X - Reverência discreta

Miguel das Neves Alves era apreciador de música, um verdadeiro diletante. Construiu um pequeno acervo de discos e tinha gosto bastante eclético.

Gostava de música americana, inglesa e brasileira. Navegava entre o rock e o blues, jazz e música popular brasileira, samba e música clássica.

Nas horas de estudo apreciava jazz.

Ficava horas ouvindo Charles Mingus, Chet Baker e Miles Davis enquanto mergulhava nos estudos.

Mas, na hora de beber, festejar, tomar banho, preparar alimentos e tudo mais que acontecia num cotidiano controlável colocava rock, reggae raiz, e blues.

Possuía algumas coleções de álbuns dos Beatles, The Doors e Eric Clapton. Deliciava-se com Cream e sua Blue Condiction e tinha também algo de Gilberto Gil, Tim Maia no período “Racional”, Jorge Ben e sua “Tábua de Esmeralda”, Cartola e Mutantes.

Na área da música, assim como na literatura, nunca foi um fundamentalista.

Estimava os ritmos e sons produzidos pelos artistas como algo único, independentemente do estilo.

“Criar uma música, uma sonoridade, desenvolver um álbum, distribuir o produto, cativar o ouvinte, torna-lo fã desse trabalho, tudo isso é um tanto complexo para um cidadão miguelense sem dinheiro no banco”.

E esse ecletismo lhe acarretava bons acessos, pois lhe despertava e aguçava-lhe sobremaneira a curiosidade sonora.

Quando viajava a capital ou a Serras do Imperador ou a qualquer outra cidade sempre se via a procurar alguma novidade rítmica em formato de disco.

Tornara-se inconscientemente um garimpeiro da boa música.

Conhecia todas as lojas de discos de Serras do Imperador, os sebos e a praça central também centro de compras, onde ambulantes disputavam cada centímetro do paço da área do Plaza Hotel.

Cópias de originais, contravenção penal de álbuns de artistas, eram vendidas a céu aberto às dezenas, diariamente, sem a mínima intervenção do policiamento local. Encontrava-se desde álbuns e coletâneas populares até jogos eletrônicos.

Mas Miguel preferia os originais.

Não porque fosse ferrenho defensor dos direitos autorais, sabia que aquilo, aquela pirataria escancarada aos olhos da sociedade, gerava, de alguma forma, emprego.

“Os chamados profissionais informais têm que se virar economicamente de alguma forma e o Estado é que tem que realizar sua política de amparo ao cidadão”, pensava.

“Se preferem cerrar os olhos fazendo vista grossa e depois serem ostensivos na atitude de solução ou inibimento, o problema é sistematicamente deles ou não?”, indagava a si mesmo o jovem professor.

“Será utopia de minha parte que esse problema possa ser resolvido com filosofia ativista?”, e indagando-se continuou:

“Um Estado que facilitasse o trabalho, tivesse uma política eficaz na área de recolhimento de impostos de modo que a exação gerasse retorno à sociedade, principalmente sobre a população informal”.

“Desde o inicio, o homem considera ser usura a prática de recolhimento de dinheiro por parte do Estado. Este por si, nunca aliviou seus Homens. E eles sempre reclamaram patentemente sobre o assunto”, pensava e sorria resignado para si mesmo.

“No Brasil, os legisladores, ao invés de diminuir a distancia das camadas sociais, aumentam, contribuem ainda mais para que elas se distanciem, mais e mais.

“Votam no aumento dos próprios salários, voto secreto, aliás, e contribuem com os gastos do Estado Soberano”.

“Lembro que na França, por exemplo, a revolução mais famosa do mundo, intentada pelos escritores e pensadores iluministas, só ganhou força e vigor por parte da população geral por estarem fatigados de cobranças exorbitantes e das excentricidades da realeza que vivia num universo à parte do povo francês”, disse certa vez Miguel, num de seus pequenos discursos no refeitório da escola.

Miguel admirava a escrita ácida de Voltaire. Admirava-o muito.

Foi nesse período, com temperaturas altíssimas de um belo verão brasileiro, Miguel sofreu um abalo que o marcaria para o resto de sua existência.

Numa madrugada de domingo, acordou com dores terríveis em sua perna direita.

Uma dor que estendia por toda a parte posterior da coxa, isquiotibiais, gastrocnêmio e contornava a canela até a parte superior de seu pé de uma maneira tão peculiar que provocava a mais profunda dor até os dedos.

Essa dor se iniciava na região glútea, bem no centro da nádega direita e dali irradiava para todo o membro inferior.

Sentiu sua perna gelada, retraída, insuportavelmente dolorida, como se tivesse sido atingido por uma flecha, um dardo envenenado e não podia se apoiar de pé.

Era como se a flechada abrisse uma ferida tão profunda que a dor estendia-se ao âmago.

Seu espírito sofria com aquele incômodo. Parecia que havia nas mãos de um feiticeiro um boneco vudu, sendo picado por uma enorme agulha, preparado especialmente para ele.

Não entendia o porquê daquilo. Nessas alturas, adulto, magro, porém nutrido, cheio de expectativas diante da nova profissão, ser atacado no meio da noite por forças ocultas, do além, atingido no alvo de modo que o abatesse instantaneamente e minasse todas as suas forças, era algo inconcebível demais naquele momento.

Passou toda a madrugada gemendo, urrando como um leão ferido, todavia estático, não movia um músculo sequer tamanha a dor neural que lhe acometia.

Começou a sentir cãibras terríveis na parte anterior da coxa direita que logo se estenderam ao gastrocnêmio e iliopsoas.

Logo pela manhã, ajudado por um amigo que viera visitá-lo, vendo-o naquele estado sorumbático e depressivo, o acompanhou sem delongas ao médico da comunidade.

Sua mãe, fraca e extremamente envelhecida pelo destino, nada podia realizar a não ser orações.

Sofreu junto com o filho e perseverava fortemente em sua fé para que Deus atuasse naquele ser, realizasse um milagre e mostrasse sua força.

Ciatalgia foi o diagnóstico. Uma enorme irritação no nervo ciático, provavelmente acarretada por compressão de algum disco intravertebral.

E, a recomendação do médico foi de manter repouso absoluto por uns três meses e só a partir daí é que tomaria alguma decisão sobre procedimento cirúrgico ou tratamento clínico.

Mas Miguel queria mesmo era tomar algo que o anestesiasse instantaneamente. Não suportava tamanha dor, sentia náusea e vontade de vomitar.

Estava pálido como um doente por hepatite, fraco como um desnutrido e sem mobilidade como um aleijado, alguém que acabasse de pisar numa mina terrestre talvez não sentisse a mesma dor que o desestruturava por inteiro.

Começou então a tomar injeções diárias de um analgésico antiinflamatório tão poderoso que deixava Miguel dopado o dia inteiro.

Não conseguia segurar um copo sequer. Porém a dor estava ali naquela perna já quase atrofiada, gelada como se não tivesse vida, dolorida como um ser carcomido por um grande tumor generalizado.

Havia uma sensação penosa e desagradável incessante naquele membro.

Era incomensurável o sofrimento do jovem promissor.

Começou, então, a desenvolver um sentimento de revolta dentro de si.

Emanava das regiões mais profundas do seu ser um ódio que até então não havia experimentado em outras ocasiões.

Não entendia o motivo daquela situação atual e, isso lhe gerava, de certa forma, tremenda revolta com as intempéries de um destino fadado ao sofrimento e patologias de natureza estranha, nada convencionais, como uma simples gripe ou dores de cabeça ao final de um expediente cansativo e estressante.

Mas estava tão sob efeito da ação da droga analgésica que não formulava pensamentos, não se questionava, só gemia e sentia câimbras.

Durante semanas abandonou a leitura, algo que sempre o acompanhou e se tornara um hábito em sua vida, agora não aguçava sua mente, estava inerte.

Foi um período de inanição profunda.

Parado horizontalmente, estático, apenas a respirar, um estado de metabolismo basal inerte como árvores caducas que se recolhem na perda de suas folhas para que a fotossíntese não se realize otimizadamente num inverno intensamente frio.

Recolhido em seu quarto sem que ninguém pudesse aliviar aquela sensação penosa e desagradável, o jovem Miguel da Neves Alves era todo dor e aflição.

Acordava pela manhã se sentindo como Gregor Sanssa, um enorme inseto, uma barata gigantesca, nojenta, que causava asco e repugnação às pessoas.

O outrora útil e profícuo se tornara uma criatura ociosa, parasitária, fragilizada, sem nenhum proveito numa sociedade capitalista sedenta de produtividade e capacidade de rendimento.

Percebia que, de nada valia usar apenas o corpo para geração de recursos, se morresse naquele momento, por uma dor insuportável, tão insuportável que lhe causasse parada respiratória, não teria deixado nada, não marcou sua existência com nada, não se perpetuou na sociedade por nada que valha a pena e que, após a morte dos que se lembravam dele, sua alma deixaria de existir socialmente.

Seria excluído, apagado, talvez nunca tenha realmente existido. Talvez tudo isso fosse um pequeno sonho, um enorme pesadelo e que, quando acordasse, tudo não passaria de ondas elétricas, fragmentos desconectados de coisa alguma.

Um sonho breve diante da imensidão do tempo, uma fração de segundo na realidade do universo.

Pensou então no tempo de Deus, leu Eclesiastes.

“Há tempo para tudo debaixo do sol e o Senhor Criador não vive em ciclos de vinte e quatro horas, não se atem a relógios e ao dia e noite.

Não pensa quão mínima é nossa existência, pois nos fez a sua imagem e semelhança e, se é eterno nossa alma também se perpetuará nas regiões celestiais, pois somos semelhantes na essência e por meio da essência conheceremos quem já nos conhece.

“O Pai conhece o filho melhor do que ninguém, conhece o filho antes mesmo de vir ao mundo tal criatura carnal que é, antes mesmo de ter um nome o Senhor Deus já o chama”.

“O Senhor Deus criador de todo o universo mostrou-nos sua capacidade de criação a partir do nada. Não havia terra para construção de montanhas e ele as construiu. Não havia moléculas de hidrogênio e oxigênio para elaboração de água e ele a produziu. Não havia carbono, não havia metais nobres, pesados, não havia gases, não havia luz e por intermédio de Deus tudo se criou”.

“Não em sete dias metaforicamente como narram, mas em Seu tempo. Deus nos mostrou que é necessário determinarmos um tempo para nossas conquistas e realizações”.

“Estipular, por meio de oração determinante, o período necessário para que a planta germine, cresça, dê frutos e esteja pronta para a farta colheita será fundamental para mim nesse momento”, confabulou o sorumbático professor.

Tudo isso emanava do cérebro de Miguel como uma locomotiva atravessando um túnel em meio às montanhas.

Eram pensamentos longos, porém como se colocados em sua cabeça, não conseguia pensar, todavia pensava.

Pensava muito, cada vez mais, como um turbilhão de pensamentos desconectados que se encaixavam em algum ponto central e ali se ramificavam e se fortaleciam gradativamente.

Começou a orar copiosamente. Sentiu emanar dentro de si algo inefável.

Percebeu que sua fé despertara e que por meio dela poderia ser curado daquele mal.

Disse a Deus:

“Senhor, não sou merecedor de um milagre instantâneo como ocorria na passagem de Jesus, seu filho, pela terra. Apenas um toque de Jesus no enfermo, apenas um olhar sequer, Ele, por intermédio de Ti, operava milagres. Ao Seu comando toda patologia se extinguia, se cessava, e agora determino em Seu Nome que estou curado já!”

“Acredito piamente que a partir de agora uma semente foi plantada, minha fé adubará essa terra, que é meu corpo, e a partir daí, no tempo certo colherei o que plantei. Os frutos virão à sua época e cearei contigo, meu Salvador”.

Todos os dias Miguel passava o tempo orando e se fortalecendo espiritualmente. Percebera que não estava só, sentia a presença de Deus ou do Espírito Santo, talvez dos três. Isso lhe trazia confiança. Sua oração se tornou como um treinamento, porém não físico, mas espiritual. Fazia sessões desse treinamento diariamente pelas manhãs e se sentia gradativamente fortalecido. Começou então a “comer” as palavras da Sagrada Escritura.

Aqueles versículos se tornaram para ele, alimento.

Um nobre e nutritivo alimento que tonificava e nutria sua alma, seu espírito.

Lia o novo testamento, principalmente o Evangelho de Lucas e Marcos. Lia também Isaias, profeta com quem teve grande identificação.

Dizia que, por meio de sua cura o Senhor Deus iria ser glorificado e, aí então seus amigos teriam que se render à fé e a crença por verem, assim como Tomé outrora havia presenciado, o poder divino do grande Criador.

Lendo, numa bela manhã fresca, encontrou uma frase dita por um músico brasileiro que contraíra o vírus HIV e no qual já sucumbira a enfermidade, na qual dizia: “Se a dor é inevitável, opte ou não pelo sofrimento”.

“Que bela é essa frase; que máxima verídica esse homem quis transpassar as outras pessoas”, pensou Miguel ainda deitado em seu leito.

A partir desse dia, Miguel não mais choramingou, nem mesmo praguejou contra as intempéries e os impasses do destino.

Sabia que deveria extrair o máximo de proveito de todas as situações que viesse a enfrentar em sua existência nesse planeta.

Em cerca de quatro semanas já se locomovia vagarosamente, porém a dor persistia. Era como se a cada oração a dor se manifestasse mais intensamente.

”Teste de fé”, dizia ele.

Todos na escola vinham visitá-lo e se comoviam com seu estado.

Sentia-se mal com toda aquela situação e proibiu todas as visitas. Institui que receberia telefonemas e cartas, mas não voltariam a vê-lo naquele estado moribundo que se encontrava.

Foi ai que Deus começou a operar em sua vida.

Por meio de contato com alguns amigos professores conheceu uma técnica de alongamento e exercícios respiratórios que poderiam reestruturar sua coluna vertebral, todavia era necessário que o processo inflamatório cessasse para iniciar essa atividade.

A partir do segundo mês, a dor já não era tão notória, mancava mais pela retração muscular que lhe acometia do que pela sensação penosa e, iniciou, com grande expectativa, essa técnica de reestruturação postural.

Passava uma hora por dia em alongamentos, como se fosse uma técnica de tortura medieval, enfatizava os exercícios respiratórios de modo que após alguns minutos seu corpo se via anestesiado, entorpecido pelo oxigênio e substâncias fisiológicas contráteis.

Entrava num estado de transe. Orava e sentia a presença de Deus tocando sua vida, seu corpo outrora penalizado por esse impasse do destino, agora sentia um prazer caloroso.

Aos poucos foi percebendo que não necessitaria de cirurgia nenhuma, tratamento clínico algum e se viu detentor de um milagre divino.

Havia se passado quatro meses, Miguel estava afastado do trabalho, tinha sido substituído por outro professor licenciado em geografia, mas que naquele momento se fazia docente em História Geral, e se viu perdido no mercado de trabalho.

Começou a ter idéias para voltar, mas necessitava de mais confiança para exercer todas as atividades novamente.

Começou a acreditar que aquele período peculiar poderia lhe trazer algo de bom, algo que fosse necessário extrair para a realidade todo seu aprendizado reflexivo sobre a natureza humana, sua evolução na fé e como Deus pode operar milagres na vida das pessoas, sejam elas o que forem.

Descobriu nesse período, por empirismo e estudos que a fé é total e somente individual.

“Por nós mesmos, é que construiremos o que quisermos“.

Nesse mesmo período entrava-se na época das campanhas eleitorais para prefeito e vereadores. A cidadela estava agitada.

Foi então que emanou um ser das classes baixas, um verdureiro com sede de transformação. Reacionário a tudo e todos fazia discursos inflamados incitando a mudança e se necessário, a luta.

Usava como recurso seu megafone, outrora instrumento de trabalho para divulgação de seus legumes, frutas e verduras e agora uma arma com poder de se fazer ouvir politicamente, cuspindo nos ouvidos da população fantoche toda sua ira contra a situação inflexível, imutável de uma política suja, parcial e perpétua.

Dizia-se capaz de destruir toda obra obsoleta se eleito fosse, de bombardear a usina hidrelétrica para recuperar as terras inundadas, de transformar aquela parca cidadela em algo aprazível, próspero, digno de morada e qualidade de vida.

Mas não era levado muito a sério.

“Essa história de bombardeio pegou mal”, comentavam.

Não era culto. Tinha um vocabulário limitado e por vezes errava na pronúncia, usava termos dialéticos da região, demonstrava sua simplicidade e humildade educacional e, assim também não atingia os burgueses, a classe culta e os instruídos desejosos de uma política administrativa coerente e para o bem, não pessoal, mas de todos os miguelenses.

Seu nome era Ronaldo Pena Guerra.

Do outro lado do poder o então prefeito José Pedro Ferreira da Silva Barbosa e Castro lançava sua filha Maria Cecília Ferreira e Castro para concorrer em sua primeira eleição. Estava irradiante e empolgada a jovem médica.

Tinha certeza que se elegeria, pois, além do apoio incondicional do partido do pai tinha carisma junto à população carente.

Seus discursos eram recheados de pompa.

Nos comícios havia shows musicais, deputados convidados clamando total apoio da população, pois ali: “estava a grande solução para os problemas locais”.

“Uma mulher ativa, inteligente e sabedora dos problemas que abatem a cidadela”, discursavam os convidados ao palanque.

Sua candidatura se fortalecia cada dia mais.

Não havia concorrente a altura e a tendência do partido do prefeito de se manter no poder era quase indubitável.

Havia outros dois candidatos, porém inexpressivos em suas essências peculiares no que dizia respeito à administração pública.

Conjeturava, o povo, serem patrocinados pelo próprio prefeito em suas campanhas políticas.

Um chamava-se Eurípedes Renato Queiroz, era funcionário do banco do povo, o outro se chamava Antônio Moraes Moura e era advogado criminal.

Ambos tinham relação direta com o prefeito, almoçavam juntos periodicamente e não possuíam afinco político, característica básica de qualquer candidato sedento de vitória nas urnas.

Não atacavam a política vigente, não debatiam nem questionavam seu concorrente, apenas pediam votos de casa em casa, colavam cartazes em alguns locais da cidadela e cumprimentavam os transeuntes que encontravam pelo caminho.

Diziam os informados que eram candidatos de aparência para que as eleições não parecessem como cartas marcadas dentro de um baralho viciado.

Ronaldo Pena Guerra prometia combater até o fim.

Não se via derrotado e bramava em seus discursos inflamados que sairia vencedor daquelas eleições:

“O povo não agüenta mais tanto desprezo e miséria”, enfatizava o candidato.

Aproximando-se as eleições, estava sempre a brigar com algum simpatizante da doutora Maria Cecília.

Discussões em bares, na praça, na porta da igreja, em frente à farmácia, na rua do comércio, nas filas do banco, na padaria e onde mais havia gente em idade cabível para o exercício do sufrágio.

A presença daquele guerrilheiro das urnas estava insustentável.

Quando alguém o via se aproximando logo corria, mudava a direção da caminhada, atravessava a rua, entrava em alguma porta que se fazia aberta, e assim Ronaldo Guerra se viu praticamente só.

Apenas em casa tinha apoio irrestrito da família. Esposa e filha o viam como um mártir.

Temiam por sua vida e achavam-no o grande libertador da Cidade dos Miguéis.

Sempre pelas manhãs, sua esposa lhe ditava recomendações ao sair:

“Tenha muito cuidado com o que irá dizer hoje, meu querido. Os comandantes não o vêem com bons olhos, você se tornou uma ameaça ao poder deles. A população descontente irá apoiá-lo, tenho certeza disso”.

Essas palavras utópicas, de alguma forma, incentivavam Ronaldo Pena Guerra em sua batalha eleitoral.

Via-se vencedor, triunfante em seu projeto de moralização da cidade.

Sob certo aspecto, esse cidadão estava coberto de discernimento plausível.

O seu problema era como explaná-lo, expô-lo ao povo ignóbil.

Tornara-se muito agressivo em seus discursos e isso inibia a população. Todos o temiam.

Como um lunático qualquer não teria óbvia credibilidade, um verdureiro agressivo também não teria aceitação junto ao povo, mesmo que dele se emanasse, fosse fruto de toda uma indignação social que tivesse gerado tal conseqüência.

Todos queriam mudança, mas nesse aspecto a médica Maria Cecília também era lançamento eleitoral, uma grata e inédita novidade, concorria pela primeira vez e era bem vista por todos pela sua integridade, serenidade e idoneidade.

O então prefeito José Pedro ignorava tranqüilamente seu concorrente.

Nunca achou tão mal representada a classe miserável, a classe excluída.

Sabia que venceria mais uma eleição sem inquietude.

Miguel acompanhava distante todo o desenrolar eleitoral. Sentia pena de Ronaldo Pena Guerra e por vezes achava até engraçada suas intervenções, coerente seus argumentos e suas intenções para com o poder local.

Como forma de protesto até pensou em assinalar o nome de Ronaldo Guerra em sua cédula eleitoral.

Seria uma maneira de enfraquecer a situação vigente dando crédito a alguém que clamava por mudança.

Uma bela manhã ensolarada de setembro, Ronaldo Guerra chegava ao centro de compras com seu megafone em punho para mais uma sessão discursiva quando o prefeito José Pedro chegou acompanhado de sua filha candidata.

Foi um alvoroço.

Ronaldo, aos berros, xingava todas as palavras que seu minguado vocabulário conhecia e o prefeito partiu para uma batalha campal inesquecível para quem acompanhou visualmente o ocorrido.

Ainda corre no imaginário popular da cidadela o confronto de titãs naquela manhã escaldante de primavera.

Ronaldo Pena Guerra usou como arma seu megafone e desferiu vários golpes contra José Pedro que por sua vez agredia de forma violenta, porém ineficaz, seu agressor. Maria Cecília tentava intermediar a batalha segurando o pai e pedindo enfaticamente para acudirem ambos.

Mas, a população perplexa assistia de camarote ao fato.

Após alguns minutos, dominados pelo cansaço se deixaram parar com aquela briga sinistra, porém engraçada.

Ronaldo, o candidato, saiu com algumas escoriações no rosto e a camisa rasgada, gritava que tinha vencido a primeira batalha e triunfaria nas urnas, para deleite da população expectadora.

José Pedro ficou com os braços doloridos de tanto proteger sua cara avermelhada dos golpes de megafone contra ele desferidos.

Sofreu alguns arranhões e perdeu seus óculos.

Durante semanas, essa contenda foi assunto nas principais rodas de boteco, jogos de futebol, na praça central, na escola e em todos os lugares onde havia gente o assunto não cessava.

Muitos acharam extrema coragem de Ronaldo Guerra enfrentar uma autoridade máxima, quase intocável, detentor do poder local há anos; já outros acharam babaquice dois velhos brigarem por ideais, interesses particulares, mesquinharia política ou qualquer tipo de fetiche que o poder gera internamente em quem se candidata ou trabalha em campanhas com interesse eleitoral, enquanto outros viam o fato como sinal dos tempos, onde a população se levantava num grito de guerra para abafar o poder dos grandes senhores políticos.

Houve, após esse fato, outras contendas com menor intensidade sempre que ambos se encontravam eventualmente, pois a cidadela se tornara pequena demais para os dois, que por vezes durante suas campanhas particulares se viam frente a frente, do mesmo lado da calçada ou entrando num mesmo estabelecimento.

Em meio a toda essa situação as eleições vieram.

O dia D inevitavelmente chegou. A cidadela estava em polvorosa.

Ninguém comentava, mas todos sabiam da supremacia da candidata da situação. Via-se por todos os lados sua foto, seu logotipo, sua música eleitoral não parava de soar, mesmo com ordens expressas do juiz eleitoral responsável pela região proibindo toda e qualquer forma de propaganda no dia da eleição.

Quanto aos candidatos a vereadores, misturavam-se profissionais liberais, servidores públicos, figuras da sociedade, trabalhadores rurais, presidente de sindicatos (havia dois na cidade, o sindicato rural e o sindicato dos comerciários) e, quem mais se destacava era o comerciante Carlos Oscar Novaes, que possuía uma história bem interessante sobre sua ascensão social: era gaúcho e viajava por toda a extensão do território brasileiro com sua esposa e filho; estando a mudar para um novo estado brasileiro que se formara ao norte e que prometia, o governo vigente, ser o estado das oportunidades intermináveis com um mercado sedento de consumo e necessidades. Vendo-se diante dessa chance de ouro para sua conquista social, obtenção de riquezas inimagináveis para um sulista comum, partiu.

Todavia, carregava algo inusitado em sua caravana, que necessita explicação minuciosa.

Aconselhados por muitos conterrâneos que faziam parte do dia-a-dia de Carlos Oscar, este juntando suas economias pelo trabalho no comércio e vendas de sementes agrícolas, comprou uma maravilhosa piscina de fibra de vidro, já que ouviu todo tipo de lenda sobre o calor infernal que faz na região norte do país, clima tipicamente equatorial, similar às savanas africanas e os desertos semi-áridos do nordeste.

Algo insuportável para um típico gaúcho das serras.

Porém, ainda estavam no sul e tinham uma estrada incrivelmente cumprida para rodar. Sem vacilar comprou a piscina lá no sul mesmo.

Com um auxilio de um caminhão com carreta, fretado junto a um agricultor local, seguiu sem estadia para seu errôneo destino.

No meio do caminho, antes de atravessar o grande rio, no feudo da Cidade dos Miguéis, depois de atravessar praticamente três estados, teve o caminhão quebrado por um enorme buraco cravado na estrada que contorna a cidadela e passa em frente à hidrelétrica pouco antes da ponte que liga dois estados.

E assim, ficou lá naquela estrada escaldante a espera de ajuda, Carlos Oscar Novaes e o motorista do caminhão, enquanto o restante da família partia para o destino rumo ao norte.

Passando um comerciante da Cidade dos Miguéis pela estrada, a voltar da capital, avistou aquela bela piscina estacionada e sem pestanejar indagou a Carlos Oscar que a olhava fixamente:

“Quanto custa a piscina?”

“Não está a venda”, disse Carlos Oscar Novaes, surpreso com tal pergunta.

Ficou tão surpreso que nem pediu carona para chegar até a cidade e tentar encontrar algum mecânico capaz de consertar aquele eixo avariado.

Acenou com a cabeça e acelerou o comerciante miguelense cansado de uma viagem à capital e louco de vontade de chegar em casa e banhar-se.

Carlos Oscar ainda acompanhava o sumiço do carro no horizonte quando um novo veículo se pôs a estacionar atrás do caminhão.

“Qual o preço da piscina, seu moço”, questionou outro miguelense maravilhado com aquela coisa azul.

“Não estou vendendo, estou com o caminhão quebrado e espero ajuda de um mecânico. O senhor conhece algum?”

“Claro que sim, aqui temos muitos caminhões e vários deles quebram nesse trecho. Chamarei o mecânico que conheço assim que chegar na cidade”, completou o cidadão acalorado.

Voltando a si após refletir sobre mais essa interessante pergunta sobre a piscina continuou parado na estrada observando-a.

O sol ardia em sua cabeça e tornava rosada sua pele branca.

Sentia tremenda sede e começou a ter náuseas.

Não havia nenhuma sombra naquele trecho e sentou-se ao lado do motorista embaixo da carreta do caminhão danificado.

Até que outro cidadão, mais precisamente Ramires José de Freitas vinha em direção à cidade, voltando de seu rancho a beira do grande rio, vendo aquela piscina estática, tombada na carreta de um caminhão proveniente do sul, freou.

“Adorei a piscina, meu caro. Por quanto posso comprá-la?”

Naquele momento, Carlos Oscar Novaes, se viu furioso consigo diante daquela situação. Parado numa estrada no meio do nada, horas e horas do seu destino final, com um caminhão que não lhe pertencia quebrado em suas mãos, com sua família se distanciando cada vez mais, e com uma enorme piscina de fibra de vidro nas costas para carregar.

“Como sou imbecil”, pensou.

“Que situação mais constrangedora, eu aqui sendo questionado por um bando de sertanejos sobre essa piscina escrota debaixo da carreta desse maldito caminhão. Quero sumir daqui!”

“Eu vendo essa piscina sim, e o preço é acessível, pode ter certeza”, disse o gaúcho, com um sorriso sarcástico nos lábios ressequidos.

Naquele dia Ramires José de Freitas fez um bom negócio.

Sentiu-se muito feliz em poder instalar uma bela piscina em seu rancho, já que as águas daquele pedaço de terra no qual tinha a propriedade eram turvas, e não era hábito aprazível mergulhar naquele trecho do rio.

Ao entrar na água, os pés atolavam numa lama viscosa e sabia-se haver muitas cobras naquele trecho.

Indo à cidade para fechamento do negócio, Carlos Oscar gostou daquele lugar. Simples na sua essência e pacata para criar seu filho.

Também tinha um comércio virgem de especulação e previu que ali poderia ganhar dinheiro com agronegócio de venda de sementes de milho, braquiária e soja e até montar sua revendedora de piscinas com assistência técnica e tudo mais, já que o calor que fazia naquela região era insuportavelmente desértico.

Vendeu a piscina e por ali ficou.

Toda a família, que por sinal não era grande, deu meia volta no itinerário e se instalou de vez na cidadela que ganhava mais uma família, o mesmo lugar onde tantas abandonavam por falta de oportunidades.

Carlos Oscar Novaes tornou-se um grande vendedor de piscinas.

Vendia para toda a tórrida região e fazia fortuna com manutenção e limpeza.

Montou com a família uma equipe que trabalhava constantemente com eficácia junto aos clientes.

Começou a fazer limpezas e manutenções em caixas-d’água de todas as fazendas e casas do local. Criara-se em pouco tempo uma empresa única no mercado daquelas plagas.

Aos poucos conquistou influência na sociedade miguelense como um bom burguês. Era solidário e tinha boas idéias sociais.

Empregava algumas pessoas na manutenção de piscinas e limpezas de caixas-d’água e iniciou-se nas vendas de sementes de grãos com o filho.

Em cerca de cinco anos estava milionário, sócio proprietário de uma grande empresa de vendas de sementes e compra de grãos, patrão empregador de várias famílias e pessoas ligadas ao município.

Um ser que surgiu do nada e vencera naquela cidadela, fadada a estagnação e a nulidade por meio de idéias empreendedoras.

Na época das eleições municipais resolveu apoiar com uma generosa contribuição a campanha dos candidatos de José Pedro, agora seu amigo particular, freqüentador de sua residência, companheiro de porres homéricos e, filiando-se ao partido do amigo, manifestou pleno interesse em candidatar-se ao cargo de vereador com a promessa de ser presidente da câmara, feita pelo próprio companheiro de copo e meretrizes, o prefeito.

Assim, nessas eleições, tornara-se mais um candidato entre tantos. Sabia que venceria, tinha bons contatos e boa aceitação por ser neutro quando preciso e parcial quando necessário.

Comandava diretamente a renda de diversas famílias e pessoas miguelenses, de modo que, não teria problemas em conseguir algumas dezenas de votos para si.

Após o fechamento das urnas, às cinco da tarde, daquele dia terrivelmente escaldante, Ronaldo Pena Guerra dirigiu-se para o clube municipal onde seriam abertas as urnas e contados os votos.

Como essa contagem seria apenas no dia seguinte, pois os fiscais argumentaram estarem exaustos para efetuarem qualquer contagem, o candidato Ronaldo passou a noite em vigília na porta do clube.

Por vezes contornava o quarteirão como se estivesse protegendo o local de possíveis invasores com o intuito de sabotar os votos.

Amanheceu.

O que se viu e ouviu à medida que o sol se erguia e ardia intenso naquelas cabeças era sobre a vitória esmagadora da médica Maria Cecília Ferreira e Castro.

Quase unânime.

Ronaldo Guerra teve quatro votos apenas e se tornou alvo de chacotas por onde passava. Supunham que apenas sua família havia votado nele.

Esposa e filha obrigadas a votar num candidato fadado ao fracasso, sem nenhuma condição propícia para assumir o poder executivo da Cidade dos Miguéis.

“E o outro voto, de onde veio?”, indagava a população ávida de conhecer os segredos eleitorais.

Quanto aos outros dois candidatos, ambos somados, tiveram duas dezenas e algumas migalhas de votos sem nenhuma expressividade, apenas fizeram parte do jogo, como já determinara a aristocracia familiar local e presumiam os sabedores da política vigente.

Três dias após as eleições Ronaldo Guerra morreu de desgosto.

Sua esposa ao acordar sentiu-o gelado e, observando-o ainda com a luz apagada, mas com a claridade dos primeiros raios solares se espalhando vagarosamente pelo cômodo, o viu com os olhos e boca abertos, sem respirar e com uma leve halitose.

Chorou copiosamente.

Pensou que havia sido morto na calada da noite ou envenenado durante o labor, pensava em milhões de possibilidades, ocorria em sua mente dolorida todo tipo de explicação para aquele fúnebre fato, mas de que adiantava matar um zé-ninguém, um cidadão que não tinha credibilidade junto a sua comunidade e que havia sido derrotado pelo povo, o mesmo povo na qual queria ajudar.

Seu finado marido compadecia do sofrimento da população e tinha a atitude para que ocorresse mudança, ocorresse melhoria na vida das pessoas sofridas daquele lugar.

Tentou ficar lúcida, se mostrar forte diante daquela situação de tristeza.

Pensava poder ser a primeira dama da Cidade dos Miguéis e agora era apenas a viúva do verdureiro, pobre e sem recursos, apenas proprietária de um casebre de cinco cômodos, uma perua e um megafone amassado.

Respirou fundo e seguiu na vida a criar a filha e vendendo verduras que elas mesmas plantavam num terreno alugado próximo à sua morada.

Muitos agradeceram aos céus pela morte do verdureiro, afirmavam ser castigo por enfrentar as autoridades e praguejar contra o poder local.

O então prefeito, num ato de politicagem, fez uma pequena homenagem ao mortificado concorrente discursando em seu enterro para algumas pessoas que o velavam.

Disse, sem gesticular, estar disposto a ajudar sua família, pois não tinha mágoa nem rancor dele, pelo contrário tinha admiração pelo seu esforço e convicção.

“Sua ideologia era incoerente, mas era um bom moço, honesto e trabalhador”, discursava no velório.

Na verdade o prefeito José Pedro estava feliz pelo acontecido.

Sabia que aquele fato lhe fortalecia ainda mais, já que corria na boca pequena ter sido morte por castigo celestial.

Abatera sobre Ronaldo Guerra uma pena de morte por enfrentamento do poder e isso deixava o caminho aberto para os “Ferreira da Silva Barbosa e Castro” em sua dinastia de poder e glória.

É claro que isso não passava de superstição, mas, gerou uma mística diante da pessoa do prefeito e seus escolhidos.

Era como se José Pedro tornasse faraó do local, tendo representação divina e digno do poder que lhe emanava.

Dizia ter nascido para governar, para administrar o patrimônio público e que sem ele no poder ou orientando o poder tudo poderia acabar mal.

Em sua longevidade, não encontrou outro concorrente a altura que o superasse em dias de eleição.

O comerciante Carlos Oscar Novaes também se elegeu.

Fez gastos vultuosos em sua campanha e agora: “chegara à hora da colheita”, como falava aos seus assessores eleitorais.

Tornara-se presidente da câmara dos vereadores em votação solene, regada a propina por parte dos interessados ao cargo, ele Carlos Oscar Novaes e seu amigo, pai da prefeita, Jose Pedro.

Tudo caminhava normalmente no reino Dos Miguéis.

Marciano James
Enviado por Marciano James em 13/07/2009
Reeditado em 11/04/2012
Código do texto: T1696931
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