O ENFRAQUECIMENTO DA VONTADE NO CONSENTIMENTO MATRIMONIAL
Nos últimos anos, sobretudo a partir do advento da chamada revolução sexual, ao lado da emergência dos movimentos feministas, notou-se um crescente processo de esfacelamento nas uniões matrimoniais. O compromisso de fidelidade e unidade emitido no ato do consentimento tornou-se fragmentado por um novo contexto cultural que fez o terreno, outrora firme e resistente, tornar-se movediço e arenoso.
O conhecido “até que a morte nos separe” foi eclipsado pelo adágio relativista de Vinícios de Morais, “o amor é eterno enquanto dura”. Facilmente se percebe que emerge um contexto cultural duvidoso com uma linguagem confusa que, a bem da verdade, é fruto de uma distorção da concepção antropológica objetiva, favorecendo o ressurgimento do relativismo moral que patrocina a “cultura de morte” e consequentemente enfraquece o ato da vontade.
O que nos inquieta é saber quem está em crise? O matrimônio, “pelo qual o homem e a mulher constituem entre si o consórcio de toda a vida, por sua índole natural ordenado ao bem dos cônjuges e à geração e educação da prole” (Cf. Código de Direito Canônico, Cân. 1095 § 1) ou as pessoas que foram alcançadas pela mentalidade relativista e hedonista de nossos tempos?
O conteúdo do matrimônio é primariamente positivo e, ganhando suas raízes na estrutura antropológica da pessoa, atinge às exigências fundamentais da vida humana: a necessidade de sair da própria solidão, abrindo-se para uma mútua e exclusiva doação, e a perpetuidade do vínculo interpessoal instaurado. Por isso, a disposição que formula a juridicidade do afeto humano num «consórcio permanente entre homem e mulher, ordenado à procriação da prole» (cân. 1096), adquire valência profunda na vida das pessoas: «o Concílio descreve certamente o matrimônio como uma íntima communitas vitae et amoris, mas tal comunidade é determinada, seguindo a tradição da Igreja, por um conjunto de princípios de direito divino, que fixam o seu verdadeiro sentido antropológico permanente» (BENTO XVI, Aloc. à Rota Romana, 27 de janeiro de 2007).
De fato, é de conhecimento geral que a união entre homem e mulher, consagrada no matrimônio, é para durar toda vida e tornar-se fecunda pela abertura aos filhos. Este evento, na província da fé, vira sacramento pela misericórdia bondosa do Nosso Senhor, Aquele mesmo que disse: «o que Deus uniu, não o separe o homem» (Mt 19,6).
A causa eficiente desta união, em que entra a graça do sacramento pelo ministério deixado por Cristo à Igreja, é o consentimento, «ato de vontade pelo qual um homem e uma mulher, por aliança irrevogável, se entregam e se recebem mutuamente para constituir o matrimônio» (cân. 1057 § 2). Novamente o Código rebate que o vínculo que os cônjuges estabelecem entre si, por sua natureza é perpétuo, estável e inalterável, nem por outro ato positivo da vontade nem pelas contingências eventuais: «o matrimônio tem uma sua verdade, para cuja descoberta e para cujo aprofundamento concorrem, harmoniosamente, a razão e a fé, ou seja, o conhecimento humano iluminado pela Palavra de Deus, sobre a realidade sexualmente diferenciada do homem e da mulher, com as suas profundas exigências de complementaridade, de doação definitiva e de exclusividade» (BENTO XVI, Aloc. à Rota Romana, 27 de janeiro de 2007).
O pensamento da Igreja acerca do consórcio matrimonial entre um homem e uma mulher, desta feita, está alicerçado na sã filosofia e na Revelação Divina, contida na Palavra de Deus. O consentimento matrimonial, desta afeita, é um ato da vontade, em profunda liberdade, dirigido ao fim último que é a felicidade e o amor do casal. O que se questiona é se a vontade pode ser influenciada pelo conjunto de idéias que formam a mentalidade predominante de um momento?
Entendo que o atual momento, também chamado por alguns de pós-moderno, constitui um momento sui generis de nossa história. A filosofia moderna colaborou sobremaneira para que aflorassem novas correntes de pensamento que aos poucos fosse sendo formatado um novo contexto cultural, determinante para o exercício da subjetividade. Tal contexto não é de todo objetivo quanto à compreensão antropológica da pessoa humana.
Novas postulações acerca da verdade, da liberdade e do agir livre do homem, sobejamente influenciadas por mecanismo de ordem econômica desfavoreceram enormemente a compreensão objetiva da antropologia e do ato da vontade da pessoa humana. Pensadores diversos, materialistas e negativamente existencialistas, ajudaram a postular compreensões que favorecem o distanciamento da verdade. Ricoeur qualificou Freud, Marx e Nietzsche de «mestres da suspeita», tendo no espírito o conjunto dos sistemas que representa cada um deles, e talvez, sobretudo a base oculta e a orientação de cada um ao entender e interpretar o “humanum” mesmo. Estes mestres influenciaram e influenciam enormemente nosso atual contexto.
O que se pode perceber é que o atual contexto desfavorece a plenitude do exercício nobre da vontade. O caminho de busca do bem ao qual tende a vontade torna-se influenciado pelas afecções sensíveis das paixões. O relativismo moral e a falta de consciência da dimensão transcendente da pessoa facilitam a ascendência do império dos sentidos sobre a objetividade da vontade.
Neste contexto, o consentimento matrimonial torna-se viciado por uma mentalidade que perdeu seu fulcro objetivo e sedimentou-se sobre a base das paixões e dos prazeres dos sentidos. O outro com quem me caso me é interessante enquanto me proporciona prazer e bem estar. O hedonismo, que marca o universo fantasioso da maioria das pessoas de nosso tempo, cria nelas uma expectativa contrária ao sofrimento e à necessidade do empenho em favor da superação de desafios. Importa o prazer e o bem estar. Nossas crianças são logo iniciadas nessa mentalidade mediante os meios de comunicação social e através do convívio social, onde a mentalidade vai sendo disseminada silenciosamente.
O capitalismo selvagem existencialmente favorece o processo de internalização da mentalidade hedonista e do descartável na vida das pessoas. O excesso de propaganda de consumo está favorecendo um olhar sobre a pessoa como mercadoria que nos interessa ou não. Existe, desta feita, uma realidade gigantesca e ao mesmo tempo vazia diante de nós. As pessoas se tornaram insaciáveis e buscam a todo custo satisfazer seus desejos e até mesmo aventuras. O processo de continuidade, em todos os níveis, cede ao processo de permanente descontinuidade. Uma ojeriza se instala contra tudo que é fixo e permanente. Assim como é normal e até dinâmico trocar de bar, de lanchonete, de restaurante, de igreja, de carro, de celular, de lap top, também é normal trocar de cônjuge. O ser humano, assim, deixa de olhar para si para buscar fora de si uma aparente satisfação de suas ânsias e compulsões.
Posto isto, podemos afirmar que o consentimento matrimonial e o matrimônio em si não estão em crise, mas as pessoas. O ambiente cultural pobre, e tantos outros elementos que ovacionam a existência de uma pessoa, não têm o poder de anular in totum sua liberdade e vontade, poderá, contudo, condicioná-la ao enfraquecimento do afeto e da própria responsabilidade. Mesmo que este condicionamento não produza um distúrbio de ordem patológica, pode ofuscar sua capacidade de discrição de juízo, prejudicando sobremaneira o consentimento.
Vendo tal realidade e o esfacelamento que a célula mãe da sociedade, a família, vem sofrendo, brota dentro de nós uma inquietação: que fazer para que tal situação se reflua? A princípio parece ser difícil redimensionar as opções O mar parece bastante revolto e a situação é de onda. A história sempre teve suas ondas que passam, mas deixam atrás de si um rastro de estragos que leva tempo para se recompor. O Magistério Ordinário da Igreja, não poucas vezes, tem levantado sua voz sobre os aspectos já descritos. Primeiro, não temos como fortalecer nossa vontade e viver o consentimento sem a Graça de Deus que os sacramentos nos oferecem; segundo, os que dão seu consentimento matrimonial necessitam se abrir à grande família que é a Igreja para viver a comunhão saudável e libertadora com outras famílias, fugindo do individualismo e se colocando a serviço.
O Papa João Paulo II, na sua Exortação Pós Sinodal, Familiaris Consortio, nos atenta para a necessidade vital de uma efetiva Pastoral Familiar como serviço da Igreja às famílias. Isso nos parece um caminho bem objetivo para a superação dos desastres causados pelos novos tempos à instituição familiar, fundamentada no ato natural da vontade de emitir o consentimento matrimonial livre e perpétuo diante de Deus. Nesta Exortação o Papa chama a família de Igreja Doméstica, concepção que alarga imensamente os horizontes da vocação familiar. Quando uma família atinge esta concepção de si mesma ela atinge o fim último de sua finalidade: ser sinal de comunhão e amor.
Para chegar a esta finalidade é preciso levar em conta que “o princípio interior, a força permanente e a meta última de tal dever é o amor: como, sem o amor, a família não é uma comunidade de pessoas, assim, sem o amor, a família não pode viver, crescer e aperfeiçoar-se como comunidade de pessoas”(João Paulo II, in Familiaris Consortio, nº 18). A tarefa da Pastoral Familiar e demais serviços de promoção e proteção à família devem estudar bem o contexto social e humano que enfraquece o ato da vontade no consentimento matrimonial e elaborar uma prática alicerçada nos princípios vitais da sã antropologia cristã. O momento atual é de recuperação de princípios que possam oxigenar a existência de tantas “criaturas oprimidas” pelos caprichos de uma vontade fragilizada pela influência inglória de um tempo que pulveriza as existências com o inócuo.
Se a quebra do consentimento institui sofrimento e dor na vida dos cônjuges e de seus filhos, a promoção dos valores e a humanização das pessoas a partir dos ensinamentos do Evangelho, sana e previne as lacunas que o relativismo pode provocar no coração da família. Se a prática do Ágape de Cristo na vida conjugal tem fomentado o fim do amor e da vida no seio de tantas famílias, somos avalizados por este mesmo Ágape a lutarmos em favor desta estrutura natural que é o fundamento do arcabouço social: a família humana.