XXXIV (FINAL)

Em meio a tudo, novas eleições se faziam presentes nos municípios do estado.

A Cidade dos Miguéis recomeçava a erupcionar de novo.

Carlos Oscar Novaes era o candidato da situação.

Tinha grande apoio dos políticos e a população local o via como novidade para o cargo, o que de certo modo lhe trazia uma leve aceitação.

Dizia, o já ancião, José Pedro Barbosa da Silva Ferreira e Castro, ser uma questão de tempo para mais um escolhido seu ser eleito para comandar a política local.

Era quase certa mais uma vitória da família Ferreira e Castro.

Outros candidatos se faziam concorrer, alguns tinham boa aceitação e credibilidade, outros estavam ali para participar da festa.

Havia mais partidos políticos fundados por alguns jovens sedentos de atitude e movidos por sonhos e utopias políticas e alguns outros fundados por pessoas emergentes que queriam dar sua parcela de contribuição social, seja se corrompendo, seja deixando-se corromper.

O mandato de Maria Cecília se findava sem impasses comprometedores.

“Fiz o que pude”, dizia ao povo, num ato de prestação de contas.

Miguel gabava-se de manter-se neutro por todo o mandato de Maria Cecília.

Nunca necessitou favores. Nunca fez uso do clientelismo tão vigente naquela cidadela no qual cresceu, se criou e se fez homem.

Essa independência política lhe deixava orgulhoso de si, e, deste modo, fazia questão de preservá-la como uma jóia rara.

A vida voltava à normalidade e a pequena Cidade dos Miguéis já não era mais tão pequena como fora outrora.

Havia mais bancos financeiros, mais lojas comerciais, mais bares, mais casas, mais gente, mais cachorros, mais carros, mais escolas, mais vida.

Miguel das Neves Alves mantinha-se calmo. Não fora naquele local fúnebre ver os assassinos mortos. Ficara em casa em reflexão intensa.

Pensava na vida do homem, agora preso, e tentava perdoar-lhe.

Doía o seu coração em saber que às vezes a maldade aflora e causa estragos irreversíveis na vida das pessoas.

Abrira e bebera uma garrafa de vinho tinto a sós, e pôs-se a vomitar em seu banheiro de proporções reduzidas.

Parecia que estava se limpando de tudo o que a vida lhe impora até então.

Tomou banho por longos minutos e ao se enxugar ouviu bater em sua porta.

Eram seus amigos Douglas Hernesto Sanoj e Ramires José de Freitas.

Ramires viera da capital para abraçar seu grande companheiro e lhe desejar longevidade serena.

Os três se abraçaram ainda na porta de entrada e o que se viu, foi um ato fraterno, uma cena de grande comoção.

Alegremente, Miguel chamou seus dois companheiros de porres homéricos para degustarem outras garrafas de vinho que havia em sua residência.

O convite foi prontamente aceito.

Tiveram longo diálogo.

Miguel dizia que sua vida era um filme emocionante e que se ocorresse outra intempestividade súbita não agüentaria seu coração calejado de emoções e, possivelmente sucumbiria.

Ramires disse-lhe que via naquilo tudo muito romantismo gótico e Douglas então lhe sugeriu:

“Tens que começar a escrever esses fatos. Jogue uma carga literária na narrativa, use frases poéticas e terá um livro grandioso em suas mãos”.

“Uma autobiografia?”, indagou Miguel com brilho extasiaste no olhar embriagado.

“Isso mesmo, uma autobiografia. Não Kafkaniana, mas escrita como W. Sumerset Maugham escrevia”.

“Vocês estão sonhando, não me vejo escritor de nada. Se fosse escrever, escreveria sobre História Medieval, isso sim!”.

“E tem outra, existem muitos livros para serem lidos e apreciados, um livro a mais não se faz necessário. Machado de Assis se remexe toda vez que nasce uma banalidade literária sem fins culturais”.

Para completar o raciocínio, o bêbado indagou:

“Será realmente necessário um livro sobre Miguel das Neves Alves?”

Na iminência verborrágica, o professor entorpecido respondeu-se:

“Um livro sobre minha vida seria prepotência demasiada”, ressaltou.

“Mas sua vida não foi vivida como as outras vidas, meu caro, você faz parte do movimento contracultural dessas paragens”, enfatizou Douglas Hernesto Sanoj a beber ferozmente aquela bebida alcoólica proveniente do suco fermentado da uva.

“Além do mais se faz necessário, para a fundação da Academia de Letras da Cidade dos Miguéis, que os seus fundadores escrevam livros”.

“Esse projeto está maduro e agora se faz notório a sua criação”.

“Então, caros amigos, escrevam livros infantis”, rogou o professor umedecendo levemente seus olhos fundos.

“A Cidade dos Miguéis cresceu, possui um nível cultural mais elevado, pessoas com formação acadêmica circulam pelas ruas e se estabelecem por aqui, crianças necessitam contato com obras de relevância cultural para se aperfeiçoarem, e assim, garantirem um futuro promissor para essa pequena cidade em evolução quase contínua”, completou depois de engolir saliva abundante.

“Vamos brindar o recomeço sem impasses fortuitos”, completou Douglas Hernesto Sanoj.

“Um brinde a Miguel das Neves Alves”, disse Ramires José de Freitas a levantar seu braço direito com o copo cheio, como se erguesse uma espada e declarasse a independência de uma grande nação.

“Algo de bom agouro florescerá em nossas vidas. Tenho fé e já visualizo isso”, disse Miguel a sorrir.

Na manhã seguinte o calendário semanal marcava sábado.

Era um dia ensolarado e belo e os pássaros cantarolavam em alarido retumbante.

O professor pensava intensamente em tudo o que havia lido e compreendido no decorrer de sua existência e, resignado, conscientizou-se de sua ignorância.

A contracultura e o dadaísmo foram relembrados e repassados, sua mente revia e se deliciava com a capacidade humana de criar e de não-criar.

Folheava absorto, Cândido ou O Otimismo de Voltaire, e raciocinava sobre “o melhor dos mundos possíveis” citado por Pangloss, o Filósofo Alemão.

Mas, Pangloss não estava sozinho ao final da obra: Na Turquia, Cândido, Martinho, o fiel Cacambo, a senhorinha Cunegundes e a velha; no Capítulo XXX estavam todos juntos, unidos trabalhando, interagindo, combatendo o ócio e cuidando do jardim.

Miguel estava só e sabia disso.

“Oh Deus, são somente eu e Vós”.

“Permita-me que eu os perdoe. Não carregarei o amargor da vingança comigo!”

“Eu os perdôo!”

Dito isto, se regozijou.

Pensara anteriormente a essa profunda reflexão em, por meio de sua racionalidade, explanar suas filosofias adquiridas por meio de um livro.

Uma única obra definitiva.

“Tudo não passa de cópia. Serei eu mesmo uma cópia mal acabada?”

“Se fosse como Platão, Descartes, Spinoza ou Locke tudo seria diferente, minha vida seria, então, um turbilhão de pensamentos canalizados em forma escrita. Escrita contestadora, escrita verdadeira.”

“Sinto-me pequeno, muito pequeno para tamanha responsabilidade com a humanidade.”

Miguel pretendia escrever o grande livro, como havia intitulado seus pensamentos metafóricos, concretos e racionais, tudo vivido num mesmo tempo e instante.

Mas, achava-se limitado e simultaneamente expansivo.

Limitado na escrita, expansivo em pensamentos. Humano em demasia, apóstolo de Nietzsche.

E, na expansão tamanha, retinha-se.

Todavia, algo emanava de seu inconsciente de forma progressiva e impetuosa.

“Seria isso que Walt Whitman sentia quando deu início ao seu longo e único livro?”

Miguel pôs-se à frente do seu ultrapassado computador, respirou fundo, buscou na imensidão de sua mente todas as situações enfrentadas.

Relembrou de sua infância, de sua adolescência, da vida de seus pais, de seus amigos, de seu amor...

Deu inicio a um sucinto “manuscrito digital”, narrando sua existência de forma poética e maravilhosamente rica em detalhes.

Formava personagens vero-fictícios e cultivava-lhes chama.

Seus textos criavam corpo à medida que as horas passavam e nosso novel escritor dava continuidade veloz aos capítulos de sua obra original.

Quem a leu, no futuro, pôde constatar que se iniciava assim:

“Havia, num passado não longínquo, uma cidadela pobre, cravada no canto norte...”.

FIM

Marciano James
Enviado por Marciano James em 03/07/2009
Reeditado em 11/04/2012
Código do texto: T1680442
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