XX - Seu nome era Neander Tales

Os dias seguintes foram, para Miguel, dias de refazer a vida, de reiniciar ou de iniciar mais um novo ciclo cotidiano.

Estava curado da herpes-virus e tinha reagido bem a cirurgia para extração do tumor maligno que acometia suas costas.

O tratamento quimioterápico surtiu eficaz efeito e, Miguel das Neves Alves, na sua insistência pela vida, superou novamente outra patologia nefasta, de mau agouro.

Voltava mais uma vez a lecionar depois de outra intempérie do destino.

Dessa vez, três intempéries simultâneas bateram um novo recorde à história sofrida desse professor nefelibata.

Miguel só não se esquecera de sua pequena amada.

Agora um homem só, sem parentes próximos ou distantes, pouco mais de três longas e rápidas décadas vividas e vivenciadas de forma intensamente peculiar e de características muito próprias.

Aconselhado por Cristino a se casar para não cair na misantropia sentimental que assola homens maduros e solitários que preferem um copo de bebida ao cotidiano de um lar com esposa e filhos, Miguel das Neves Alves decidiu que tomaria atitude em relação a sua amada anônima para os demais e lhe designaria para uma conversa na qual explanaria toda sua emoção e sentimento.

Paralelamente a esses fatos a vida política da pequena e agitada cidadela caminhava recheada de impasses, contradições, corrupção e discussões relativas ao clientelismo vigente desde o inicio de sua emancipação política.

Muitos que exerceram sufrágio em prol da candidatura da atual prefeita reclamavam não receber ajuda do município para satisfação de suas necessidades. Muitos pediam diariamente, sem sucesso, botijão de gás, material escolar, remédios, passagem de ônibus para outras localidades, veículos oficiais para viagens particulares, combustível, roupas e dinheiro, é claro.

Apenas os familiares, amigos próximos da família e o alto escalão que fingia laborar na prefeitura é que tinham esses privilégios.

Outros necessitavam propinas para liberação de alguma licitação ou exigiam superfaturar obras municipais. Quase todos os vereadores eram adeptos de propinas e superfaturamentos.

A câmara dos vereadores era um âmbito recheado de prevaricações, peculatos, omissões, falsidades e muita, muita condescendência.

Pessoas ligadas ao ex-prefeito exigiam cargos públicos nas diversas repartições espalhadas pela cidade.

Em meio a tudo isso, a prefeita Maria Cecília, tentava manter a lucidez em uma administração voltada para obras públicas e captações de recursos.

Sua prioridade, equipar o sistema de saúde municipal, não teve realização eficaz, pois o Estado não contribuía com renda significativa e o arrecadamento municipal era minguado.

Setenta e oito por cento da renda bruta do município era gasta com salários dos quinze vereadores e dos demais funcionários que passavam de quatro centenas e mantinham-se espalhados pelas repartições municipais, não necessariamente a trabalhar.

A melhoria da infra-estrutura também não se materializava.

A folha de pagamento dos vereadores sucumbia cinqüenta e dois por cento do valor bruto arrecadado mensalmente pelos cofres públicos. Isso sem contar o alto escalão do poder executivo que recebia quantias exorbitantes para a realidade local todo o quinto dia útil.

No primeiro ano de seu mandato, a Santa Casa de Misericórdia, o único hospital da cidade, decretou falência.

Havia anos, foi sugada até a última gota de seus recursos e já não conseguia oferecer atendimento digno ou ao menos atendimento mínimo a população geral. Os equipamentos não funcionavam e os salários dos funcionários e dos médicos fazia-se atrasado há meses. Os doentes, então, eram examinados por alguns poucos médicos nos pequenos centros de saúde instalados em alguns bairros.

Muitos morriam sem atendimento, já que a fila de espera por médico especialista era aumentada diariamente.

Outros saravam em casa mesmo se automedicando ou tomando ervas e comendo raízes.

A prefeita Maria Cecília tinha boa intenção com sua população, porém a corrupção instalada há décadas não permitia a obtenção de recursos em curto ou médio prazo em quantidade que sanasse todos os impasses administrativos e públicos.

No segundo semestre de seu terceiro ano de mandato obteve uma proposta para a instalação de uma pequena fábrica de óleo de milho e seus derivados que geraria empregos diretos e indiretos a população e seria, quem sabe, o grande trunfo político para as próximas gerações dos Ferreira Barbosa e Castro.

Todavia, era necessária a aprovação, por meio de votação solene na câmara dos vereadores.

Fazia-se imprescindível um mínimo de setenta por cento dos votos, que deveriam ser favoráveis à instalação da fábrica.

Mas, por debaixo dos panos, nos bastidores da política local, o então presidente da câmara Carlos Oscar Novaes, pediu uma quantia exorbitante junto à comissão empresarial que implantaria a indústria, para cada vereador votar favoravelmente e assim obterem a aprovação do projeto industrial.

Os empresários desistiram rapidamente da idéia, acharam um absurdo o pedido de propina, disparatado o excesso de exação praticado pelos políticos daquela minguada cidadela, e se dirigiram à cidade vizinha, que também tinha grandes plantações de milho.

Conseguiram não só a aprovação do projeto como também a rápida instalação, já que os políticos arrabaldes deram isenção de impostos por cinco anos aos empresários sorridentes.

Mais uma vez, a cidadela não teve chance de crescer, de evoluir industrialmente.

Era como se, por conta do destino de uma politicagem fadada à estagnação, tivesse que subsistir economicamente como um lugar exclusivamente agrário, produtora apenas de matéria-prima e com um pequeno turismo pesqueiro.

O que se apercebiam assintomaticamente, as autoridades locais e a população em geral, era o aumento percentual do desemprego em níveis exorbitantes anualmente.

A população economicamente ativa não encontrava labor nos setores sociais que, de alguma forma, geravam emprego e conseqüentemente renda capital.

Via-se então, uma população ociosa, jovens que não visualizavam futuro e se perdiam em meio a bebidas, jogatinas e drogas.

Os idosos deixaram de sonhar e se viravam com a experiência adquirida ao longo dos anos vividos. Meninas usavam suas vaginas para obterem parcos rendimentos e os garotos roubavam bicicletas, propriedades, interiores de veículos e muitos se tornaram vendedores de substâncias entorpecentes.

Era a única forma de obterem recursos para exercitarem seu potencial de consumo.

A cana-de-açúcar rodeou a cidade por conta de uma usina de álcool que se situava a algumas dezenas de quilômetros da Cidade dos Miguéis.

Mas essa usina não gerava empregos locais. Trazidos da região nordeste, por conta de mão de obra barata, sertanejos brasileiros desnutridos chegavam aos montes para labutarem e pelejarem na região como cortadores de cana-de-açúcar.

A usina alugava pequenas casas de dois ou três quartos e alojavam dúzias dessas espécies de trabalhadores.

Muitas casas eram locadas na cidadela e, visualizavam-se grandes quantidades de nordestinos espalhados pelos cômodos de portas e janelas abertas jogando baralho ou tocando instrumentos de cordas trazidos por eles mesmos como forma de distração e lazer nos períodos de folga.

Acumulavam o máximo do pouco dinheiro que arrecadavam e voltavam para sua origem. Não consumiam no comercio local, não compravam nada.

Retiravam os rendimentos dos colchões e ao final de cada safra dirigiam-se rumo acima da União Brasileira.

Focarei essa narrativa a partir de agora em nossa personagem principal, peça chave desse pequeno e ainda desconhecido romance literário.

Marciano James
Enviado por Marciano James em 08/07/2009
Reeditado em 11/04/2012
Código do texto: T1688279
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