XII - Grande contingente populacional canino

Douglas Hernesto Sanoj era todo sorriso e felicidade.

Sua amada agora era responsável pelo poder executivo da circunscrição territorial e administrativa comandada diretamente pela sua família e, sabia que, de alguma forma isso acarretaria em benefícios para ele e seus amigos.

Convidou Miguel para uma conversa informal sobre o assunto em sua residência e ambos brindaram a felicidade.

Todavia, Miguel deixou claro que preservaria sua neutralidade política ficando fora do rol clientelista que se renovaria em breve.

Neutralidade estimada, que o acompanhara por toda a vida, e lhe dava um aspecto de independência impar.

Naquela tarde, entre um copo de cerveja fria e outro, tiveram a idéia juntamente com Ramires José de Freitas, que aparecera depois de meia dúzia de garrafas consumidas com afinco pelos dois amigos, de fundarem algo inusitado: “A Academia de Letras da Cidade dos Miguéis”.

O argumento ébrio que se formava entre um copo e outro da nutrição alcoólica era o fato de que emanava das classes baixa e média algumas pessoas com nível educacional elevado e sedentos de produção cultural, debates sobre assuntos de relevância sócio-cultural, e que, de alguma forma poderiam também fazer parte do contexto acadêmico, ainda embrionário a partir daquele momento.

Uma classe universitária se erguia na cidadela, filhos estudantes com diplomas provenientes das faculdades da região, todos detentores de conhecimento e saberes específicos de cada profissão escolhida e que, sentiam necessidade de contribuir com algo essencialmente indispensável para a evolução da comunidade no aspecto profissional e também cultural e literário. Idiossincrasias em prol da Cidade dos Miguéis.

A idéia foi prontamente acatada pelos três amigos e o objetivo da Academia não era, de forma alguma: “o enaltecimento pessoal dos ‘imortais”, como ressaltou Miguel, embriagado, e continuou depois de outro gole demorado: “mas a divulgação de idéias, a produção literária e a conferência de palestras a todas as classes sociais da pequena comunidade miguelense”, discursava utilizando exatamente essas palavras o professor Miguel.

No inicio pouco se fez em prol da idéia.

Tudo se esfriou depois da ressaca do dia seguinte.

Estavam todos atônitos com a Academia, porém a estagnação se fazia presente na vida dos fundadores.

Estagnação esta devido a outros afazeres, a constante explicação de falta de tempo disponível para fazer a engrenagem girar por si para dar corpo e alma ao feto gerado era desculpa redundante quando os três amigos se encontravam.

Douglas Hernesto Sanoj atarefado com suas profissões, e agora auxiliar da futura esposa cheia de novos trabalhos e labutas inéditas, exercia papel fundamental na vida da então nova prefeita da Cidade dos Miguéis.

Ramires José de Freitas não era um dos mais ativos em seus ideais.

Tinha certo receio de situações inusitadas e isso de certa forma não lhe gerava eficácia em materialização de objetivos e metas pessoais.

Afirmavam os antigos que, quando criança sofreu superproteção da mãe, de modo que não tinha ênfase em assumir certas responsabilidades, mesmo que tivesse tempo disponível o suficiente para fundar uma nação, a figura materna sempre vinha à frente quando jovem e cheio de iminências, e nos dias atuais era apenas um homem resolvido na vida por meio de herança e cheio de peculiaridades que não atuavam em prol de outrem, mas apenas de si mesmo.

Tinha tanto conhecimento útil que poderia ser diplomata, mas, por vezes só questionava-se o quanto era receoso de tudo o que poderia fugir-lhe ao seu controle ou levá-lo a alguma situação inesperada.

Tornara-se um ser sem atitude com os demais, com a população em geral e altamente enfático e agressivo com os amigos pessoais.

Mas sua agressividade se fazia branda, apenas entonava sua fala e gesticulava as mãos com maior ênfase.

Argumentava como um sábio quando em sua propriedade em pequenas reuniões de amigos, ministrava debates e rodas de conversa, porém não tinha voz ativa na política local, apesar de enorme influência que sua família gosava num passado não distante.

Talvez gostasse de se preservar, sentia-se seguro em se mantendo afastado de discussões e contendas mesquinhas que imperavam no contexto social da cidadela, de ficar-se distante e protegido de qualquer situação inusitada que colocasse sua pessoa contra a parede.

Não se via vivendo sob pressão de forças inerentes ao seu ser.

Miguel das Neves Alves estava retornando ao convívio social de modo lento e progressivo.

Alegava aos amigos que tinha sofrido atrofia cerebral, tanto tempo que ficara afastado e recolhido em sua casa devido à patologia que lhe acometera intempestivamente.

Foi ele, o catedrático professor, que teve a idéia inicial de fundar a Academia de Letras da Cidade dos Miguéis.

Numa noite de grande bebedeira no rancho de Ramires José de Freitas, após beberem muitos litros de vinho e vomitarem juntos à beira d’água manifestou grande interesse em criar uma instituição que trabalhasse com educação e cultura em prol da sociedade carente de informação.

Mas, devido a tantas ocorrências, as idéias vinham e se esfriavam.

Justamente nesse período de ebulição, algo inusitado na vida de Miguel veio a ocorrer, de súbito imprevisto.

Voltando a lecionar no colégio Capitão Mário Cunha, no início do ano letivo após as eleições para prefeito, estando de pé na sala na iminência de iniciar a chamada da turma da sétima série diurna, eis que adentra ao recinto uma criatura singela e detentora de um olhar que abateu Miguel como uma carabina abate uma ave.

Era algo inverossímil aos olhos do renovado professor, uma linda jovem no esplendor de seus poucos anos, algo em torno de quase uma década e meia de pura perfeição e formosura.

Miguel parara no tempo, estava abatido, flechado em seu coração de uma maneira que nunca sentira antes. Abobado, com um sorriso estranho nos lábios deu-lhe licença para que pudesse adentrar ao local agora florido e com um perfume que apenas o nariz de Miguel podia captar.

Começou a sentir uma sensação de renascimento e ao mesmo tempo de estranheza pela situação enfrentada.

Nunca imaginara ser alvo de uma paixão tão avassaladora quanto inesperada para um professor de três décadas vividas intensamente e particularmente sem amores.

O corpo da criatura era de uma beleza incomensurável.

Magra, não muito alta o que lhe dava um aspecto de fragilidade, cabelos longos e lisos, avermelhados como nunca havia visto antes, olhos negros como uma noite sem lua, e um sorriso assustadoramente belo, dona de uma simpatia, que gerava dentro de quem quer que fosse cumprimentado por ela, uma sensação de prazer e inquietude simultaneamente.

Era uma daquelas pessoas que logo pela manhã, ao acordar, já se fazem lindas, belas, donas de uma empatia cativante e que parecem nunca estarem de mau humor.

Miguel estava perplexo e ao mesmo tempo atônito. Seu coração batia de tal forma que ele próprio podia ouvi-lo com clareza; uma sensação adrenalante o deixava inquieto e ao mesmo tempo estático, olhava-a se dirigindo ao local onde sentaria por todo o ano letivo.

A vendo de costas, se dirigindo à carteira na qual escolhera sem muitas opções, já que a sala de aula se fazia lotada, percebeu quão singelo era o corpo daquela criatura divina.

Os cabelos vermelhos como chama caindo-lhe sobre toda as costas, uma cintura modelada como se fosse criada pelo mais inspirado artista, braços finos e longos assim como as pernas envoltas num tecido fino e de nobre textura, produzia em Miguel das Neves Alves uma sensação que até então não havia experimentado, uma nobre sensação como um anti-altruísmo, uma vontade de viver, uma necessidade de constituir família, um desejo de tê-la em seus braços para que a protegesse sem pestanejar, lhe desse todo carinho que uma mulher gostaria de receber de seu amado, lhe fizesse sentir segura em sua companhia e tudo mais que um homem completamente apaixonado pudesse alucinar.

O deslocamento da jovem até o local que visualizara, foi para Miguel algo como uma eternidade efêmera, um caminho no qual ele pudesse visualizar e programar todo o seu futuro ao lado daquela bela jovem de sorriso extremamente inebriante e avassalador.

Naquele dia, as horas letivas não passaram, Miguel estava lacônico por demais e ao mesmo tempo prolixo em suas explicações sobre as navegações que levaram a expansão ultramarina exploratória ao novo continente.

Todos os alunos que assistiam à aula sentiram o professor disperso, a falar vagamente sobre algo que parecia não sabia com precisão didática.

Chegando em casa naquele dia, não almoçou a comida preparada carinhosamente pela mãe.

Ficou estupefato por horas em seu quarto, e só saiu para lecionar à tarde porque sua mãe o interrogara sobre seu horário escolar naquele dia.

Miguel não via a hora de poder dormir para sonhar com aquela tenra criatura e no outro dia poder acordar para encontrá-la novamente.

Os dias que se sucederam foram para Miguel dias inigualáveis.

No papel de professor ginasial passava uma postura idônea, irretocável e de grande serenidade.

Mas, por dentro de seu coração, havia um turbilhão que controlava sua alma.

Sentia calafrios que corriam por todo o corpo constantemente.

Quando colocava seu pensamento naquela bela jovem e imaginava sua virgindade singela, pura, não corrompida pelos desejos mais profundos de uma alma adulta, sentia uma sensação de desgosto.

Desgosto por estar desejando incontrolavelmente uma pessoa que não poderia encaixar no perfil que Miguel tanto almejava, o de se apaixonar por uma mulher culta e que tinha a beleza em segundo plano; agora aquela beleza inefável se fazia presente em primeiro plano e pouco importava o que ela pensava e qual era sua ideologia em relação a tudo e todos.

Miguel somente pensava em tê-la em seus braços, fazê-la sentir-se mulher precocemente, e que ele sentisse ser desejado por ela e assim, criassem um vínculo perpétuo e mútuo de amor e proteção.

Numa noite quente, sem lua e com o céu recheado de estrelas Miguel das Neves Alves se viu folheando um livro de poesias de Vinícius de Moraes.

Logo na infância Miguel se apaixonara pela poesia nobre desse poeta do amor e agora, como que num momento de resgate de lembranças que ainda não foram lembradas, lia-o diferentemente de outrora, agora o lia com os olhos do coração, apaixonado e se sentindo vivo.

Seu coração batia sem cessar tanto que, ouvia-o perfeitamente e sentia a adrenalina correndo em suas veias e artérias. Pensou:

“A beleza é fundamental, como disse o poeta. A beleza externa expõe a interna. Sem a beleza exterior, seria como se a mais bela jóia fosse entregue de presente a verdadeira amada embrulhada num papel tosco, uma página de jornal a embrulhar o diamante mais raro. Todo o seu glamour perderia o charme”.

“Beleza é mais que fundamental, é a obra de arte de Deus expressa em vidas humanas. Imagem e semelhança do Criador enfatizada de uma forma pura, inigualável e inatingível, tentada ser criada pelo mais inspirado artista plástico ou pintor renascentista sem sucesso”.

Continuou a afirmar em sua envolta solidão:

“Somente Deus tem esse poder: Criar o belo, a beleza singela!”.

“Qual magia gera esse sentimento que me domina?”

“Qual química causa essa reação na mente e no coração de quem se apaixona?”

“Amar ao próximo como a mim mesmo. Isso é lei celestial. Mas a atração carnal não é tida necessariamente como esse tipo de amor que emana dos corações fraternos. O contexto é outro e não há paradigmas em minha vida. Esse amor que sinto é peculiar, é intenso, é nobre. É um tipo de amor que me faz sentir a necessidade de cuidar, de proteger minha amada. O que será que ela está a fazer nesse momento? Será que pensa em seu professor de História? Será que nesse momento está a masturbar por ele. Não! Ela é pudica por demais para exercer fantasias sexuais. Ou não? Será ela pudicícia ou profana? O que me faz pensar em seu recato é tão somente devido a essa beleza inverossímil que meus olhos até então não tiveram o prazer de observar em outro ser. Sua simpatia também é algo considerável. Muito gentil e amável com todos que mantém um mínimo de contato. Suas interjeições são excessivamente excitantes ao meu modo de ver e sentir, porém estou enfeitiçado, deturpo toda situação devido à sexualidade que aflora ao mínimo contato ou ao vê-la tão imponente em sua beleza magistral. Seu sorriso se torna, para mim, um potente afrodisíaco capaz de gerar os pensamentos e as fantasias mais obscenos e delirantemente excitantes à um homem de meia idade como eu”.

Essa bela jovem era de família humilde, substancialmente pobre em poder aquisitivo e potencial de consumo minguado.

Morava no bairro conhecido por vila dos cachorros e tinha dois pequenos cães.

Os pais trabalhavam fora o dia todo, o pai prestava serviço para Carlos Oscar Novaes como vendedor de sementes e grãos e, a mãe era secretária de um clínico geral.

Sua família era grande, possuía vários tios e tias e muitas primas.

Parecia que, todos os tios e tias só produziam meninas de cabelos avermelhados e colo sardento, não havia um homem sequer para as próximas gerações.

Esse fato causava estranheza por parte dos vizinhos e amigos da família.

Era muito engraçado quando alguma tia concebia, pois tinham sempre a certeza que mais uma criança fêmea iria nascer e não havia necessidade, por parte dos futuros pais, de comprarem roupinhas rosa e amarelas já que se criava um ciclo com as mesmas pequenas peças de roupas infantis.

Muitas bonecas e alguns apetrechos femininos também eram reutilizados sempre.

Angélica Cristina Pellegrini tinha quatorze anos quando retornou as aulas no inicio do ano letivo posteriormente às eleições.

Tinha ficado quase um ano sem freqüentar o colégio devido a uma pequena intempérie familiar.

Um tio que morava em Serras do Imperador foi recluso pela justiça por ter sido pego em flagrante transportando uma significativa quantidade de cigarros contrabandeados.

Dezenas de pacotes lacrados do produto ilegalmente comercializado estavam em seu poder, e passando por uma barreira policial voltando de uma viagem onde fora buscar o carregamento provindo da região sul da União Brasileira, se viu parado e designado a mostrar o que transportava em seu veículo.

Foi uma surpresa para os jovens policiais que faziam as vistorias em todos os veículos que por lá passavam.

Foi preso automaticamente e isso gerou um transtorno em toda a família Pellegrini. Uma família de origem italiana, pobre, simples, de grande humildade, todavia com uma idoneidade sem precedentes e que zelava pelo bom nome e tradições familiares de um sobrenome isento.

Todos os finais de semana se reuniam na casa de algum parente para celebrarem com júbilo as relações interpessoais que preservavam tanto.

Quando a noticia chegou foi um choque.

Um abalo sísmico que atingiu o alicerce da família Pellegrini em sua totalidade.

A tia, então só e com duas filhas e três cachorros machos para criar pediu ajuda à família de Angélica Cristina para que a cedesse para ajudar a tia nos afazeres e no trabalho que desenvolviam.

Tinham uma pequena fábrica que produzia trinta pares de sapato masculino por dia e o tio traficante desempenhava uma função importante nas linhas de produção, vendas e distribuição do produto manufaturado e, agora Angélica, inegavelmente solícita e prestativa, assumiria uma função na fabriqueta da família.

Angélica não foi sozinha a nova empreitada, outras duas primas pré-púberes e inegavelmente solícitas aderiram ao pedido de auxiliar à tia e suas pequenas primas-irmãs nos afazeres de simples complexidade que a família desenvolvia em Serras do Imperador.

Vários meses se passaram, o tio de Angélica se viu livre para reiniciar nova vida.

Dizia posteriormente ao cumprimento da pena em reclusão que tinha necessidade de vencer na vida e que os ganhos gerados pela pequena fábrica de sapatos não atingia suas expectativas de lucro, muito menos proporcionava o estilo de vida que almejava para si e toda sua família e, assim, num momento de desespero ganancioso, tentara vencer por meio ilícito.

Ressaltava perante todos que tinha aprendido a lição.

Pelos menos era o que dizia enfaticamente, a toda a grande família Pellegrini, como se tivesse que prestar contas de seus atos a todos os membros daquele análogo grupo, durante o período após a libertação.

Angélica então, retornava ao verdadeiro lar na Cidade dos Miguéis para retomar as atividades normais de uma pequena ninfeta prestes a completar quatorze anos.

Voltava a estudar no colégio Capitão Mário Cunha um ano e meio após sua morada em Serras do Imperador.

Foi um momento inesquecível para ela rever os amigos, os professores, reviver os momentos no pátio, nos corredores do colégio, as reuniões com as amiguinhas ninfas como ela em frente à cantina, rever seu pequeno amor, tudo para ela foi como um grande e longo período de inanição social e educacional, pois na linha de produção quase artesanal da fábrica dos tios não pôde freqüentar as aulas dos meses anteriores à sua volta.

Na pequena fábrica, trabalhava em três longos períodos, para que sua falta de experiência no ramo de produção calçadista fosse suprida com labor operário. Iniciava logo cedo os trabalhos de costura, colagem dos sapatos e dobramento de papelão para construir as supostas caixas que embalavam o produto final.

Sua singeleza e prestatividade eram enormes.

Extraia alegria dos momentos mais difíceis e saudosistas, relembrava-se constantemente da família, das amiguinhas e do colégio, do seu cotidiano na Cidade dos Miguéis, de seus cãezinhos de estimação e de um pequeno amor infantil que possuía por um aluno da oitava série noturna do Colégio Mário Cunha.

Ao adentrar a sala de aula daquele primeiro dia de retorno as atividades estudantis estava tão estupefata e ansiosa ao mesmo tempo em que não prestou atenção, não reparou um instante sequer naquele professor alto, magro, cheio de virilidade e que a olhava descomunalmente.

Apreciava cada detalhe daquele singelo corpo, o professor Miguel, porém seu olhar não foi correspondido. Não havia reciprocidade nenhuma por parte da jovem irradiante em sua enorme simpatia.

Não que fosse um momento de menosprezo ou coisa parecida, mas aquela bela e sorridente ninfa não tinha ainda uma mentalidade sexual evoluída, não possuía em seu âmago as concupiscências carnais que um adulto de trinta anos as detém em sua concepção sobre relações afetivas.

Miguel das Neves Alves, em relação a sexo, não era um dos homens mais idôneos que habitaram esse poluído planeta.

Tinha em sua mente os desejos mais ardentes, as fantasias mais inimagináveis, coisas que, sob certo aspecto, até naturais para um homem, mas que nas mulheres não são bem assim.

Não que as mulheres sejam pudicas por natureza, mas que, em se tratando de sexo, não o vêem como esporte como os homens o concebem.

Não o utilizam apenas e simplesmente para satisfação carnal, abatimento de presas (como dizem em rodas de boteco), sala de troféus ou algo do gênero, mas uma forma palpável e ao mesmo tempo abstrata de algo concreto que preencham suas vidas e as torne fortes e ao mesmo tempo protegidas.

As mulheres necessitam de um elo por mínimo que seja para que se tenha certa e peculiar relação com o sexo oposto, de modo que lhes possa propiciar segurança e conforto com a pessoa na qual escolheram para satisfazê-las, nem que seja uma única vez, por um breve e efêmero momento.

Há também, não podemos deixar de ressaltar, aquelas mulheres que têm verdadeira fissura por sexo. Sentem extrema necessidade em copular e copular várias vezes num único dia e que, por vezes incontáveis, são atraídas por diversos homens diferentes.

Sejam altos, baixos, gordos, magros, com cheiro característico ou fedor inigualável, algo as atrai neles.

Na Cidade dos Miguéis havia mulheres com esse tipo de comportamento praticamente em cada quarteirão do município.

Essas são verdadeiras escravas sexuais, se submetem as mais curiosas cenas e se tornam escravas, não de seu dono, mas de si mesmas, da necessidade pungente de se deixar penetrar, de sentir um corpo, qualquer que seja, pesando sobre os seus ossos e lhes trazendo orgasmos intensos (e muitas vezes consecutivos e sucessivos).

Pensando bem, sorte delas!

Há outras que fazem do sexo profissão. E essas, nós mortais tupiniquins e todo o resto da humanidade conhecemos bem.

Não acasalam por prazer ou excitação incontrolável, mas por uma substância que move o mundo e está inerente a todos nós, o dinheiro.

Essas são os cânceres do mundo afetivo e ao mesmo tempo exercem papel fundamental em todas as sociedades.

Imagine uma sociedade francesa do século XVIII sem prostitutas. Imagine o leste europeu pós-derrubada do muro de Berlim sem prostitutas. Imagine o sertão nordestino e o extenso litoral brasileiro sem prostitutas.

É realmente, num primeiro momento, inconcebível tal pensamento.

As prostitutas, por mais enfadonhas que sejam dentro de qualquer meio social “evoluído” ou “antiquado” possuem um charme peculiar. Enfadonhas no sentido de irem contra a grande instituição pregada com zelo pela religião católica: a família.

Não vivem para constituir, mas para degenerar, não existem para o consolo, partindo do pressuposto “amor ao próximo”, mas para quem as pague em espécie corrente na economia monetária do país em que exercem tal função laboriosa.

Possuem o empirismo da vida, sabem psicologia sem saberem quem foi Freud, sabem economia sem conhecerem a política monetária e, sabem como agradar muito bem um homem sedento e em busca de companhia, por mais artificial que ela possa ser.

Muitas nunca amaram, ou pelo menos dizem nunca terem amado, algumas dizem que amaram demais e foram decepcionadas em seu afeto, outras nunca tiveram nenhum tipo de problema em relações amorosas, todavia, de alguma forma todas estão lá, exercendo sua profissão por dias a fio, sem férias ou décimo terceiro salário.

“As mulheres são um verdadeiro mistério da criação”, dizia o poeta inebriado e nos braços de uma cortesã.

Voltando ao cotidiano da Cidade dos Miguéis, o professor de História Geral se via transtornado de amor.

Sentia-se estranhamente triste, como se de alguma forma tomasse consigo as dores da humanidade, sentia falta de algo abstrato, como se parte de sua alma ou espírito estivesse mutilada.

Começou então a pensar nos poetas romancistas.

Aquela classe de escritores que se não estiverem doentes de paixões avassaladoras não são nada.

Sem amores profundos e altamente relevantes (para eles) se sentem analfabetos de inspiração para redigirem um pequeno texto.

“Será que eles eram eternamente assim?”, indagava-se.

“Viviam de amor e para o amor?”, questionou-se.

“Estavam sempre em busca do amor inatingível e por ele dariam suas vidas? Sem essa concepção não teriam se encontrado profissionalmente, não emanaria de suas profundezas mentais os textos doloridos e recheados de belas rimas e palavras de desgosto, resignação e contentamento. Seriam apenas matéria nula que vagam errantes pelo mundo ou se tornariam responsáveis por alguma repartição pública e se chafurdariam nos papéis burocráticos para esquecerem sua verdadeira essência”.

“Existem muitos bancários que se anulam para a poesia. Existem muitos farmacêuticos que se neutralizam para a poesia. Tornam-se os senhores nulidade. Motivo de força maior que os impedem de expressar sentimentos e emoções num simples pedaço de papel pautado ou sem pauta, para um verdadeiro poeta tanto faz”.

“Quem nunca amou verdadeiramente um dia”, indagava a si mesmo o atordoado professor. “Quem nunca encontrou uma paixão tão avassaladora que fosse capaz de cometer as mais banais loucuras”, confabulava sozinho em meio à multidão na praça central.

Num momento de resignação profunda, iniciou, a andar pelas ruas estreitas da cidadela, uma canção antiga e ao mesmo tempo atual em sua essência jubilosa, porém ínfima, ainda assim, necessariamente cabível naquele tempo presente:

“O amor é chama ardente, é ferida sintomática que sangra ao tempo certo, é a exuberância que aflora aos olhos, é compadecer-se plenamente, é o mais sutil desejo... Amor, amor, amor... Estou a lhe buscar... Amor, amor, amor... Venha me encontrar...”

“A vida é uma poesia intensa e todos somos pseudo-poetas”, disse em voz alta a olhar para seus pés calçados.

“Quem não vê a vida como um texto poético estará fadado ao ceticismo, terá como efeito colateral o niilismo que não aceita algo plausível e substancial, como a ternura, e que não enxerga o caminho para ir ao encontro dessa benevolência passional. Deste modo, vive amargamente, impar em meio a companhias vagas”.

“Agora entendo perfeitamente o escritor G. G. Márquez que dizia sempre em seus textos e diálogos que a vida deve ser vivida de forma poética e a verdade dos fatos não deve ser vista como invenções recheadas de retóricas, mas possuidora de bases que inspirem a característica do que nos encanta, nos toca, nos eleva, e que nos remete a um estado paralelo de encarar a realidade”.

“Não sou e nem serei escritor poeta, mas concordo plenamente com a poesia da forma que Márquez escreve, é uma forma de prosa-verso”.

E sorriu ao sol.

“Isso é que é um veraz formador de opinião. Obrigado por existir Márquez!”

O agradecido Miguel das Neves Alves caminhava vagarosamente pelas ruas da tépida pacata cidade naquela noite incrivelmente morna e recheada de estrelas celestiais quando percebeu que um cachorro branco revestido de suave sujidade imundícia o acompanhava demonstrando certa alegria ao balançar ritmicamente sua cauda.

Parou a fitá-lo ligeiramente, o cão também parou reciprocamente.

Continuou e o cão prosseguiu a seguí-lo emanando gáudio típico de cães sem dono em busca de companhia breve.

Pensava, nosso erudito mestre, veementemente na jovem Angélica e o seu rosto mergulhado num turbilhão de pensamentos se fazia abstrato, porém não era necessário ver nitidamente sua figura imaculada, apenas sentia impetuoso frêmito.

Vislumbrava em sua mente os longos e lisos cabelos avermelhados, a silhueta corpórea modelada, relembrava o andar e até mesmo sua maneira de visualizar as coisas ao seu redor, quando sentiu tremenda sede.

Avistou logo um boteco ainda aberto e com alguns sertanejos e operários a beber no curto balcão, e, adentrando-se sob ímpeto, pediu cerveja fria.

O cão ficara do lado de fora e se entretera a revirar um pequeno cesto de restos domésticos inaproveitáveis.

No gole de cada copo borbulhava na mente de Miguel algumas palavras que fez questão de transpassar para um papel, e, adquirindo-o junto ao porta-guardanapos que estava em sua frente, escreveu utilizando-se de sua caligrafia quase ébria:

“A paixão e a razão são incondicionalmente antagônicas. A verdade e o amor andam lado a lado e se completam mutuamente”.

“Nossa! Por que estou a escrever isso?”, pensou crítico de si.

Continuando a beber, solicitando outra garrafa, com o papel guardanapo a sua frente e abaixo de seus olhos e a caneta em punho destro, redigiu então:

Anjo:

“Quão maravilhosa és tu, ó minha querida amada.

Sua beleza inigualável não encontro em outro lugar.

Nem nos livros de filosofia, nem nos mais belos romances publicados.

Portanto, inefável é o que tento exprimir agora.

Tu és a harmonia, a perfeição de formas, a qualidade do que é mais belo.

Deus, o Criador a fez assim:

Incomensurável em sua irradiante beleza,

Não apenas beleza estética que reflete aos olhos,

mas na totalidade do seu ser”.

Ficou, o professor e agora poeta de barzinho, Miguel das Neves Alves, estático a olhar para aquelas pequenas frases, redigidas com intenso sentimento, por minutos. Respiração controlada, olhos úmidos, mas não havia choro.

Estava apenas cansado e estafado de mais uma longa jornada cotidiana.

Achou aquilo uma coisa banal e sentiu leve pejo.

Sem perceber, guardou consigo aquele pedaço de papel frágil, fino e agora rabiscado com caneta esferográfica azul pela sua bela e torta caligrafia e pelos seus tortuosos pensamentos consternados.

Determinou conscientemente que resolveria o mais breve possível sua situação amorosa. Porém, não sabia ao certo se explanaria seu amor à bela jovem ou se sucumbiria à paixão e retê-la-ia em seu cerne por toda sua suposta breve passagem por esse plano existencial.

Um tempo significativo se passou sem que Miguel tomasse alguma atitude.

Tinha a oportunidade de observar sua amada diariamente e isso por vezes lhe acalmava o coração, outras vezes sentia que seria aquele o momento de se aproximar. Tinham certo diálogo e o professor demonstrava total controle nas palavras e nos atos de modo que ninguém percebia tal paixão recolhida.

O ano letivo estava pela metade, o cotidiano escolar era rico em situações, Miguel tinha muitos afazeres, de modo que o tempo passava rapidamente na Cidade dos Miguéis.

Marciano James
Enviado por Marciano James em 10/07/2009
Reeditado em 11/04/2012
Código do texto: T1691985
Classificação de conteúdo: seguro
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