“PELA RAZÃO, ATÉ ONDE FOR POSSÍVEL”

“PELA RAZÃO, ATÉ ONDE FOR POSSÍVEL”

NENHUMA religião do mundo tem na razão seu fundamento principal. Todas, sem exceção, têm na fé sua principal fundamentação; e, nesse particular, o cristianismo em nada se difere das demais.

POR QUE A FÉ É O PRINCIPAL FUNDAMENTO DE TODAS AS RELIGIÕES?

PORQUE o que o homem busca na religião é exatamente explicações referentes a si mesmo e aos seus dilemas existenciais, as quais o universo da racionalidade não lhe pôde proporcionar. Não haveria necessidade de religião se tudo pudesse ser explicado pela razão. Quando o homem busca a religião é porque já se esgotaram as possibilidades – pelo menos as que estão ao seu alcance – de explicações que a razão é capaz de oferecer. Por isso é que a religião – seja ela qual for – se fundamenta essencialmente na fé e não na razão. E é por isso, também, que ela fascina, seduz e, ao mesmo tempo, intriga tanto a humanidade. A religião se propõe a livrar a humanidade de tudo que lhe é indesejado: doenças, dores, frustrações, perdas, ódio, tristeza, violência, solidão, miséria, ignorância, vícios e morte; e, por outro lado, conceder tudo que esta almeja: riqueza, saúde, alegria, paz, amor, sobriedade, solidariedade, segurança, perfeição e vida eterna. Como não fascinar?

EM MATÉRIA de religião, principalmente a cristã, tudo começa e termina com FÉ.

O QUE HÁ DE BOM NISSO?

A INCLUSÃO. Isso talvez seja não apenas a boa, mas a melhor parte da fé cristã.

POR QUE?

PORQUE uma vez que o principal requisito para ser um cristão e, consequentemente, ser aceito como um cidadão da “Pátria Celestial” é a fé, ninguém terá porque lamentar sua não participação nesse tão esperado reino. Ou seja, ao condicionar a salvação exclusivamente ao exercício da fé [tudo o mais só será aceito como consequência disso], os cristãos estão dizendo que não há nenhuma desculpa para a perdição. Uma vez que a fé não é algo físico, que possa ser comprado, vendido, transferido ou herdado, ninguém pode alegar impossibilidade alguma de possuí-la, já que a mesma é pessoal e subjetiva. Assim, sendo, todos: ricos e pobres, doutos e incautos, jovens e velhos, bons e maus... são potenciais candidatos ao reino celeste. E, o que é mais interessante: todos têm a mesma percentagem de chances.

EXEMPLO: o “jovem rico” e o “bom ladrão”.

O PRIMEIRO era rico, culto, bem educado, fiel a Deus e extremamente zeloso – guardava todos os mandamentos de Deus desde sua meninice. O segundo, não tinha posses, era rude, sem religião e transgressor tanto da Lei de Deus quanto da dos homens.

SEGUNDO a compreensão unânime de todos os estudiosos da religião cristã, o “jovem rico” se perdeu; já o “bom ladrão” está salvo. Isso mostra que, no cristianismo, não interessa – em termos de salvação – quão boa ou má é a pessoa ou o que ela tenha feito ou venha a fazer ao longo de sua vida, mas em quem ela crê e como crê. Em outras palavras, não interessa tanto como a pessoa vive, mas como ela morre. Isso nos permite inferir ainda que enquanto há vida consciente, não importando a condição moral em que se encontra a pessoa ou quanto tempo de vida lhe resta, há o mesmo percentual de chances de salvação que havia quando ela nasceu. É uma questão de fé, apenas.

O QUE HÁ DE PERIGOSO NISSO?

A POSSIBILIDADE de manipulação e opressão. Provavelmente essa seja a parte mais sinistra da má interpretação da fé.

POR QUE?

PORQUE a partir do momento que nada pode ser provado racionalmente, tudo pode, ao mesmo tempo, ser aceito como verdade e/ou como mentira. Quem define o que é sagrado, profano, belo, feio, certo, errado, Deus e Diabo é simplesmente quem possui maior poder de convencimento e/ou de coação. A religiosidade passa a ser regida por uma verdadeira “lei da selva”: sobrevive quem for mais forte – ideológica (quem tem mais conhecimento, mais poder de argumentação e persuasão, mais astúcia...) e materialmente (quem tem mais poder político e econômico, armas, força, etc.).

NESSE contexto, o árbitro é o poder. O certo é o que é defendido por quem pode garantir (quer pela persuasão, quer pela força) seu cumprimento.

Isso tem se repetido ciclicamente na história da humanidade. O período conhecido historicamente como Idade Média é o mais emblemático exemplo nesse contexto.

PORQUE OS CATÓLICOS ROMANOS ACEITAM A AUTORIDADE DO PAPA COMO IGUAL E/OU SUPERIOR A DA BÍBLIA?

ESSA é uma história muito longa. Mas, em linhas gerais, é simples: é uma questão de fé, apenas isso, nada mais que isso.

“AH, mas uma coisa é ter fé no que diz a Bíblia, que é a Palavra de Deus; outra, é ter fé no papa, que é um pecador igual a mim”, você pode argumentar. E isso é verdade. Porém, surgem algumas perguntas: “E os homens que escreveram a Bíblia, eram menos pecadores que o papa?” “Se o Espírito Santo os usou por quê não usaria o papa?”. “Se podem ser aceitas as diferenças entre várias ordenanças do AT e as do NT, por quê não o podem as que há entre estes e a palavra do papa”? “Que critério foi usado para definir, entre uma infinidade de escritos, o que é sagrado e o que é profano?” Como disse antes, essa é uma longa história.

SE QUISERMOS compreender um pouco do pouco que é possível desse assunto “infinito”, precisamos dar um mergulho profundo na história do cristianismo e, mais especificamente, deste na parte ocidental do planeta, começando pela morte de João (evangelista), o último dos doze discípulos de Cristo, por volta do ano 100 da era cristã.

O LIVRO de ATOS, escrito pelo médico Lucas, que relata o modo de vida e o trabalho dos apóstolos de Cristo e dos primeiros conversos ao cristianismo dentro do Império Romano, com destaque para a conversão e atuação de Saulo de Tarso (São Paulo), narra, entre outros desafios da nascente fé cristã, a filosofia grega, permeada de mitos e concepções pagãs (idolatrias e superstições, entre outras), cuja influência era determinante em todo o império (Atos 17: 13-34). No episódio narrado nessa parte do livro, Paulo enfrenta duas das mais respeitadas correntes da famosa filosofia ateniense: o estoicismo (seguidores de Zenão) e o epicurismo (seguidores de Epicúrio). Vale ressaltar que nesse período (séc. I d.C.), não foram apenas duas ou três correntes religiosas que surgiram em torno do cristianismo e, mais especificamente, da divindade e da humanidade de Cristo. Entre as mais conhecidas estão: arianismo, trinitarianismo, menoismo, gnosticismo, agnosticismo, deismo, ... Aliás, é bom lembrar, também, que mesmo nos dias de Cristo é justificável os muitos questionamentos sobre seu messianismo. Isso porque Ele não era o único que se apresentava como o Messias (Salvador). Aliás, Ele nem era o único com o nome Jesus. Pra se ter uma idéia da situação, quando Pilatos propõe à população que escolha entre os dois prisioneiros, ele dar a entender que se trata de homônimos, quando diz: “(...) qual quereis que vos solte? Barrabás ou Jesus, chamado Cristo” (Mateus 27: 17). Por que Jesus, chamado Cristo, e não apenas Jesus? Justamente porque se tratava de dois prisioneiros com o mesmo pré-nome: Jesus. E as coincidências não param por aí.

Observemos:

JESUS, o Cristo – judeu, identificado como filho do Pai, tido como libertador dos judeus e acusado de liderar uma revolução para derrubar César.

BARRABÁS: também chamado Jesus (Javé é a salvação), judeu, etimologicamente filho do Pai (“bar”: filho; “aba”: pai), aclamado como revolucionário e libertador dos judeus e, também, acusado de liderar uma tentativa de golpe contra César.

NOTA: “Essa comparação é infundada, afinal a Bíblia deixa claro que Barrabás era um ladrão, um assaltante”, você deve está argumentando. É verdade. Isso realmente está escrito nos evangelhos. Não esqueça, porém, por exemplo, que, do ponto de vista da história “oficial”, Lampião foi um bandido, cangaceiro, assassino, etc., e padre Cícero, um falso religioso e político corrupto – que, inclusive teria acobertado Lampião, de quem era padrinho (religioso e político). Para milhões de nordestinos, no entanto, o primeiro foi um “verdadeiro Messias” (um Robin Wood), que tirava dos ricos para dar aos pobres; e o segundo, simplesmente “nosso Padim Pade Ciço”, responsável pela chuva e, consequentemente, pela manutenção da vida naquela região.

EM RESUMO, uma coisa é olhar Barrabás pela ótica dos romanos, representantes da situação, da opressão; outra, é vê-lo pela ótica do judeu oprimido e inimigo mortal de Roma.

ESSA pequena comparação nos dar um vislumbre da complexidade da questão do messianismo no tempo de Jesus. Imagine o que emergiu de professos “herdeiros” da mensagem de Cristo após sua morte!

Foi nesse contexto de distanciamento de sua origem e de seu fundador (Jesus Cristo) e co-fundadores (os 12 apóstolos) que o cristianismo começou a se fragmentar. Nesse ínterim, duas figuras ganham destaque especial no esforço de manter a unidade cristã em torno de uma única doutrina: Paulo, através de suas epístolas e João, com suas cartas nas quais narra as revelações de Jesus na ilha de Patmos, onde vivera como prisioneiro seus últimos dias. O grande problema é interpretar o que eles escreveram. A partir da morte de João, o cristianismo jamais voltaria à uma unidade doutrinária. E a busca por tal desiderato será o pretexto para os desatinos cometidos por Roma, primeiro em sua fase imperial, através de seus sucessivos imperadores – cada um mais tirano que o outro; e, segundo, em sua fase mais nefasta e mais cruel: a fase papal, quando a Igreja Romana, aproveitando-se do vácuo deixado pela desintegração do império, assume tanto o poder religioso quanto o político e, durante 1260 anos (de 538 a 1798), mantém acirrada perseguição contra tudo e todos que se opõem aos seus ditames, baseados essencialmente em dogmas.

EM SUA fase de consolidação, o cristianismo enfrentou dois grandes desafios: a perseguição do Império Romano – que queria, a qualquer custo, apagar da memória da humanidade qualquer coisa que lembrasse Jesus Cristo – e a manutenção da unidade cristã em torno de um conjunto de doutrinas único face às duas grandes ameaças da época: o judaísmo (que negava – e nega até hoje – o messianismo de Jesus, defendendo a permanência dos ritos mosaicos: circuncisão, holocausto de animais, teocracia, endogamia, etc.) e a filosofia grega, como já dissemos, permeada de concepções consideradas profanas (pagãs) pelos cristãos.

NOTA: Mesmo entre os primeiros apóstolos, havia, por exemplo, “os da circuncisão”, que se identificavam com o perfil de Pedro, e “os da incircuncisão”, inspirados na pregação de Paulo (Gálatas: 2).

O PRIMEIRO esforço conjunto da cristandade para manter a unidade doutrinária ficou conhecido como Concílio de Jerusalém, e está registrado no capítulo 15 do livro de Atos. Daí em diante, perdeu-se a conta de quantos outros concílios foram realizados com esse mesmo propósito; sendo que a situação, cada vez, tornava-se mais complexa.

UMA TENTATIVA, ao mesmo tempo, desesperadora e perspicaz foi a decretação do cristianismo como religião oficial do Império Romano, promulgada por Constantino no fim do quarto século. Desesperadora porque Constantino era pagão e jamais quisera tornar-se cristão; porém, essa foi a única maneira de salvar o seu império, e perspicaz porque com essa manobra ele conseguiu “agradar gregos e troianos”, ou seja, conquistou a simpatia da maioria dos cristãos e também dos pagãos, já que para cessar a perseguição aos cristãos exigiu que estes flexibilizassem alguns pontos doutrinários para atrair para o cristianismo os pagãos, também chamados pelos romanos de bárbaros.

ESSE episódio representou a primeira ruptura oficial do cristianismo, a qual seria seguida, ao longo da história, por inúmeras outras, alcançando às mais de 30 mil denominações cristãs dos dias atuais.

POR QUE A RUPTURA?

SIMPLESMENTE porque nem todos os líderes cristãos da época aceitaram a proposta de “flexibilização” feita por Constantino. E estes foram declarados, a partir de então, inimigos tanto da Igreja, quanto do Império, uma vez que ambas instituições tornaram-se praticamente uma só. Aqui surgem aqueles [“hereges”] que aproximadamente dez séculos depois (1517), ficarão conhecidos como reformadores ou simplesmente protestantes.

DUAS CORRENTES

AQUELES que aceitaram a proposta de Constantino, tornaram-se membros da religião oficial do império, a qual passou a chamar-se Igreja Católica Apostólica – Católica por ser (ou pelo menos pretender) universal; Apostólica por dar continuidade aos ensinamentos dos apóstolos de Cristo. O “sobrenome” Romana só será incorporado a partir do cisma de 1054, para diferir os católicos do Ocidente (romanos) dos do Oriente (ortodoxos). Os demais – que não aderiram à proposta de Constantino –, passaram a ser considerados simplesmente hereges – piores que os pagãos.

NOTA: Roma (tanto na fase imperial quanto na papal) jamais deixou de perseguir seus dissidentes. Ocorre que tais perseguições só despertaram o interesse da História “oficial” em dois momentos distintos e distantes: no início do cristianismo (séculos I a IV) e no auge das reformas protestantes (século XVI). E por quê? Porque à História “oficial”, só os grandes acontecimentos (ascensões e quedas de impérios, grandes guerras, epidemias, catástrofes naturais, revoluções econômicas, etc.) interessam; somente estes devem ser dignos de registro e da atenção do historiador.

A IMPRESSÃO que fica é que o reconhecimento do cristianismo como religião oficial do Império Romano (com as concessões exigidas por Constantino – e atendias pelos principais líderes da época) foi uma unanimidade e pôs fim a quase quatro séculos de perseguições. A partir de então, passou a existir uma única igreja em todo o mundo conhecido: a Igreja Católica. Isso está muito longe de passar ao menos perto da verdade. Vários historiadores da chamada Nova História – que considera histórico também os acontecimentos corriqueiros – dão conta de vários grupos de cristãos que resistiram – mesmo pagando com a própria vida em muitos casos – às mudanças introduzidas no cristianismo a partir de Constantino (santificação do domingo em lugar do sábado, culto ao imperador como representante divino, culto a imagens de santos, missa aos mortos, etc.). Entre os pontos cruciais dessa polêmica está a doutrina do sábado como dia santo, substituído pelo domingo por imposição de Constantino, que pretendia, assim, unir os dois grupos: cristãos (guardadores do sábado) e bárbaros (pagãos – guardadores do domingo)

SÍNTESE DA PROPOSTA DE CONSTANTINO

CRISTÃOS

Situação: perseguidos pelo império, que tentava exterminá-los

Proposta principal: substituição do sábado (considerado pelos romanos um rito judeu, que poderia fortalecê-los cultural e politicamente – isso era perigoso) pelo domingo como dia de adoração a Deus. Aceitação de alguns ritos dos cultos idólatras praticados pelos pagãos, como a crença em espíritos dos mortos, entre outros.

Compensações: aumento incalculável de conversos e fim das perseguições do império

PAGÃOS (bárbaros)

Situação: inimigos do império; porém, perseguidos apenas por motivos políticos e econômicos, uma vez que suas crenças não se diferiam tanto das dos romanos: ambos eram idólatras, adoradores do Sol e avessos ao cristianismo.

Proposta principal: incorporação de alguns ritos do cristianismo (crença em Deus como único criador, perdão aos inimigos, monogamia, igualdade entre os homens, etc.) em troca da adoção do domingo como dia sagrado (em homenagem ao Sol) pelos cristãos de todo o império.

Compensações: diminuição do preconceito e das hostilidades sofridos pelos bárbaros – que, aceitando a fé cristã, deixavam de ser bárbaros – e popularização do seu principal rito de fé: o culto ao deus Sol.

EMBORA os cristãos jamais tenham admitido abertamente estar adorando o Sol, ao reconhecerem o domingo como dia santo – algo separado para uma divindade – sem nenhuma base bíblica para tanto, não há como interpretar essa atitude de outra forma. Embora a história oficial aponte a ruptura de 1054 como o primeiro grande cisma do cristianismo, tal informação está equivocada. Na verdade, a ruptura aqui não é exatamente do cristianismo como um todo, mas especificamente de uma das duas vertentes já existente na época: o catolicismo. Com o cisma de 1054, a Igreja Católica – que até então era apenas católica – se divide (oficialmente) em duas: Igreja Católica Romana, com sede em Roma e sob a autoridade do papa; e Igreja Católica Ortodoxa, com sede em Bizâncio (Constantinopla), a qual não reconhece a autoridade do papa como chefe único e supremo da cristandade. Percebemos, então que o papa jamais foi uma unanimidade como chefe da cristandade, nem mesmo entre os católicos, imagine entre todos os cristãos do mundo, como acredita o senso comum. Na verdade, o primeiro grande cisma da cristandade, o fato determinante, a pedra de toque, a gota d’água para a fragmentação do cristianismo foi a união (forçada) da Igreja com o Estado, com a adoção do cristianismo como religião oficial do Império Romano, feita através de uma manobra política de Constantino, como já foi destacado.

COM tal manobra, esse arguto estadista “mata VÁRIOS coelhos de uma cajadada só”: quebra a resistência dos cristãos – principais críticos do império; aproxima os bárbaros, diminuindo as ameaças de invasão (não impedindo, mas ao menos adiando a queda do império), diminui a influência dos judeus (outro importante grupo cultural e econômico) com a secularização do sábado e, o que é mais importante: mantém unido (através da fé) e sob seu controle o grande império.

A FIGURA DO PAPA (pai/papai)

APESAR de bem elaborada, depois de aproximadamente meio século, a estratégia de Constantino se mostrou incapaz de conter a crescente desintegração do império. Uma nova manobra tinha que ser pensada – e urgente. A saída encontrada foi tornar Roma, capital do império e centro do poder político, também o centro do poder religioso. Surge, então, a figura do papa, “vigário de Cristo”, “sucessor de São Pedro”, “Senhor Deus o Papa”. A partir de então, a Igreja Católica passa, não oficial, mas factualmente, a ser, também, um Estado político, e o papa, o seu chefe supremo. Surge, entre outros absurdos, a concepção de que o bispo de Roma (o papa) fora nomeado pelo próprio Deus o seu divino representante e, portanto, guardião não apenas do Império Romano, mas de toda a Terra. Daí por diante, nada mais seria considerado aviltante, ilegal ou imoral, desde que tivesse o assentimento de Sua Santidade o Papa, o legítimo representante de Deus entre os homens, com poderes para estabelecer e remover reis, mudar os tempos e as leis, perdoar pecados e determinar quem seria absolvido e quem seria condenado em questões de fé, prerrogativas exclusivamente de Deus, segundo a Bíblia (ver Daniel 2:20 e 21; 7: 23 a 25; II Tessalonicenses 2: 1 a 6).

FAZ bem lembrar aqui que, até então, havia vários papas. Isso mesmo, cada cidade – pelo menos as consideradas importantes – tinha o seu papa, que era chamado de bispo. Assim, tínhamos, por exemplo: o bispo de Antuérpia, o bispo de Nicéia, o Bispo de Nantes, o bispo de Roma e, assim, sucessivamente.

POR QUE O BISPO DE ROMA SE SOBREPÔS AOS DEMAIS?

EM LINHAS gerais, porque era politicamente mais conveniente e religiosamente mais fácil, considerando as dificuldades e as necessidades do já fragmentado e enfraquecido império da época.

A AUTOPROCLAMAÇÃO do bispo de Roma como chefe religioso e, por extensão, político “do mundo” foi a última, mais desesperadora, mais radical e mais trágica tentativa de manter de pé o insustentável e carcomido Império Romano. O pretexto para tanto foi a manutenção da unidade cristã e a proteção do corpo doutrinário da Igreja de Cristo face as diversas investidas tanto de hereges – aqueles que abandonaram a fé católica –, quanto de pagãos – os chamados bárbaros que, a essas alturas, já praticamente tomavam conta do corrompido império. Na verdade, o bispo de Roma viu nesse vácuo a deixa para concretizar um sonho há muito acalentado pela Igreja Católica: a transformação desta em um Estado. Embora, de direito, isso só venha a se concretizar em 1929 – com a criação do Estado do Vaticano, é consenso entre todos os historiadores – de todas as correntes – que durante toda a chamada Alta Idade Média, a Igreja Católica Romana foi o principal poder político reconhecido, de fato, em todo o Ocidente.

POR QUE A MAIORIA ACEITOU A AUTORIDADE DO PAPA SEM CONTESTAÇÃO?

LEMBRA do que falei no início? “Tudo é uma questão de fé” – aí está o perigo.

TENTANDO ser, ao mesmo tempo, menos prolixo e mais objetivo, proponho a seguinte reflexão: Percebamos que em nossos dias, milhões de pessoas das mais diferentes nacionalidades, classes sociais, grau de instrução e confissões cristãs se aglomeram em torno de credos que vão dos mais ortodoxos e radicais (os que não reconhecem a medicina convencional, se abstêm de alimentos cárneos e derivados de animais, não se unem em matrimônio nem namoram pessoas de outros credos, não mostram o corpo, etc.), passando pelos populares ou tradicionais, chegando aos cômicos e bizarros (os que acreditam que Jesus já está [em carne e osso] entre nós ou defendem que Ele era homossexual ou amante de Madalena e até os que são favoráveis ao incesto e a pedofilia – tudo em nome de Jesus). E não é em Marte ou no País de Alice que isso acontece. É aqui, no planeta Terra, entre nós, em pleno século XXI, quando o conhecimento (ou pelo menos a informação) “anda atropelando as pessoas pela rua”. Imagine o que fora possível, em nome e através da fé, realizar nos famosos tempos da Idade Média, quando cientista era considerado adorador do diabo, mulher era a encarnação do pecado e o manuseio dos escritos sagrados era um privilégio que Deus concedera apenas aos seus divinos representantes na terra, os bispos, com exclusiva proeminência, ao de Roma, cuja autoridade permitia, inclusive, alterar tais escritos, segundo sua infalível sapiência julgasse necessário? Acrescente-se a isso, o fato de que, ainda que as Escrituras fossem acessíveis a todos e em idioma nacional, somente uma ínfima minoria tinha o domínio da leitura. Não é por acaso que, ainda hoje, os templos católicos conservam a História da Paixão através de gravuras – essa era a forma dos adoradores entenderem o pouco que lhes era permitido, já que não sabiam ler e o idioma oficial da missa era o latim, dominado apenas pelos doutos da época.

CONCLUINDO: pode até parecer absurdo que milhões de pessoas acreditem que Deus tenha concedido a um simples mortal (o papa) uma autoridade tal que ultrapasse a da Bíblia. No entanto, repito, não há como negar que a própria Bíblia é pouco mais que o resultado disso: a crença de que Deus revelou a alguns privilegiados a Sua sagrada vontade. E mais: se era possível acreditar que Deus se revelara, por exemplo, a homens como Davi – que mandara matar, de forma traiçoeira, o comandante de seu exército para ficar com a viúva deste, de quem já era amante –, e Abraão, que, por duas vezes, mentiu para salvar a própria vida, e estavam há milhares de anos, por quê não acreditar que esse mesmo Deus continuava a se revelar a “alguém que havia renunciado todas as vaidades deste mundo (festas profanas, vícios, ambições materiais, etc.) e até a necessidades essenciais à vida, como: sexo e, em muitos casos, a alimentação – tudo para fazer a vontade do Pai”, sendo que este poderia ser visto e, com um pouco de esforço e sorte, até tocado pelos demais mortais? Quando a questão é vista por esse ângulo, não é tão difícil concluir que, à época, tornava-se até mais razoável a segunda do que a primeira conjectura; ou não?

SERIA, além de exagero, até grosseria afirmar que nada há de racional na organização e aceitação da Bíblia como livro sagrado. De fato, há várias situações (achados arqueológicos; a harmonia dos conteúdos – a despeito da diversidade de tempo e de cultura entre os autores; e a inexplicável influência de seus escritos sobre todos os tipos de mentes e culturas ao longo da história, entre outras) relacionadas à Bíblia que impedem uma mente sã e sensata negar a existência de racionalidade no contexto. Porém, isso não é suficiente para refutar a assertiva de que o principal fundamento para tal aceitação continua sendo a FÉ. Por essa razão é que vejo como preconceituosos e grosseiros alguns posicionamentos que insinuam (ou afirmam) serem os homens antigo e medieval mais ignorantes que os moderno e contemporâneo em matéria de religiosidade. Aliás, se fazer juízo de valor calhasse bem com o ofício do historiador, eu diria que nossa situação é bem pior que a deles. Digo isto porque considero que se há extorsão da fé – e isso é inegável – em nossos dias, ela se dar muito mais por uma “preguiça mental” dos que são extorquidos do que propriamente pelas circunstâncias que os envolve. Imaginemos que, hoje, o conhecimento letrado – inclusive das Escrituras Sagradas – está ao alcance de todos: do milionário ao mendigo, do camponês ao magistrado, do cidadão livre ao presidiário ... e todos são livres para analisar, contestar e julgar que concepção lhe é mais conveniente. No entanto, inúmeras denominações ditas cristãs (principalmente as remanescente do protestantismo) continuam vendendo: “a rosa da libertação”, “a água do Rio Jordão”, “o sal da cura” “o óleo da unção”, etc. E o número de pessoas (de diferentes credos, culturas e classes sociais) atraídas por essa “neo-simonia” só aumenta cada dia. Uma curiosidade (entre tantas) nesse particular é que a simonia, na Idade Média, foi uma prática adotada pela Igreja de Roma, e radicalmente condenada pelos reformadores protestantes, tornando-se um dos estopins da Reforma. Hoje, o fenômeno parece fazer o caminho inverso.

O FATO de não haver como provar a existência de Deus nem a inspiração das Escrituras, torna o cristianismo uma religião fundamentada essencialmente na fé – o que abre precedentes para as situações mais esdrúxulas possíveis, como alguns fatos aqui lembrados sucintamente. Apesar disso, é necessário admitir – até por questão de bom senso: há, sim, espaço nesse contexto, embora pequeno, para a racionalidade.

POR ISSO é que fico com Lincoln: “Siga a Bíblia pela razão até onde for possível. Daí em diante, siga-a pela fé”.