Utopia e Urbanismo

Breve reflexão a partir da "Utopia" de Thomas More.

Hitlodeu é peremptório quando afirma, "o povo da Utopia, graças às suas instituições, é o primeiro de todos os povos, não existindo no mundo república mais feliz".

A felicidade da república Utopiana está no facto de ela se organizar para, precisamente, produzir felicidade como princípio supremo, que a razão fundamenta e que o verdadeiro prazer exprime como finalidade última.

Ora, a felicidade, sendo uma exigência racional, pressupõe, desde logo, a invenção - a partir de uma actividade descritiva que apela à imaginação e ao saber - de um espaço caracterizado pela harmonia e perfeição. A problemática do espaço não é uma questão despicienda. Pelo contrário, trata-se de afirmar a ordem sobre o caos, a organização e a sistematicidade, que fazem da cidade ideal o lugar por excelência da " verdadeira comunidade política ". A arte de governar (política) é a arte de governar a cidade (polis), cuja estrutura racionalmente pensada determina e estabelece os princípios que enformam os seus objectivos, quer na sua vertente mais pragmática (económica, social, cultural), quer na sua vertente simbólica. More não pôde deixar, como compreendemos, para um plano secundário o que é essencial. É com o rigor próprio de um urbanista que descreve, diríamos até à exaustão, o espaço de inscrição (material) da sua república ideal. De facto, utopia e urbanismo são temas que, com alguma facilidade, correm paralelamente. Diz-nos a propósito Jean Delumeau: " É que os fabricantes de utopias facilmente descambam em urbanistas e os urbanistas facilmente passam à utopia, tendendo a fazer-se legisladores. Uns e outros têm em comum a convicção de que o quadro da vida quotidiana actua profundamente no espírito dos habitantes e de que se pode modificar os homens organizando o espaço em que eles se movimentam. As cidades ideais (...) são sempre traçadas a régua e esquadro, vazadas em formas perfeitamente geométricas (...). A geometria dos arquitectos de utopias corresponde a uma elevada missão: tem de fazer da cidade ideal uma imagem do cosmos e reflectir a sua soberana harmonia " . Os exemplos são abundantes e elucidativos, como este mesmo autor refere. Pensemos a colónia de que Platão nos fala nas Leis, ou A Cidade do Sol de Campanella, e, com características muito próprias, a Cristianópolis de Valentin Andreae e Sforzinda de Filareto. Também, contemporaneamente, Le Corbusier, um dos pais da arquitectura moderna , concebeu, entre outros trabalhos de renome, o plano urbanístico de Chandigarh, no Penjabe e idealizou a "Ville Radieuse" (para um milhão e meio de habitantes). Se a arquitectura é, como nos diz Gillo Dorfles, "a arte da delimitação e da repartição espacial, a arte do número e da medida aplicada à criação" , de facto não é difícil reconhecer aos criadores de utopias uma apetência própria por essa "proto-arte" , enquanto condição prévia de rigorosa planificação - que se é de ordem geométrico-matemática, não deixa de ser também de ordem seguramente estética. Assim, uma lógica da "Verdade" e do "Belo" está apta a circunscrever, num sentido de totalidade, o plano mais amplo das relações entre os homens visando a felicidade.

Não podendo, evidentemente, constituir tema de maior desenvolvimento, retenha-se, como conclusão, duas ideias que nos parecem essenciais. A primeira, prende-se com o facto de que muito do pensamento utópico voltado para a construção da "cidade perfeita" se revestiu de aspectos premonitórios que o tempo futuro, de um ou de outro modo, não deixou de equacionar ou mesmo de realizar. Como refere ainda Delumeau: "Chamaram a atenção para a sociologia, para as economias planificadas, para as cidades-jardins, para a importância do enquadramento urbano, para o eugenismo. Afirmaram que a natureza poderia um dia ser inteiramente organizada e remodelada pelo homem. Insistiram na limitação da jornada de trabalho, na necessidade de instrução para todos e no lugar de capital importância a dar à cultura".

A segunda ideia diz respeito ao que se designa por anti-utopias ou distopias. Se até ao século XVIII constituiu um fenómeno mais ao menos isolado (possivelmente é Jonathan Swift, com as "Viagens de Gulliver", o seu inventor), é já neste século que a situação se inverte, ao assumir-se como discurso dominante face ao pensamento utópico. Obras como "O Admirável Mundo Novo" (1939), de Aldous Huxley ou o "1984", escrito por George Orwel em 1949, utilizam a utopia não para exprimir o desejo de uma sociedade perfeita e justa, mas para denunciarem o projecto totalitário que, segundo a opinião dos seus autores, aquela necessariamente encerra. Ora, o terreno por onde a crítica anti-utópica penetra desde logo é, precisamente, o esquematismo totalizante e mensurável que, afirmam os seus autores, se começa por ser de carácter espacial, não deixa de atingir o indivíduo no âmbito geral da existência, ao reduzi-lo a um simples número de uma álgebra absoluta.

Se esta é uma problemática que está longe de ser pacífica, o que é um facto é que, como nos diz Jean-Yves Lacroix, " em Utopia mesmo, se o todo é de facto o que dá sentido às partes, a unidade sistemática é, em troca, a condição para o desabrochar das diferenças individuais (...). Arrisca-se pois ao contra-senso quem não vê que o matematismo é esquemático nas utopias e que, antes dele, o que importa é o que ele permite imaginar " . É no interior deste processo de imaginação social que o paradigma utópico, mais que uma representação de formas e conteúdos, exerce a sua função essencial, que é o de pensar e propor uma alternativa radical à sociedade real "hic e nunc".

2000

Carlos Frazão