Abandonando o manto. Divagando sobre a morte

Ontem, no caminho pra rodoviária, meu caçula disse-me que um conhecido nosso, jovem ainda, havia abandonado o manto. Esse é um termo usado no xamanismo pra dizer que uma pessoa morreu. Acho-o bem mais leve. Tem uma certa magia, como se ao invés de tornar-se pó, você simplesmente, muda a vestimenta.

Confesso que fiz uma viagem muito introspectiva. Amo viajar de ônibus e sempre viajo no banco da frente, para apreciar a paisagem

Mesmo sendo aquela viagem que faço a cada três meses, sempre há uma surpresa: uma árvore diferente floresceu, uma outra que não havia reparado sobressai entre as outras, uma nuance diferente no céu, nas montanhas; uma plantação diferente... tudo totalmente diferente, embora pareça a mesma paisagem... A natureza nunca se repete, mesmo que os olhos menos insensíveis negue o que estou dizendo, tudo é sempre novo na natureza.

Os filmes que rodaram no ônibus, por sorte, estavam horrorosos. Então pude ligar o mp3 e ouvir a seleção que havia preparado pra essa viagem. Parece que eu havia pressentido que era uma viagem de introspeção.

Cada música que tocava, vinha à minha mente um fato, uma lembrança que constatava que estamos aqui de passagem, somos viajantes, quer na estrada, quer na vida. E não há nada, nada mesmo que mude essa certeza.

Às vezes ficava triste, às vezes deleitava-me numa lembrança alegre. Mas o que mais persistiu foi a idéia da finitude, ou pra ser suave, o largar o manto.

Uma das coisas que mais tenho notado depois que entrei na maturidade, foi o contato com a morte. Parece que na juventude, como todo adolescente, não existia o passar do tempo. Eu e todos à minha volta seríamos eternos. E só depois que descobri que não temos data de validade indeterminada é que comecei a olhar pra morte como a primeira certeza da vida. Antes achava que era a única, outro dia, ouvi um comentarista político dizer uma segunda certeza na vida: pagar impostos... Essa certeza é mais light, embora também injusta.

Ao chegar meu filho mais velho, relatou-me que o irmão de um amigo seu de infância estava na UTI, sem esperanças de sobrevida. No sábado de madrugada ele faleceu.

Notei a maneira como ele me relatava o fato e percebi muito diferente do caçula. Ele relatava como um fato triste, mas inevitável, de quase imediata aceitação. Eles têm sete anos de diferença. O outro não, além do medo, uma imensa revolta que o fazia repetir: Que vontade de pegar um e quebrar todo! É claro que sabemos a que um ele estava se referindo. Fiquei pensando que só a maturidade vai fazê-lo começar a aceitar esse fato da vida.

Duas pessoas, duas reações! E diante deles fiquei calada, pois, não conseguia dizer a eles o que eu dizia quando eles se machucavam: Isso vai passar, deixa eu soprar!

Mas isso também é uma verdade: ninguém está livre de ter que abandonar o manto... todos nós um dia o faremos, mesmo que nos revoltemos, mesmo que aceitemos. Só que com um diferencial: ao aceitarmos isso como um fato natural da vida, coloca-nos ou como céticos, ateus, ou como dogmáticos, crentes.

Se céticos, temos a crença de que não existe nada além da vida. Que ao abandonar o manto, evaporaremos como poeira e nos misturaremos à terra. De nada adianta ficarmos pensando ou projetando sobre o futuro, ou sobre o pós vida. Vivamos o agora!

Se crentes, intuímos, criamos uma vida pós morte. E passamos a viver a dualidade: aqui e lá. Muitas vezes fazemos aqui, pensando nos prêmios do lá; deixamos de fazer aqui, com medo do lá.

E na verdade, passamos a vida vivendo com uma sombra, com uma projeção. Pra muitas pessoas isso parece ser sadio. Elas conseguem essa proeza. Mas a grande maioria, essa incógnita pode ser torturante e na dúvida fingem que não acreditam pra poder viver com naturalidade o que a vida oferece.

Por muitos anos, fui uma dessas pessoas, fiz de tudo o que um dogmático faz, até tentar corromper com barganhas eu tentei. Mas o fato é que quem se machucou fui eu. Não há como marcar uma audiência com Deus e pedir a ele que nos facilite, se esqueça da gente e de nossa família. Mais parece que estamos diante de um nada. Um grande nada!

Aí, você diz que me tornei ateia! Confesso que tentei. Mas minha vida ficou impossível de viver sem a crença em algo a mais e além. E a forma que encontrei pra poder continuar foi tentando aprender a deixar o amanhã para o amanhã. Se há vida no pós morte, não vem ao caso. O que de fato me importa é que eu construa minha vida aqui e agora de uma maneira que eu seja feliz. Mas que também ao largar o manto, e se existir a continuidade, ao olhar pra trás eu não diga que poderia ter feito algo diferente ou não ter feito algo que me arrependesse.

Não, não é viver ambiguamente. É simplesmente ter a humildade de saber que não controlo, ou não detenho o poder do tempo e do espaço. E humildemente aceito o que está posto diante de mim: O procurar viver no aqui e agora, aceitando as vicissitudes como desafios que me impulsionam a criar soluções e lá no final, o abandonar o manto. Mas com uma certeza, se nada existir, eu não saberei porque não estarei lá. Meio que parafraseando Epicuro: Se há vida não existe morte, se há morte não há como saber da vida.

Fpolis,02/04/09

Darlene Polimene Caires
Enviado por Darlene Polimene Caires em 02/04/2009
Reeditado em 15/04/2009
Código do texto: T1518929
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