Homens Convictos São Prisioneiros (1)

O aforismo expresso no título, de Friedrich Nietzsche (2), tem poucas palavras, mas seu conceito remete a uma muito comum e importante falha psicológica presente no nosso caráter, não facilmente discernível e aceito, responsável por muitos dos males e encrencas em que nos metemos nos nossos relacionamentos, tanto no nível individual como no coletivo.

Na maior parte das vezes, nossas convicções são sobre fatos reais, que percebemos racional e claramente. Por exemplo, tenho convicção de que na minha garagem existe um veículo que me leva aos lugares onde quero ou preciso ir. Tenho convicção de que a Terra é um planeta redondo onde convivo com outros semelhantes a mim e com outras espécies, de que o sol nascerá amanhã. São convicções sobre coisas que experenciei ou que apreendi por dedução lógica e que, portanto, são reais.

Não é dessas convicções que tratarei aqui. A convicção a que se refere Nietzche é aquela fundamentada não na razão, em idéias comprováveis empiricamente, mas na suposição, no preconceito, na imaginação, nos dogmas, isto é, em bases irreais, na maioria das vezes subjetivas.

Podemos listar aqui alguns exemplos de convicções desse tipo, mas o mais evidente e notório é o das convicções sobre ideias religiosas. A convicção religiosa, mais conhecida como crença, baseia-se claramente na imaginação, uma vez que deuses, anjos, céu, inferno são abstrações que provavelmente surgiram no homem primitivo, assustado diante dos fenômenos que não podia explicar, e que se mantiveram no homem moderno, o qual, em sua angústia existencial, consciente da sua finitude e perplexo por não entendê-la, inventa que seres superiores o criaram, que sua alma sobreviverá à sua morte, que renascerá em outras vidas, etc. Na maior parte das vezes a convicção religiosa é inofensiva e até mesmo pode ser uma importante aliada na manutenção da moral e dos bons costumes, na integração social e, enfim, na busca do bem viver em sociedade. Porém, a argumentação dos religiosos de que tal objetivo só pode ser alcançado com essa convicção é uma falácia, uma vez que se baseia na premissa de que acreditar em quimeras é o único meio de atingir a felicidade. É como acreditar que placebos são mais eficientes do que remédios. Não é por acaso que operações de cura espirituais façam tanto sucesso e rituais de purificação atraiam multidões.

A convicção religiosa, no entanto, torna-se deletéria quando degenera para o fanatismo religioso. Há então, no confronto de convicções, uma luta de religiões, cada qual se considerando dona da verdade, e acontecem coisas como aviões derrubando prédios, homens-bomba explodindo com seus desafetos e, recuando historicamente, aberrações como as Cruzadas, a Inquisição, a Noite de São Bartolomeu, etc. Tal é o prejuízo causado pelas convicções religiosas.

Vamos lembrar outras convicções desse tipo.

As convicções étnicas, muito parecidas com as religiosas, levam a acreditar em diferenças de raças e, como conseqüência desse preconceito, a conflitos sanguinários e devastadores, muitas vezes dentro de uma mesma nação, derivados da busca pelo poder ou domínio político. Essa patologia social parece ocorrer principalmente em países subdesenvolvidos e culturalmente atrasados, o que evidencia que a ignorância cultural é um campo fértil para que tais convicções se alastrem com muita facilidade. Exemplos estão em alguns países da África e do Oriente Médio. O eterno conflito entre judeus e palestinos parece ter entre suas origens tanto suas convicções religiosas quanto suas convicções étnicas.

As convicções ideológicas levam a acreditar na superioridade de posições políticas e partidárias. Comunismo e capitalismo, democracia e totalitarismo, esquerda e direita, são ideologias próprias dessas convicções, que também podem se confrontar, cada qual acreditando que a sua é melhor do que as demais ou do que aquela que se lhe opõe frontalmente. Uma convicção ideológica, da qual seu adepto é prisioneiro, não admite complacência com a convicção alheia e, assim, não aceita ou não quer enxergar que na ideologia contrária podem afinal existir algumas particularidades que poderiam ser incorporadas por ela. Esse é o espírito vigente nessas convicções, não há abertura para o diálogo, só sobra o confronto e a radicalização. Por isso, uma ideologia que tenha sido fundada em princípios nobres e bem intencionados pode desembocar em estados totalitários, não previstos por seus simpatizantes. É o que aconteceu com o comunismo em muitos países que o adotaram, como na Rússia do ditador Stalin, na Cuba de Fidel Castro e, atualmente, na Coréia do Norte, onde o comunismo redundou num regime totalitário que tolhe os direitos políticos e a liberdade de pensamento do indivíduo, que tem, como única opção, sob risco de se ver banido da sociedade, entregar-se compulsoriamente ao culto à personalidade de seu líder máximo. Mas o capitalismo também gerou estados totalitários, como ocorreu em determinada época em muitos países da América Latina, geralmente germinados no medo da ascensão da ideologia oposta, o comunismo.

A arrogância dos seres humanos em não ceder em suas convicções religiosas, étnicas e ideológicas parece ter sido a base dos conflitos que têm permeado a história da humanidade ao longo da sua evolução.

Falo agora num fenômeno social recente e mais ameno, embora não isento dos conflitos inerentes às convicções. Caracteriza-se pelo que chamo, à falta de um termo melhor, de convicções clubistas. São as geradas pelas torcidas por clubes de futebol. Possivelmente são o resultado da popularidade que o esporte adquiriu no mundo pela ampla repercussão, facilitada por meios de comunicação cada vez mais avançados, dos torneios regionais e mundiais. No país do futebol mais admirado do planeta, essa patologia, a necessidade de torcer por um time de futebol, é tão forte e disseminada que não torcer por algum time constitui quase uma anormalidade, o que configura uma inversão de valores ou antinomia. Provavelmente tal patologia tenha sua origem nos embates dos gladiadores na Roma antiga, onde dos torneios emergiam os mais hábeis na luta, os quais eram celebrizados e tinham seus passes valorizados entre aqueles que podiam comprá-los e a quem entretinham. No torcedor de um time a convicção clubista pode estar tão enraizada que gera verdadeira tristeza nas derrotas inesperadas e alegria imensurável nas conquistas de torneios, embora se saiba que em disputas esportivas derrotas e vitórias são condições inerentes a elas. Decorre dessa patologia as batalhas campais entre torcidas organizadas. Há de se convir que tal paixão mostra-se desproporcional à importância do fato gerador.

Por esses exemplos percebe-se que há um claro indício de que o tipo de convicção de que estamos tratando baseia-se em fundamentos frágeis e falsos, como preconceito, fé, superstição, radicalismo, sentimento de superioridade, que não resistem a um mínimo de raciocínio lógico e formal, mas que, a despeito disso, pode levar o ser humano a atitudes irracionais.

O aforismo de Nietzsche, porém, deve ter uma amplitude muito maior do que sugerem esses exemplos mais notórios. Num contexto mais amplo, quaisquer convicções que não passem pelo crivo da verdade e sejam, portanto, questionáveis, podem se enquadrar nesse tipo de convicção.

Podem existir em nós convicções desse tipo ocultas que podemos não perceber. É preciso ficar atento em verificar se nossa oposição a determinada convicção alheia não é ela própria uma convicção. Um ateu, por exemplo, pode desdenhar da convicção de um religioso da existência de Deus, mas ele próprio pode ter sedimentado em si uma convicção, a da não existência de Deus. Ao rejeitar enfaticamente qualquer análise sobre a existência de qualquer coisa parecida a um Deus, ele também se torna dogmático e intransigente, isto é, também tem uma convicção questionável.

Homens convictos são prisioneiros porque se apegam às suas convicções e esse apego pode ser tão forte que sobrepõe-se à sua vontade de se libertar.

Para ilustrar com uma metáfora por que uma convicção aprisiona seu portador, contarei agora um curioso episódio ocorrido comigo mesmo e um canário (3). Esse canário era de minha mãe e convivia na mesma gaiola com outro canário, talvez um irmão, e de vez em quando aconteciam embates furiosos entre os dois. Como ele era o mais agressivo, quando aconteciam as brigas eu o retirava da gaiola e o deixava de castigo num balde durante certo tempo. Depois eu o pegava envolvendo-o na palma da mão em concha e o colocava novamente na gaiola. Com o tempo, porém, verifiquei que, para retirá-lo do balde, bastava estender-lhe o dedo indicador e ele se aboletava voluntariamente no dedo como se num poleiro e deixava-se levar assim até dentro da gaiola. Não fazia menção de voar para escapar. Um dia, curioso com esse comportamento dócil, peguei-o do balde, como sempre, deixando-o aboletar-se no dedo e levei-o para dentro de casa, passeando assim com ele pelos cômodos. Porém, após passear bastante pela casa e quando estávamos na sala de jantar, de repente ele alçou vôo, saiu estabanadamente voando pela sala, pelo corredor interno e entrou na cozinha. Já arrependido e assustado pela minha imprudência, corri atrás para tentar resgatá-lo. Da cozinha ele saiu para a área de serviço, onde se achava a gaiola pendurada num suporte pela parede. Para minha surpresa, quando cheguei à área de serviço, ele estava pousado sobre a gaiola do lado externo, agarrado às barras de arame. Deixou-se pegar tranqüilamente pela minha mão, sem reagir, e coloquei-o na gaiola. É claro que, com medo de perdê-lo, nunca mais repeti a experiência, mas acredito que, se o fizesse, seu comportamento fosse o mesmo, isto é, ele saberia o caminho e voltaria diretamente para a gaiola.

A gaiola representava todo o mundo do canário, a sua convicção. Tudo o que estivesse fora daquele domínio conhecido, fora daquelas barras de arame, seria um mundo desconhecido, assustador. Afinal, era ali que diariamente uma enorme mão colocava-lhe uma folha de couve, as duas metades de um jiló e supria-lhe a gavetinha de alpiste. De vez em quando lhe colocavam até uma vasilha com água para tomar banho. Onde encontraria esse conforto lá fora? A liberdade era um sonho misterioso e terrível, que não lhe convinha buscar. É verdade que, de vez em quando, observava alguns seres alados semelhantes a ele, chamados pardais, bicando lá fora no chão os restos que caiam da gaiola. Via-os voando e sumindo no ar. Via-os lutando para sobreviver. Não tinham a garantia da comida certa, precisavam ficar constantemente em busca dela para viver. Não entendia porque não tinham suas gaiolas.

Por essa metáfora, pode-se concluir que toda convicção, toda certeza, restringe a visão, apequena a perspectiva. Daí porque homens convictos estão muito próximos de se engalfinharem em embates furiosos, quando defendem posições antagônicas. Homens convictos são prisioneiros porque estão dentro das suas gaiolas de convicções, refratários a tudo que esteja fora delas.

As convicções são sedimentadas pelo hábito. O canário que se acostumou com sua ração diária dificilmente se aventurará a tentar a liberdade lá fora, onde terá que batalhar pela sua comida. Um fiel que comparece às missas e rituais reforça sua convicção religiosa ouvindo os sermões e ladainhas e rezando coletivamente. Um torcedor reforça sua convicção clubista comparecendo aos jogos do seu time, assistindo a eles pela televisão ou lendo sobre seus feitos no jornal. Assim, uma maneira de se desfazer ou se libertar de convicções é desfazer-se dos hábitos que as alimentam. Outra maneira é abrir-se às opiniões ou convicções contrárias, ser humilde e corajoso para encará-las e avaliá-las.

Assim, acredito que a posição intelectual mais honesta que um pensador deve ter diante das suas reflexões seja a da dúvida sobre tudo aquilo que não pode provar ou em que não consegue enxergar verdade alguma. Aliás, foi essa a posição de Sócrates quando emitiu sua célebre frase: “Só sei que nada sei”.

(1) Trabalho de defesa de tese para a disciplina Filosofia Geral: Problemas Metafísicos do 1o. ano de um curso de Filosofia que fiz na UNESP de Marília.

(2) O aforismo encontra- se no livro "Assim Falava Zaratustra", de Nietzsche.

(3) Esta história já foi contada também na crônica "O Canário Encantado", publicada aqui no Recanto e foi transcrita quase literalmente de lá.

Paulo Tadao Nagata
Enviado por Paulo Tadao Nagata em 02/05/2009
Reeditado em 21/10/2024
Código do texto: T1572020
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