A Escolarização da Leitura Literária
Um dos primeiros aspectos facilmente percebido ao se tratar de literatura encontrada no livro didático da escola é a fragmentação. Isto é, pequenos trechos de textos das obras, um ou outro poema e, muitas vezes, pedaços de poemas, que são acrescentados nos materiais didáticos com o objetivo de aguçar a curiosidade para o estudo da literatura; ou seria da gramática?
A boa intencionalidade dos formuladores dos livros didáticos ao colocarem fragmentos literários nos manuais escolares é até aceitável, mas o que se torna intrigante e questionável é: até que ponto os pedaços de textos serão capazes de aguçar a curiosidade e a vontade dos alunos em ler e/ou degustar literatura, seja ela infantil, juvenil ou adulta?
Assim, este estudo tem como objetivo verificar qual a metodologia empregada nos livros didáticos para o estudo da literatura para os alunos nos diferentes ciclos de aprendizagem do Ensino Básico. Além disso, ao término dessas observações a cerca do estudo literário na escola, buscar-se-á propor uma metodologia capaz de seduzir ou despertar o interesse dos alunos pela (ou para os professores ensinarem a) literatura.
Sabe-se, teoricamente, que a função primária da literatura é o deleite. Ou seja, ao ler um romance, uma novela, um poema, o indivíduo deverá sentir um incomensurável prazer. Pelo menos é isso que se pretende e, é tudo que não acontece na prática dos estudos literários nas escolas.
O primeiro erro cometido ao introduzir a literatura na escola é a falta de liberdade quanto à escolha do livro ou dos textos literários. No ambiente escolar, o aluno tem como opção somente o livro didático e os livros contidos na biblioteca que, a priori, já foram todos escolhidos por um grupo de pesquisadores, os quais afirmam que essa ou aquela literatura é importante para a formação do conhecimento dos discentes. Tal fato consiste no tolhimento da liberdade de escolha dos alunos, no momento em que esses sentem a necessidade de selecionar os livros literários para lerem.
Esse aspecto é mencionado por Soares (1999, pág. 23) como o terceiro colaborador da escolarização da biblioteca escolar ou, ‘neologicamente’ falando, a ‘bibliotecalização’, o qual consiste na seleção particularizada – no sentido de que a escolha da gama de obras é selecionada por um grupo de pessoas não leitoras dessas mesmas obras – ou seja, os pesquisadores educacionais escolhem e compram os livros que, diga-se de passagem, não serão lidos por eles! E, tampouco, pelos alunos da escola! Isso é caracterizado por Soares (1999) como uma forma de escolarização da leitura literária.
Dessa forma, passa a ser uma escolarização a partir do momento em que um grupo de pessoas direciona a leitura de livros literários que, na realidade, deveriam ser escolhidos pelos leitores. A seleção da leitura pelos próprios alunos/leitores torna-se fundamental para concretizar a função de prazer da literatura.
Nesse sentido a escolarização da literatura, segundo Soares (1999, pág. 22), “se traduz em sua deturpação, falsificação, distorção, como resultado de uma pedagogização ou uma didatização mal compreendidas que, ao transformar o literário em escolar, desfigura-o, desvirtua-o, falseia-o”.
De acordo com os estudos da autora, a escola se apropria da literatura sob três formas distintas de escolarização que ocorre nas seguintes instâncias: “na biblioteca escolar; na leitura e estudo de livros de literatura, em geral determinada e orientada por professores de Português; a leitura e estudo de textos como componente básico de aulas de Português”. (SOARES, 1999, pág. 22-23)
Quanto à escolarização que ocorre na biblioteca, segundo Soares (1999), existem três fatores que se associam para impedir, de certa forma, com que os alunos leiam literatura geral e infantil.
O primeiro fator refere-se ao próprio local de (falta de) acesso em que se guardam as obras literárias, os alunos terminam por esquivar-se desse espaço, visto que criam uma imagem negativa criada pelo próprio papel aprisionador da escola. Isso impede que os livros contidos na biblioteca sejam vistos e, vistos positivamente, como um meio de proporcionar ao indivíduo não só o conhecimento, mas, principalmente, a liberdade, o prazer, o deleite. (SOARES, 1999, pág. 23)
O segundo está relacionado à organização da biblioteca juntamente com o (a falta de) tempo de acesso em que os alunos têm para não somente visualizar, mas para conhecer o acervo e, posteriormente, escolher a obra literária para ser desfrutada com a leitura. Assim, os alunos perdem o contato com os livros, porque não tem um espaço - e um espaço de tempo – propício para manusear ou, quem sabe, paquerar as obras literárias. (SOARES, 1999, pág. 23)
Já que o primeiro grande problema da escolarização encontra-se na biblioteca escolar e consiste, basicamente, na falta de opção na hora da escolha dos livros literários pelos alunos/leitores, resta, portanto, descobrir e discutir onde está o segundo problema ou dificuldade que se encontra na escolarização da leitura. Se a primeira dificuldade encontra-se na biblioteca, a segunda mora ao lado dela, ou melhor, dentro dela, ou seja, o segundo problema está nos livros literários e, principalmente, nos didáticos.
Para melhor estratificação das observações realizadas, escolheram-se dois livros didáticos de séries e anos distintos do Ensino Fundamental que tem como títulos: Português Linguagem e Realidade, de Mesquita e Martos (1995), do 7º ano; e Palavra em Ação, organizado por Saliba (2002), do 9º ano EJA – Educação de Jovens e Adultos.
Uma característica comum encontrada em todos os livros, e que marca a escolarização da leitura (do material) didático foi a fragmentação dos textos literários. Nas palavras da autora: “a literatura se apresenta na escola sob a forma de fragmentos que devem ser lidos, compreendidos, interpretados. Certamente é nesta instância que ela tem sido mais inadequada.” (SOARES, 1999, pág. 25)
Conforme Soares (1999, pág. 26) a escolarização da literatura torna-se inadequada devido vários fatores, tais como: “a seleção de gêneros, autores e obras; a transferência do livro literário para o material didático”; a má utilização das propostas de estudos a partir das leituras dos textos, entre outros.
Ao se afirmar que ocorre a má utilização das propostas de estudos literários, significa dizer que a forma como se propõe trabalhar a literatura nos manuais didáticos é errônea. Isso porque, ao efetuar a transferência dos textos literários para o livro didático, além de perder parte dos textos, perde-se, também, a oportunidade de destrinchar as várias possibilidades de interpretação contidas no próprio texto. Tal fato se dá em decorrência da importância que ganha o estudo da gramática normativa explorada a partir do texto e, às vezes, da própria obra literária, desvirtualizando-a enquanto obra de arte.
No momento em que a transferência inadequada da arte literária se concretiza no livro didático, ocorre o sufocamento do texto como sendo literário, para dar espaço, tão somente, à gramática. Assim, morre o texto enquanto texto e a obra enquanto obra literária e, consequentemente, enquanto arte. Além disso, rouba também, a oportunidade de transformar um simples aluno em um leitor crítico dos livros de literatura, consciente de si mesmo e, claro, da própria leitura literária que realiza.
Tais evidências sobre a escolarização inadequada da leitura literária foram facilmente identificadas nos livros didáticos examinados. No livro didático do 7º ano, grande parte dos textos transferidos da obra para o livro didático, são explorados na sua superficialidade; não ultrapassa o primeiro nível de leitura, enquanto que a conduta mais coerente seria a de provocar o aluno, no sentido de observar as minúcias descritas no texto, a fim de despertar a curiosidade dos discentes pela leitura das obras literárias.
Foram constatados ainda no mesmo livro didático, exercícios que aproveitam do título “Estudo do texto”, para estudar a construção gramatical do texto, sendo que deveria, na verdade, estudar o texto puramente como sendo literário.
Este livro didático traz ainda, a tentativa de se criar ‘textos animados’, seguidos de ilustrações, com o objetivo de ‘literalizar’ um texto que não é literatura e que, também, não possui fins literários, ao contrário, tem a finalidade, tão somente, trabalhar a gramática de maneira mais chamativa e prazerosa, de forma lúdica, para não dizer enganosa!
A essa ‘literalização’ pode-se chamar de escolarização da leitura literária. Isso sim é a verdadeira definição de peripécia na literatura: o que antes se tinha como escolarização do texto literário, evoluiu, tomou novos rumos e resultou na literalização do texto não-literário: é o efeito peripético da literatura colocado em evidência.
Um exemplo mais grave de escolarização da literatura detectado no referido livro, parece ser ainda mais absurdo: o texto que se encontra na 7ª unidade do livro faz uma paráfrase de um fragmento de um texto encontrado no livro didático do 6º ano, da obra O professor Burini e as quatro calamidades, do autor José J. Veiga. O aspecto mais curioso, para não se chamar de esquisito, é que tal paráfrase objetiva contextualizar o assunto, de um texto fragmentado, que se encontra em outro livro didático, de um ano anterior.
Dessa forma, a intencionalidade dos autores do livro didático foi, talvez, a de dar continuidade à narrativa, retomando, assim, no livro do 7º ano, a estória referente ao fragmento do texto encontrado no 6º ano. Mais uma vez ocorreu a escolarização inadequada da literatura no livro didático.
O outro livro didático analisado, do 9º ano, traz poucas referências dos clássicos literários, entre os textos do livro, constatou-se somente um único texto literário de Fernando Pessoa, sendo que o restante dos textos é distribuído entre letras de música e matérias extraídas de jornais e revistas, sugestões de leituras essas, que se aproximam mais como não-literárias.
Entre as letras de músicas transferidas para o livros didático estão: Belchior, Zé Ramalho, Raul Seixas e John Lennon. Não se pode deixar de negar a presença da poeticidade existente nas letras de música, mas o que se deve observar é: somente alguns elementos componentes da poesia, tais como as rimas e a musicalidade, por si só não são capazes de transformar uma música em um poema. A menos que a música tenha nascido do poema, seja o próprio poema.
É até correto dizer que a música tem uma proximidade muito grande com o poema, mas torna-se incoerente afirmar que uma letra de música, o qual possui o seu fim específico, seja também, classificado como sendo um poema. O poema e a música, embora tenham algumas características semelhantes, não são iguais, não possuem os mesmos objetivos, e não são direcionados para o mesmo público. Enfim, ambos apresentam a musicalidade, mas, não pertencem ao mesmo campo de estudo e, por isso que, por mais que a literariedade percorra uma letra musical, essa não poderá ser denominada como poema.
O poema, diferentemente da música, obedece a rigorosos critérios que o definem como tal. Portanto, a tentativa de se transferir a música para o livro didático com o objetivo de ser trabalhado como texto literário, compõe-se em mais uma forma de escolarização da literatura. A literalização da letra musical se agrava ainda mais, visto que a proposta de interpretação da música adquire, em grande parte, o estudo da Gramática Normativa.
Com relação às matérias de revista e jornais, trazidas para o livro didático, não há nem o que se comentar, visto que se trata de textos não literários, logo, os exercícios sugeridos, trabalham as interpretações óbvias e, consequentemente, superficiais. E a única poesia apresentada no livro didático, acaba se tornando escolarizada, pois, a atividade proposta não chama a atenção para os aspectos do texto enquanto texto poético, o exercício do livro propõe, além de perguntas simples sobre o poema, pede também, para os alunos escreverem uma dissertação sobre a importância da leitura.
A partir dessa análise simplificada dos livros didáticos foi possível observar como a escola e, especificamente, o seu corpo docente enfrenta sérias dificuldades para se trabalhar a literatura com os alunos na sala de aula. Tanto a biblioteca, quanto os livros didáticos são organizados de forma inadequada, de modo que ao invés de aproximar os alunos da leitura literária, afasta-os.
Os vários tipos de escolarização inadequada acabam por influenciar nos métodos adotados pelos professores, os quais se tornam vítimas, ao mesmo tempo em que acomodam com o material que lhes são ofertados para trabalhar em conjunto com os alunos.
Para se amenizar a situação de escolarização é preciso que os docentes da área da literatura e, até mesmo da língua portuguesa, sensibilizem no sentido de trazer melhorias extra didáticas (fora do livro didático) para a sala de aula. Essa sugestão é, na realidade, uma proposta desafiadora, mas que consiste na única saída para os docentes que querem, de fato, proporcionar a construção do conhecimento literário dos discentes.
E, diante dessas limitações, o professor de literatura deverá, em primeiro plano, gostar de ler e questionar literatura a partir da própria literatura. E, para isso, é necessário, em segundo lugar, dedicar-se às pesquisas voltadas para a literatura.
Somente partindo-se desse ângulo de visão, que o docente terá condições de trabalhar o texto literário a partir dos elementos presentes dentro do próprio texto literário, da própria obra literária, deixando, assim, em segundo plano o estudo dedicado à Gramática Normativa, que geralmente, é proposta nos estudos de textos. A forma mais coerente de se aplicar o ensino da literatura é, portanto, explicitá-lo a partir das várias possibilidades de leitura contidas dentro do próprio texto ou obra literária.
Referências Bibliográficas
SOARES, Magda. A escolarização da literatura infantil e juvenil. In: A Escolarização da Leitura Literária: O Jogo do Livro Infantil e Juvenil. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
MESQUITA, R. M.; MARTOS, C. R. Português Linguagem e Realidade. 6ª série do Ensino Fundamental. São Paulo: Saraiva, 1995 do;
SALIBA, Marco Antonio Césere (org.). Palavra em Ação. 8ª série do Ensino Fundamental/EJA – Educação de Jovens e Adultos. Uberlândia:MWS, 2002.