SOMENTE O ALTER EGO PRODUZ POESIA
Chega o poema com o pedido de análise e me debruço sobre a proposta poética:
“ASSOMBRO
Ana Másala
Aqui estou
num incontido desejo
de dizer o que não sei.
Missão de quem se quer poeta,
não é apenas dar voz ao sentimento:
é deixá-lo mudo,
per-ple-xo,
indefeso,
(em assombro permanente)
como uma criança de olhar inteiro.
Publicado no Recanto das Letras em 06/04/2009.
Código do texto: T1524945.
http://recantodasletras.uol.com.br/poesias/1524945 ”
Amada poetamiga! Já estava saudoso de tuas visitas, de teu espírito sempre com saudável bonomia, forjando textos inteligentes e, em regra, esteticamente bons, nos quais se percebe o compromisso com a contemporaneidade formal. Portanto, quase nada de “diletantismos da inspiração”, tão costumeiros nos autores amadores, novos ou novatos. Aqui o que discutes é, subliminarmente, o processo de criação: a palavra e seus efeitos. Realmente o que o Ego diz nunca se perfaz Poesia. A Poética é dos domínios do inconsciente, como queria Bachelard: visita aos sótãos do mistério. Fernando Pessoa se apercebeu disto, fixou-se na percepção e estudos e a heteronímia produziu os seus autores fictícios – seus dândis poéticos. O próprio Pessoa, quando usa o seu nome verdadeiro, ainda assim não é a sua nominação verdadeira, genuína. Ele se autodenomina: Fernando Pessoa, Ele-mesmo-o-Outro. Porque FP – e ninguém antes o percebera tão claramente na história da criação poética – reconheceu que o Ego, em regra, não faz poesia, não concebe o poema, e, sim, o alter ego, o hóspede por vezes incômodo. Daí que me parece certo que digas, na peça em exame: "... num incontido desejo/ de dizer o que não sei.”. Convém ressaltar algo importante nesta linha de raciocínio: é preciso ter cuidados com este tal de "sentimento". Este, de per si, não tem voz, signo, palavra, e, sim, é somente a centelha original haurida da intuição. O que possui tudo isto (e mais um pouco) é a intelecção: a cavernosa (e sempre sábia) voz capaz de traduzir o que ocorre no âmago do ser, e permear ao alter ego falante, em Poesia. O “olhar” também não fala (final do poema) e nem importa se este é inteiro ou não. Talvez, por “inteiro” possa permitir o estado de assombro, como propõe a autora, em sua poeticidade... São os olhos do alter ego (impressos de imagens vistas e imaginadas), que logram traduzir em palavras o sentir. Tudo para que reflitas sobre a matéria da vida e sua transmutação em Poesia. E me auxilies neste mergulho intelectivo a que o teu inconsciente me convida. Bem haja a tua pena primorosa. A vida, em si, já é um assombro permanente, como quer o alter ego de Ana, a poeta, nos versos em exame, fruto do pleníssimo estado psíquico para a produção de Poesia. Parabéns pelo estro em ótimo patamar estético.
– Do livro OFICINA DO VERSO, vol. 02; 2006/17.
http://www.recantodasletras.com.br/ensaios/1531235