Rumor de uma folha seca
Imagine uma enorme mangueira numa manhã de intenso calor. Aproxime-se dela lentamente; entre em sua sombra, sinta seu cheiro; observe a textura do seu tronco; olhe para cima, veja seus galhos e seus frutos. Em seguida, perscrute os pequenos ramos, e, por último, as folhas: admire-as cuidadosamente, inicialmente como um bloco, como se juntas formassem um só órgão; e, depois, uma a uma: as maiores, as verde-escuras, as tenras folhinhas verde-claras, e as folhas secas.
Escolha uma das folhas secas, a mais frágil que encontrar, e não tire os olhos dela. Compreenda toda sua fragilidade: a qualquer momento o mais que tênue elo que a mantém unida à árvore se romperá. Aprecie o momento em que ela se desprende e levemente paira no ar.
Apreenda toda a solidão e liberdade que se encerram no ato de flutuar só, depois de toda uma existência atrelada a um ramo, a uma árvore. Agora, no chão, aproxime-se dela e contemple sua rigidez pálida. Não a toque; deixe que uma brisa a carregue; ouça apenas o ruído que faz ao rolar no chão, carregada pelo vento.
Esse ruído da folha sendo arrastada pelo solo lembra-me Orfeu a chamar Eurídice, mesmo depois de despedaçado pelas furiosas Mênades. Esse rumor é um canto de saudade, que nasce do atrito entre amor e morte, passado e futuro, união e cisão, folha desidratada e solo. A árvore representa para esta delicada folha o que Eurídice representa a Orfeu. Este canta “Eurídice! Eurídice!”, embora saiba que nada poderá trazê-la de volta; da mesma forma que nada pode restabelecer a união entre a folha morta e sua árvore.
Deixe-a de lado agora e procure a folha mais nova, aquela que acabou de se abrir, quase diáfana de tão tenra, e constate que o sol ainda não a atingiu e portanto não lhe causou qualquer cicatriz: ela não tem marcas. Nem história.
Ande, sem olhar para o solo, dentro da esfera de sombra criada pela copa da mangueira. Ouça o som de suas pegadas sobre as folhas secas. Sinta aquela folha seca que viu cair no chão se fragmentar em contato com seus pés descalços.
Somos folhas - tenras, verdes ou secas. Estamos unidos a uma árvore; mas o sol está sempre nos queimando, o tempo sempre nos consumindo. Seremos folhas secas; quando isso acontecer, sentiremos saudade da nossa juventude.
Mesmo sendo uma folha verde, já consigo sentir melancolia ao pensar na folhinha translúcida que fui e na ressequida folha que serei, “quando o tempo avisar que não” poderei mais estar unido ao que amo.
E não pense que a agonia é apenas da folha morta que segue sozinha. Pelo contrário, a Mangueira sofre a perda de cada folha, de cada poeta que a morte leva. As folhas são imprescindíveis à árvore; afinal, o que é o todo sem suas partes? Ademais, o sol que alimenta a planta entra pelas folhas. Os sambas que nutrem toda a Escola nascem de cada compositor.
Isso é o que sinto ao ouvir “Folhas Secas”, de Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito:
“Quando piso em folhas secas
Caídas de uma mangueira
Penso na minha escola
E nos poetas da minha Estação primeira
Não sei quantas vezes
Subi o morro cantando
Sempre o Sol me queimando
E assim vou me acabando
Quando o tempo avisar
Que eu não posso mais cantar
Sei que vou sentir saudade
Ao lado do meu violão e da minha mocidade”
O Eu-lírico, folha da grande Mangueira (Estação Primeira), canta sobre seu fim, sobre o tempo, que, ao passar, o ceifará da árvore. Ele confronta o rompimento (a vulnerável folha caída) com momento de maior união (mocidade). Na primeira estrofe, ele trata da fraqueza das folhas secas - ele e os poetas são folhas -, e se pode sentir o ruído das folhas se desfazendo sob seus pés; é esse som que faz com que se lembre da sua escola de samba, sua árvore, o todo do qual faz parte. É do rumor de uma folha seca sendo arrastada pelo vento e se desmanchando sob uma pegada que nasce o samba.
Ao pisar nas “folhas secas” (presente), ele pensa na Mangueira e, partindo daí, viaja ao passado (flashback): já não sabe quantas vezes subiu o morro cantando, com o sol a queimá-lo. Após, retorna ao presente, para dizer que é desta maneira - exposto ao sol - que vai se acabando. O sol queimando representa o tempo passando. A umidade inerente à mocidade se evapora diante do calor solar.
Na última estrofe, ele vai ao futuro (flashforward) para vislumbrar sua morte - transformando-se a si numa folha seca - e sofrer, desta forma, toda a dor do afastamento. Dentro desse futuro conjecturado - quando o tempo lhe diz que não pode mais cantar -, ele pensa em si mesmo sentindo saudade (flashback) do momento em que esteve mais unido à Mangueira - ao lado de seu violão, em sua mocidade (um flashback dentro do flashforward). Ele convoca a imagem da morte, da cisão, e, dentro dessa imagem, fala do amor, retornando à juventude, ao momento de maior integração.
O Eu-lírico viaja entre o passado e o futuro, e do atrito entre os flashbacks e flashforwards faz nascer o som da folha seca que se desfaz, vindo daí a melancolia necessária para construir seu samba. A música é criada a partir da destruição da folha: o samba nasce da imagem da morte. Como diz Vinicius, “pra fazer um samba com beleza é preciso um bocado de tristeza" ("Samba da benção", dele e do Baden Powell).
Proponho uma última imagem: no topo de um morro, uma mangueira sob a pálida luz de um ocaso outonal. No chão, milhares de folhas secas formam um denso e quebradiço tapete. Um homem com um violão toca delicadamente os acordes de “Folhas Secas”. Uma mulher, sentada num balanço preso num galho da árvore, canta suavemente. Crianças descalças pisam nas folhas mortas marcando o ritmo da música: a percussão é o barulho das folhas pisadas.
Com efeito, toda prosa construída sobre uma obra - seja ela qual for - nunca superará a experiência de perscrutá-la, senti-la livremente, sem considerar qualquer interpretação que outros lhe tenham dado. Ademais, quem é a prosa para falar sobre a poesia?
Italo Calvino, ao falar sobre a leveza, na primeira das suas "Seis propostas para o próximo milênio", afirma que “toda interpretação empobrece o mito e o sufoca”.* Tal idéia aplica-se não só aos mitos, mas a todas exegeses: interpretar é optar por um sentido - é limitar, portanto. Assim também pensa Umberto Eco, que em sua "Obra aberta" defende a liberdade do receptor.
Portanto, não se atenha a minha maneira de sentir “Folhas Secas”, pois este é apenas um eco distante e abafado de um canto magistral. Ouça e leia-a só, num canto sossegado, e chegue à sua própria conclusão; ou melhor, sinta a música, os versos, cada palavra. Minha única pretensão foi partilhar o que senti: descrever o eco que o som das folhas mortas produziu dentro de mim.
*CALVINO, Italo. Seis Propostas para o próximo milênio. Tradução: Ivo Barroso. 3ª edição, São Paulo: Companhia das Letras, 2002. Pág. 16.