que os fregueses que dependem de vocês e não vocês dos fregueses? Agora não é hora de rever conceitos arcaicos, enraizados nesse fim de mundo? Será como se a Terra não girasse, o homem não evoluísse, e as coisas seriam sempre estagnadas e involutivas?”

“O que vemos e vivemos atualmente é apenas efeito colateral de algo que vem sendo gerado e produzido há décadas, e não um simples impasse casual ou uma intempérie do fatídico destino”.

Nesse momento Miguel se viu praticamente só no interior do pequeno clube recreativo da Cidade dos Miguéis. Alguns poucos comerciantes que restaram o olhavam fixamente como que por um fascínio, um hipnotismo que gerava uma concordância com suas palavras interrogativas.

Entre esses poucos comerciantes que o acompanharam até o final da palestra estava Carlos Oscar Novaes.

Houve aplausos que lembraram a estória dos vaga-lumes ao anoitecer: poucos e sem ritmo, mas que valeram para Miguel como um consentimento, uma concordância de alguns que valia pelo todo, como se uma pequena semente tivesse sido plantada naquele primeiro momento e Miguel agradeceu aos restantes num ato de reverência discreta.

Marciano James
Enviado por Marciano James em 13/07/2009
Reeditado em 11/04/2012
Código do texto: T1696938
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