A Doce Vida
"Omnes viae Romam ducunt."
"Tutte le strade portano a Roma."
"Todos os caminhos levam a Roma."
Se você não gosta de Federico Fellini, não desejo convencê-lo. Não imagino o afeto pelos caminhos racionais que nos levam a algo (ou alguém). Se assim fosse, nos apaixonaríamos apenas por pessoas (e coisas) possíveis.
Além disso, Fellini é paixão à primeira cena. Não adiantaria insistir. Você pode se tornar PhD no assunto, discorrer sobre a técnica, incluir o ponto de vista histórico, ressaltar os valores (pois é, ele fala de valores sem pudor), das metáforas (são tantas!) enfim, seu olhar pode ser impecável.
Ainda assim, seria suficiente para gostar do cineasta italiano?
Denominar algo como "felliniano" é imprimir a marca do gênio em uma infindável tradução simbólica. É a sua arte arquetípica em nosso inconsciente coletivo. E por isso mesmo, os sentidos possíveis são inesgotáveis.
E como o mestre é generoso, "A Doce Vida" deu origem a outro termo: "paparazzo" - que era o sobrenome de um personagem baseado no lendário fotógrafo Tazio Secchiaroli. Os "paparazzi" estão em toda parte. De Hollywood às ilhas gregas. Paris ao Rio de Janeiro. O que sugere uma vaga idéia da atualidade.
Quase meio século depois de seu lançamento, escrever sobre "A Doce Vida" (1960) é constatar a questão atemporal da obra-prima, assim como sua permanente abertura aos sentidos e olhares sobre ela.
E por falar em tempo, o período retratado ali, mostra a distância daquela Itália devastada pela guerra. Os italianos não desejavam mais se alinhar à crueza da realidade representada em algumas obras-primas do neo-realismo, berço de onde emerge Fellini.
Estamos no tempo "americanizado" dos costumes. E isso se reflete no culto à imagem, onde a vaidade e o ego são transformados em espetáculos da modernidade. Mulheres endeusadas, carros que trazem o símbolo da velocidade, não apenas da máquina, mas do consumo e, talvez, de como nos deixamos consumir.
Entretanto nada é ou foi império por acaso. Roma teria mudado completamente ou a antiga e a nova Itália são faces que se alternam, como as nuances de seu protagonista, Marcello (Marcello Mastroianni)?
"A Doce Vida" nos convida a conhecer esse jornalista que retrata o mundo fútil e o vazio existencial de tudo que o cerca. Sua personalidade exibe facetas de vaidade, insegurança, mas também, traços de inquietude. Marcello parece descontente a maior parte do tempo, entediado, quase apático. O que sugere uma existência pautada no prazer momentâneo e na frivolidade.
Por outro lado, através da amizade com Steiner, vislumbramos um contraponto com a identificação de outros valores: família, carreira literária, ligação com intelectuais e outras artes.
Marcello não envolve-se afetivamente com as mulheres. Sua ligação está no prazer inconsequente e a ausência de vínculos afetivos, apesar do "harém informal" em sua vida, poderá ser melhor compreendida quando conhecermos seu pai, em um dos momentos mais simbólicos do filme.
O jornalista seria o alter ego de Fellini, em busca de um sentido para se expressar naquela "Via Veneto" da Sétima Arte? E quais os sentidos que podemos encontrar neste cenário?
Via Veneto não é um endereço qualquer. Local que abriga hotéis luxuosos e restaurantes caríssimos onde, dificilmente, se encontraria um romano, foi consagrado pela obra de Fellini como "o melhor lugar no mundo para se estar" devido, principalmente, à presença americana na Cinecittà. Outra curiosidade: é também o endereço da embaixada dos EUA.
Durante muitos anos, os turistas procuraram ali, literalmente, um lugar chamado "La Dolce Vita". Mais felliniano, impossível! Os italianos contam e se divertem. Há depoimentos sobre este fato em um documentário sobre Marcello Mastroianni, recentemente exibido em um dos canais Telecine, da TV paga.
Buscar "A Doce Vida" na Via Veneto seria como procurar a casa de Julieta em Verona? Bem, não exatamente. Lá existe uma casa para fins turísticos porque os italianos, além de bom gosto, tem muito humor! Quem quiser sonhar no pequeno balcão, em um beco próximo à arena de Verona, com uma bela escultura em bronze da personagem romântica de Shakespeare, certamente se encantará com o lugar.
Voltando ao filme. Não! Não me esqueci. Estou apenas tentando me inspirar na ironia que ronda o título e a obra. Um elemento que contrasta com a sensação melancólica.
A cena inicial transita entre o sagrado e o profano. E pode ser entendida de muitas formas. A imagem de Cristo transportada por um helicóptero sobrevoa Roma. Dentro dele, repórteres da imprensa sensacionalista e a figura do fotógrafo: o paparazzo. Em uma luxuosa cobertura, mulheres se banham ao sol e os repórteres tentam chamar a atenção. O símbolo religioso, ligado a onipresença, conecta-se de forma irônica e simbólica às lentes que estão em todos os lugares.
A crítica dos valores da religião católica, na qual Fellini foi formado, aparece em muitas obras e nesta, em especial, há duas cenas a destacar: Sylvia (Anita Ekberg), a atriz que desembarca em Roma, depois de uma entrevista coletiva (onde imita a célebre resposta dada por Marilyn Monroe sobre duas gotas de perfume para dormir), visita o Vaticano. Na Basílica de São Pedro, sobe as escadarias para olhar a vista. Seu figurino lembra as roupas de um padre.
No subúrbio a mídia arma um esquema sensacionalista para transmitir uma suposta aparição de Nossa Senhora, vista por duas crianças. O tio delas concede uma entrevista bizarra dizendo que os sobrinhos viram a santa numa data do próximo ano. O repórter o corrige. E ele confirma: deste ano. As crianças dizem que viram novamente a santa e que ela só voltará se ali for construída uma igreja. O tumulto das pessoas desesperadas buscam milagres em meio ao trabalho de jornalistas e fotógrafos. Um deles, faz o sinal do Pai e em seguida, tira uma foto.
O clima do filme raramente suaviza. Existe uma tensão permanente. Uma angústia no olhar que não se fixa em lugar algum. "A Doce Vida" nos propõe muitas questões. O sentido desse tédio melancólico, a apatia emocional, seriam as marcas de um abismo de significações? Assim como o desfile de mulheres em torno de Marcello contrastaria o vazio existencial?
A cena entre Sylvia e Marcello na Fontana de Trevi não seria a marca desse (des)encontro que mostra a solidão do sentido entre eles? A beleza da atriz é estonteante. A beleza de Mastroianni, um deus! A beleza da cena, incomparável. A beleza da fonte, indescritível. A música magnífica de Nino Rota é o som dessa beleza. E ainda assim, há tanta solidão ali.
Dentro da fonte, a fala de Marcello é deslumbrante, mas as palavras são ditas a quem não pode ouvi-lo nem entendê-lo. E ainda que a atriz compreendesse seu idioma, conseguiriam se comunicar? Não é à toa, que se tornou uma das cenas antológicas da história do cinema. E este é apenas um dos sentidos. Há tantos outros para desvendar.
Um dos momentos mais impressionantes desta obra é a capacidade de Fellini mesclar, do ponto de vista psicológico, ternura e frieza. O pai o procura em Roma. O jornalista poderia se reconhecer naquele homem em busca de algo que não irá encontrar. A doce vida não está na Via Veneto. E este homem não pode mais corresponder aos próprios anseios e passa mal. Ninguém sabe exatamente os motivos e Fellini apenas sugere. Diante deste filho que, na verdade, não o conhece, o pai não dialoga. Simplesmente vai embora. Mais uma vez, o contato não se estabelece. E as lacunas permanecerão abertas pelo que não foi expressado. E nem será.
A cena do desfecho com a namorada traz a agonia da comunicação contraditória, onde se fala algo para negá-lo em seguida. Até o limite. Os diálogos escancaram, mais uma vez, o abismo entre aquela que seria a pessoa mais próxima de Marcello, no entanto, é justamente ela quem menos conseguiu se aproximar do homem que amava.
O que ambos queriam (ou conseguiam desejar) da vida não era possível juntos.
A ausência do contato entre as pessoas permanece nas cenas da visita ao castelo, onde Madalena, a personagem da milionária interpretada por Anouk Aimée, tão entediada que necessita estímulo constante para sentir-se de alguma forma ligada à vida, em um dos momentos compara-se a uma propriedade que está vaga. Em outro, conversa com o personagem de Marcello, escondida atrás de uma parede para "confessar" que o ama e quer casar-se com ele. Ao mesmo tempo, outro homem junta-se a ela. E Marcello não pode vê-los. Não tem idéia do que aconteceu a Madalena. Fala sozinho. Ela não mais responde. Está nos braços do outro homem.
Fellini ainda nos reservaria o assombro diante do suicídio do amigo, Steiner, que antes, mata os filhos. Este personagem poderia representar a consciência de que mesmo sem a guerra, viviam o caos. E sua morte se transforma em um espetáculo da mídia.
No entanto, nada parece atingir Marcello. Por um momento, imaginamos que aquele trágico episódio poderia alertá-lo. Mas, alienado de si mesmo, retorna ao prazer e à fantasia escapista da noite romana. As cenas de uma festa desprovida de qualquer vestígio de alegria mostra a incapacidade da celebração. As emoções embotadas. Os personagens são vazios e tristes.
E a representação de Mastroianni, magnífica do começo ao fim.
A última cena nos faz perder o fôlego. A direção de Fellini valoriza cada segundo da atuação desse talento fantástico e generoso de Mastroianni. Cada um entenda como quiser. Muitos interpretam como o contraste simbólico entre a pureza e o abismo moral.
Prefiro pensar nesse abismo em relação aos sentidos. Como entender (escutar ou reconhecer) alguém que tenta falar conosco, se nem mesmo nós sabemos quem somos?
Minha interpretação passa longe do desafio arrogante de traduzir os significados desta obra-prima.
É apenas um esboço. Um atalho particular. Talvez, um dos caminhos que levam a Roma e à vida (que se desejaria) doce.