Constituição e invisibilidade do sujeito a partir do conto “O vampiro de Curitiba” de Dalton Trevisan.

O conto “O Vampiro de Curitiba” de Dalton Trevisan pode evidentemente ser definido de uma forma representativa como uma manifestação conflituosa que se processa entre o estereótipo da boa conduta social e o modelo desvirtuoso de certa imoralidade. Isso não parece ser difícil de ser percebido, uma vez que a posição do narrador-personagem se insere num olhar não totalmente desarticulado da realidade comum, contemporânea. Entretanto, devemos questionar: esta posição que o narrador ocupa e que serve perfeitamente (no conto) como marca decisiva para o entendimento de todo o processo narrativo, pode ser estendida ao caráter problemático de certa universalização da moral?

Se respondermos a esse questionamento pela afirmativa estaremos levantando uma problemática nada fácil de ser explicitada, embora pareça simples. Contudo, este parece ser o caminho para assim chegarmos a uma compreensão segura tanto do ser, quanto da sociedade que ele está inserido. Assim, quando lançamos os olhos sobre essa problemática necessária, podemos perceber uma sociedade fragmentada como resultado de um ser humano fragmentado. Visivelmente o ser humano se firma como meio para certas mudanças tanto no que diz respeito à sua conduta, quanto no que se refere à defesa e a prática de princípios estabelecidos.

Para que isso fique claro devemos compreender o fato de que diversos são os debates teóricos, sobretudo, em nossa contemporaneidade que diz respeito à identidade, à posição e a função do sujeito. Em um tom lúcido e questionador parecer sugerir certa especificidade e abrangência. Dessa forma, questionamentos diversos surgem, não obstante, como necessidades tornando-se ponto de partida.

Não raro perguntamos o que de fato é esse “eu” que se insere construindo a sociedade. Um “eu” que faz, observa, critica e se depara com os saberes de seu tempo. Esse “eu” que está nesse fluxo, nessa temporalidade parece ir num ponto bastante alto onde a sua história revela uma fragmentação, indubitavelmente.

O que é o sujeito e o que faz com que ele num tempo e numa contingência seja o que é?

A princípio percebemos o fato de que o ser se constrói a partir de duas perspectivas totalmente articuladas sem obrigatoriamente expelir uma a outra. Entretanto, nisso reside as suas particularidades sem apresentar a posição que o sujeito ocupa. Quer dizer, de um lado há a identificação do sujeito a partir de sua caracterização individual, subjetiva. De outro, há a referência aos aspectos sociais indispensáveis para toda essa reflexão.

Evidentemente, a posição do personagem do conto é a de quem observa. No seu campo de visão se encontram diversas mulheres que, por sua vez, despertam nele desejos sexuais. Todavia, se vê impossibilitado de realizá-los por dois motivos precípuos. Primeiro, embora se considere simpático não acha que seja provido de beleza que na sua visão é algo essencial. Segundo, não parece lhe ser dado o espaço necessário para que possa despertar o mínimo de atenção e sair de sua invisibilidade.

A tradição moderna dominante no estudo da literatura trata da individualidade do indivíduo como algo dado, um âmago que é expresso em palavras e atos e que pode, portanto, ser usado para explicitar a ação: fiz o que fiz porque sou quem sou e para explicar o que fiz ou disse você deve olhar para o “eu” (quer consciente ou inconsciente) que minhas palavras e atos expressam. A “teoria” tem contestado não apenas esse modelo de expressão, em que atos ou palavras funcionam expressando um sujeito anterior, mas a prioridade própria do sujeito. (Culler, 199.p, 107-108)

Segundo Culler, o sujeito está atrelado ao meio, isto é, a uma séria de desejos e valores que o sistema coloca. Isso quer dizer que pensamentos e ações são determinados por algo exterior ao próprio sujeito e nisso reside o que Michel Foucault chama de “descentralização”. No processo de constituição o ser humano é determinado por essas forças. Dessa forma, não deve ser definido como individualidade isolada do contexto social.

Definitivamente, o que o sujeito carrega como valor, como ideal, etc, está em conformidade como o já estabelecido. Sua constituição é permeada por um processo característico que o define.

No conto, por exemplo, vemos um personagem inserido em uma sociedade aparentemente machista marcada por um padrão de beleza e virilidade. A virgindade embora não seja marca de um ideal de pureza necessariamente, é explicitada como intenso desejo de posse. “Não quero no mundo mais que duas ou três só para mim” (Trevisan).

(...)Este, aliás, é o maior talento de Dalton Trevisan – a manipulação aficaz dos diferentes códigos sociais (que permite que um simples “cachacinha” inserido no momento adequado descortine todo um cenário suburbano).

O problema é que não há crítica nesse manuseio. Bem ao contrário, ele serve para reafirmar preconceitos e marcar a diferença entre nós, cosmopolitas, consumidores de arte, conhecedores de bons vinhos e da boa mesa, e essa gente, que enche acara e passa o dia se engalfinhando – patéticos em sua animalidade. (Regina Dalcastagnè, 2002)

De acordo com essa autora, Trevisan em contos curtos peca pela falta do aspecto crítico necessário para a representação verdadeira do outro. Segundo ela, a omissão dessa crítica acaba por legitimar velhos preconceitos sem antes esclarecê-los e combatê-los. Afirma que Trevisan faz de seu cinismo um estilo e que assim trata os pobres e marginalizados com mais desprezo, diferentemente da forma como trata as elites.

Para todo caso, esse conto “O vampiro de Curitiba” embora curto possui sim, de certa forma, uma crítica se não à sociedade diretamente ao menos às condutas femininas dessa sociedade. Dessa forma, temos a mulher virgem – quase vulgar – que se objetiva em provocar os homens, “se não quer porque exibe as graças em vez de esconder?” (Trevisan). Podemos ver também a mulher que trai o marido, “veja, parou um carro. Ela vai descer. Colocar-me em posição. Ai, querida, não faça isso: eu vi tudo. Disfarce, vem o marido, raça de cornudo” (Trevisan).

Posto isso podemos compreender também que no conto a invisibilidade do sujeito representa, sobremaneira, uma característica bastante ostensiva na sociedade contemporânea que é a solidão. “Tem piedade senhor, são tantas, eu tão sozinho”. (Trevisan). Essa fala do narrador-personagem pode, evidentemente, representar uma espécie de solidão tida como “solidão acompanhada”, ou seja, o personagem se sente só mesmo que diante de outras pessoas. Isso quer dizer que a sua posição se firma com a presença do outro embora esse “outro” pareça não afirmá-lo.

Aqui a idéia de representatividade deve ser encarada como uma tentativa que busca precisamente o olhar do outro. Se não se seguisse essa perspectiva o conto perderia toda a sua relevância uma vez que o personagem em todo momento deseja ser visto, observado. Portanto, sair da invisibilidade que o enclausura, que o condiciona a observar e não a ser observado. “Desgraçada! Fez que não me enxergou” (Trevisan).

Assim, o sujeito, porque inserido em um meio social, se descortina mostrando-se como personalidade fragmentada e individual. Nem sempre se firma em meio à contingência como visibilidade atuante. Sua constituição pode evidentemente ser concebida nessa evidenciação: de um lado sua individualidade muda, de outro certa contingência que o concebe inserida em um meio que o define.

Referência biográfica

DALCASTAGNÈ, R.. Uma voz ao sol: representação e legitimidade na narrativa brasileira contemporânea. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, v. 20, p. 33-77, 2002.

CULLER, Jonathan. Teoria literária: uma introdução. São Paulo: Beca produções culturais Ltda, 1999.

MARICONI, Ítalo. (Organização, introdução e referências bibliográficas).Os cem melhores contos brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva,2000.

Leon Cardoso
Enviado por Leon Cardoso em 09/07/2009
Código do texto: T1690293
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